Princesa belga e jornalista lançam doc sobre urgência de esforços globais em defesa da Amazônia e povos originários


Dois importantes ativistas pela proteção desse valioso bioma, o jornalista e escritor Gert-Peter Bruch e a princesa Esmeralda da Bélgica estão à frente do documentário “Amazônia, Coração da Mãe Terra”, que se põe a discutir as questões dos povos originários e dá protagonismo às suas narrativas e cosmogonias. O filme também registra esforços que somam décadas de luta pelo direito à demarcação de terras. O filme conta com o apoio de um importante parceiro local para sua difusão no Brasil, o Documenta Pantanal, instituição que reúne profissionais de diversas áreas com o desafio de tornar os protetores e as riquezas do Pantanal mais conhecidos do grande público

Este ano é um marco na História do nosso país com a criação do Ministério dos Povos Originários, que tem à frente a ