Ultimate fight vintage: sombrios genitores de Mary Poppins, Disney e Travers se digladiaram por 20 anos!


Tema do filme “Walt nos bastidores de Mary Poppins”, a tumultuada produção do clássico filme-família de 1964 serviu de exorcismo para as vidas amargas dos seus dois geniais criadores. Confira o artigo de Flávio Di Cola!

* Por Flávio Di Cola

Racista, misógino e antissemita: assim os detratores de plantão de Walt Disney costumam atacar não só um dos mais influentes artistas do mundo moderno como também o sistema empresarial e ideológico construído por trás da marca mais amada do mundo, segundo pesquisa realizada em 2013 pela consultora APCO Worldwide. Essa visão simplista e ressentida voltou à baila com o lançamento pelos próprios estúdios Disney de Walt nos bastidores de Mary Poppins” (Saving Mr. Banks, 2013) em que é narrada a conflituosa fase de pré-produção do filme “Mary Poppins” ao longo do ano de 1963, quando – após 20 anos de assédio – Pamela Lyndon (P. L. nos dicionários de literatura) Travers, a escritora da série de livros inaugurada em 1938 sobre a super-babá com poderes mágicos, desembarca em Hollywood para negociar as condições de cessão dos direitos de adaptação da sua primeira obra e colaborar no processo de criação do último filme realizado sob a supervisão direta de Walt Disney.

A estrela Julie Andrews, Walt Disney e a autora do livro no qual se baseou "Mary Poppins", P.L. Travers (Foto: Reprodução)

A estrela Julie Andrews, Walt Disney e a autora do livro no qual se baseou “Mary Poppins”, P.L. Travers (Foto: Reprodução)

Pois bem, o último golpe desferido sobre a imagem de Disney veio justamente de um dos nomes mais respeitados de Hollywood – Meryl Streep – no início de janeiro deste ano, durante a entrega do prêmio de melhor atriz conferido pelo National Board of Review para Emma Thompson – protagonista de “Saving Mr. Banks” no papel de P. L. Travers. No discurso de entrega do troféu para Emma, Meryl não pensou duas vezes ao fazer graves ressalvas à integridade moral e ética do pai do virtuoso Mickey Mouse. Para fundamentar a fama de Disney de não gostar de mulheres – muito menos no ambiente de trabalho -, Streep chegou ao extremo de ler uma resposta de recusa à candidatura de uma jovem ao programa de estágios dos estúdios Disney para desenhistas-animadores, nos idos de 1938, escrita pelo próprio líder da empresa e fortemente embebida de aversão ao gênero feminino.

Se não bastasse isso, Meryl ainda deu como certo o apoio de Disney a grupos antissemitas que se mobilizavam contra a hegemonia de executivos de origem judaica nos postos-chaves da indústria cinematográfica norte-americana. O golpe de misericórdia veio na forma de crítica àqueles que eventualmente poderiam tolerar e justificar a excentricidade, a irritabilidade e a agressividade de alguns gênios – como Walt Disney – através do legado destes para a humanidade. Para arrematar, ao nome de Disney ela adicionou um outro muito mais próximo no tempo e no espaço cinematográfico entre os “gênios” politicamente incorretos que – segundo ela – gozariam de um injustificado salvo-conduto comportamental: o do colega Quentin Tarantino. Mal-estar geral. Cortinas, rápido!

Mesmo que desconsideremos a fama de puritana que Meryl Streep tem granjeado no meio cinematográfico e o fato de que ela mesma era parte de uma cerimônia que premiava um filme completamente simpático à figura de Walt Disney, é curioso notar que os traços acima – supostamente associados ao perfil padrão de muitos gênios – foram todos destinados à personagem de Pamela L. Travers no filme com Emma Thompson, e que Walt Disney insistia em chamar por “Pam”, uma atitude de insuportável desrespeito e informalidade para os códigos vitorianos da escritora. Aliás, um dos aspectos mais deliciosos do filme é justamente a interpretação levemente caricata de Emma Thompson nas passagens em que Pamela Travers ironiza a infantilidade, a superficialidade e o materialismo vulgar da sociedade americana, cujo representante mais visível estava ali na sua frente – Walt Disney – acenando-lhe com 100.000 dólares (uma fortuna para os padrões da época) pelos direitos de adaptação e que a salvariam da completa bancarrota e da penhora do seu apartamento-santuário em Chelsea, Londres.

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Mas as duas chaves para se desvendar “Walt nos bastidores de Mary Poppins” estão escondidas nos respectivos passados da dupla Disney-Travers, encenados ao longo da narrativa do filme por longos diálogos confessionais ou por repetitivos flash-backs que cobrem a infância de Travers no agreste da Austrália e de onde ela – supostamente – tirou os temas e os personagens para a série de livros que a consagrou. Tanto Pamela como Walt parecem ter vivido infâncias marcadas por privações, humilhações e violências. Dizemos “parecem” porque – no desespero da juventude – eles decidiram se reinventar para sobreviver ao rolo compressor da vida real, refugiando-se com um pé no reino da fantasia e com outro na fabricação de uma couraça que lhes garantiria o caminho até o topo do mundo. No caso de Travers, sua afetação britânica foi cuidadosamente forjada para ocultar uma trajetória mais ou menos equívoca, depois de todos os sofrimentos pelos quais passou quando criança no cangaço australiano, com nebulosas passagens em atividades “suspeitas” para os conceitos morais da época, como dançarina e atriz.

Já sobre Walt Disney pairam, além das “suspeitas de sempre” – encomendadas pelos críticos rabugentos para todos aqueles que conquistam um sucesso estrondoso -, indícios de um profundo conflito emocional jamais resolvido envolvendo o seu pai, Elias, e seu irmão mais velho, Roy, além de uma espécie de “cegueira emocional” – nas palavras do biógrafo não oficial Marc Eliot – que irá nutrir as suas visões artísticas, seus temas e seu perfeccionismo enlouquecedor. Até as diferenças no aspecto físico entre o seu irmão – muito feio e mirrado, sempre comparado a uma coruja – e os belos e sensuais traços latinos de Walt suscitaram elucubrações de que este seria filho bastardo de Elias com uma atraente lavadeira espanhola, Isabelle Zamora. Entre verdades, fofocas e lendas, vicejam histórias de investigações secretas empreendidas pelo FBI e pelo próprio Walt Disney com o intuito de desvendar as circunstâncias verdadeiras do seu nascimento. A falta de evidências concretas fez com que alguns “biógrafos” mais atrevidos buscassem na recorrência de temas como a orfandade, o abandono da infância, a adoção e as relações idealizadas entre pai e filho – na obra de Disney – prova de sua obsessão pela questão da origem.

Disney versus Travers: sim, eles lutaram ferrenhamente um contra outro nos campos da arte, dos negócios e das visões de mundo. Mas também tinham muito em comum, além do gosto pelas narrativas góticas e do fato de precisarem desesperadamente um do outro. Algo muito mais sério: abrigavam dentro de si duas almas tão atormentadas quanto misteriosas, cujas necessidades de evasão cruzaram-se na mesma trilha do maravilhoso.

* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Amante judiado e teimoso da Sétima Arte, suporta todos os constrangimentos na sua fidelidade às salas de cinema