‘Quero acabar com estigmas produzindo elenco. Há atores que trabalham uma vida e são esquecidos”, diz Raoni Seixas


O diretor de elenco de “Arcanjo Renegado” (GloboPlay) e de mais outras três das principais produções do streaming: “Reality Z” (Netflix), “Homens?” (Amazon Prime) e “Me Chama de Bruna” (Fox ), fala da função importante e ainda muito desconhecida pela maioria dos telespectadores. Além disso, comenta sobre a segunda temporada de “Arcanjo Renegado” e afirma que pensa em diversidade quando produz: “Busco acabar com uma série de estigmas em produção de elenco. Mas digo que tive a oportunidade de fazer produtos bem inclusivos. Vejo mesmo cada vez mais essa preocupação nas produções. Não faço novela, mas, na publicidade, por exemplo, tem esse culto do belo ainda. Só que a diversidade de pessoas está cada vez mais nos produtos, temos pretos, brancos, pessoas trans, jovens, mais velhos. Quando as pessoas assistem uma história, querem entrar nela, e mais do mesmo tira a atenção. Gosto de sair do senso comum, no “Me Chama de Bruna” coloquei o MV Bill fazendo um pastor, por exemplo”, pontua

*por Brunna Condini

Ele tem a missão, com o perfil de cada personagem em mãos, de descobrir e sugerir, quem se encaixa melhor para o papel. Com um olhar declaradamente curioso e criativo para a função, o diretor de elenco Raoni Seixas está em três produções de sucesso do streaming nacional: “Arcanjo Renegado”, o melhor desempenho da história da GloboPlay, que já tem a segunda temporada garantida; “Reality Z”, na Netflix, “Homens?”, na Amazon Prime, e “Me Chama de Bruna”, na Fox .

A função é importante e uma ponte para personificar a história através dos intérpretes, mas muita gente não sabe exatamente como funciona. Raoni é responsável por descobrir os talentos, organizar os testes e selecionar quem serão os atores para os personagens: uma espécie de “garimpeiro” de perfis que trabalha junto com o autor e a direção. “Me sinto um operário do audiovisual. Não existe um “método”, não tem como trabalhar da mesma forma de uma produção para outra. Em “Arcanjo Renegado” é uma realidade de favela, policiais, bandidos. Aí, vou para “Reality Z, uma série sobre zumbis, por aqui, dirigida pelo Claudio Torres, que já foi produzida na Inglaterra, e um dos roteiristas é o mesmo da série de sucesso “Black Mirror”. Tenho que buscar caminhos diferentes nesta direção de elenco”, detalha.

“Me sinto um operário do audiovisual, faço o que o meu cliente quer, precisa. Não existe um “método”, não tem como trabalhar da mesma forma de uma produção para outra” (Foto: Bernardo Segretto)

Aos 36 anos e há quase dez na função, Raoni começou sua trajetória como ator. E como também dá aula em cursos de interpretação, ele diz que tenta colocar os pés dos aspirantes a ator e atrizes, no chão. “Falo para eles que entendo muito a ansiedade, a agonia, a expectativa que sentem em relação à carreira, mas os situo que é uma profissão difícil, de muita ralação mesmo”, diz. “Há atores que trabalham uma vida inteira e depois são esquecidos. Outros fazem trabalhos incríveis, seguidos, e depois passam um tempo longo sem trabalhar. Então, não tento desmistificar a minha função e de outros colegas, por exemplo. Tem gente que me escreve pedindo que eu realize o seu sonho de se tornar um ator. Mas não tenho o poder de colocar ninguém em lugar algum. Pesquiso, apresento para o diretor, e muitas vezes quando cabe, defendo ideias. Até ajudo, quando é o caso, a realizar, quando alguém é escalado, mas de outro lugar. Mas o ator precisa entender que a frustração faz parte do caminho, que é de muito trabalho”.

A vida de Raoni mudou através dos encontros. Ele acabou estagiando com o diretor Cacá Diegues e as produtoras Renata Almeida Magalhães e Tereza Gonzalez. E em 2011, abriu a Kaziken, sua própria produtora de elenco, se tornando referência em acertadas escalações, em filmes como “O maior amor do mundo“, “Cinco Vezes Favela – Agora por nós mesmos”, “O Grande Circo Místico“, “Legalize Já“, “Mato sem cachorro“, “Chocante” e “Paraísos Artificiais“, entre outros.“Eu já fui ator, sei o que é difícil. Mas as portas da produção, da direção de elenco se abriram para mim, eu topei, queria uma vida diferente e me identifiquei neste caminho, tem um lado criativo, de busca”.

Raoni entre José Wilker e Cacá Diegues: “Eu já fui ator, sei o que é difícil” (Acervo)

Descobrindo pessoas e universos

 Ele revela que nos trabalhos que tem se envolvido, além de “casar” personagens e perfis, também tem testado e dado oportunidade para atores de favela, subúrbio e comunidades, potencializando talentos que, no geral, têm mais dificuldade para conseguir inserção no audiovisual. Quais são os nomes que ajudou a lançar nos últimos anos? “O Gregório Duvivier escalei para o “5x favela”, e ele nem pensava em fazer esse humor que faz hoje no “Porta dos Fundos” e tal”, conta. “O próprio Marcello Melo Jr, que agora protagoniza o “Arcanjo Renegado”, tinha feito poucas produções quando o chamei para fazer o mesmo filme. Aliás, “5xfavela” rendeu. Tem o Juan Paiva, que quando escalei era muito novinho, moleque. Depois protagonizou “Malhação”, tem feito um monte de filmes, inclusive é protagonista de “M8 – Quando a Morte Socorre a Vida”, do Jeferson De”, diz sobre Juan, que é morador do Vidigal e também está na reprise de “Totalmente Demais”, no horário das 19h, na TV Globo.

Raoni com atores no set de “5x Favela”: “Marcello Melo Jr, que agora protagoniza o “Arcanjo Renegado”, tinha poucas produções” (Divulgação)

No momento, apesar da pandemia e das gravações suspensas, Raoni diz que os trabalhos de produção do elenco para segunda temporada de “Arcanjo” continuam. “A série tem muito beijo na boca, muito contato físico, então temos que seguir as recomendações. Estou trabalhando remoto na produção de elenco, mas em outro tempo. A minha meta é quando derem o ok para começarmos a gravar, que esteja tudo pronto, o elenco principal e os demais”.

Está sentindo grandes dificuldades? “Não, tenho feito self tape com os atores, tem funcionado. Acho que a dificuldade é que não tem aquele olho no olho, que faz diferença, o orientar ali de perto. Mas enquanto não tiver vacina para a Covid-19 não vejo sets cheios, não tem como. Recebi o roteiro da segunda temporada do “Arcanjo Renegado”, duas semanas antes de começar a pré-produção. Passamos de tudo normal para tudo parado. Também estava trabalhando com o Hamilton Vaz Pereira na primeira série dele para o Canal Brasil, mas estamos aguardando”.

Sem estigmas

Raoni está há três meses em uma casa alugada na serra com a mulher, Paula Valente Fraga, e o filho, Heleno, 2 anos, mas como a pandemia continua e não apresenta previsão de término ainda, deve retornar para seu apartamento. “Estamos aqui estes meses todos. Foi uma oportunidade boa, meu filho tem brincado, gastado energia, não fica trancado, mas vamos ter que voltar. Com esse adiamento dos projetos, vamos entrar no modo economia, porque não sabemos o que vai acontecer”.

Ele é pé no chão. A atenção à realidade é uma das características fortes da observação de quem pensa em um elenco. Além disso, Raoni também gosta de pensar o trabalho como uma forma de inclusão. “Busco acabar com uma série de estigmas em produção de elenco. Mas digo que tive a oportunidade de fazer produtos bem inclusivos, vejo mesmo cada vez mais essa preocupação nas produções. Não faço novela, mas, na publicidade, por exemplo, que trabalho muito, tem esse culto do belo ainda. Só que a diversidade de pessoas está cada vez mais nos produtos, temos pretos, brancos, pessoas trans, jovens, mais velhos. Até porque, o próprio público quer ver o diferente, ver vida. Quando as pessoas assistem uma história, querem entrar nela, e mais do mesmo, tira a atenção”, analisa. “Mas quando trabalho, o primeiro pensamento é em como aquela escolha vai ser rica dramaturgicamente. Me preocupo em acabar com estigmas em produção de elenco, mas procuro oferecer o melhor artisticamente. O meu foco é sempre contribuir com a história. Gosto de sair do senso comum, no “Me Chama de Bruna” coloquei o MV Bill fazendo um pastor, por exemplo”.

Raoni em ação em gravação externa da série “Arcanjo Renegado”: “Me preocupo em acabar com estigmas em produção de elenco” (Divulgação)

O que diria para um jovem ator que deseja trabalhar na TV ou no audiovisual? “Diria que não tem fórmula mágica e é preciso muito trabalho e criatividade. Sempre alerto que as pessoas devem ter o pé no chão. Todos os atores que citei, eles trabalharam muito para chegar nesse lugar. Não tem mais essas histórias dos anos 1990, essa história de descoberta na rua, no supermercado. A grande maioria trabalhou muito para ter um fluxo contínuo, até porque isso é preciso. O ator é o seu produto”.

Com a realidade da pandemia, como fica esse mercado? “A criatividade vai ser importante, O ator pode fazer vídeos protestos, como os da Maria Bopp, que manda muito bem. Pode fazer vídeos com cenas e postar nas redes. Se você é ator e o mundo está mudando, vai ter que rebolar, como outros profissionais”, aponta Raoni. “E tem mais: acho importante identificar quem é você como profissional. Vou dar um exemplo: quando eu era ator, o Luiz Fernando Guimarães e o Pedro Cardoso eram os ícones da comédia, e muita gente os imitava. Hoje, isso acontece com profissionais como Tatá Werneck, Fabio Porchat, Paulo Gustavo. Por que gostamos deles? Eles são originais, encontraram um caminho próprio. Então, a pergunta é essa: quem eu sou como ator, o que ofereço? O que você quer? Qual é o trabalho que você vai construir? E é muita ralação. A Tatá foi minha colega de turma na UniRio, duranga. O Paulo Gustavo pegava ônibus com minha esposa para festinha. O mundo do ator é difícil, mas a vida em que profissão é fácil? A vida não é fácil. Vamos encarar a vida como ela é”.

Alguma dica para quem quer começar? “Faça cursos, entre em contato com as pessoas. Se não puder, faz self tape em casa, troca, experimenta, mostra seu trabalho, posta, compartilha”.

 

Raoni Carneiro e José Junior, CEO do Afroreggae, na série “Arcanjo Renegado” (Divulgação)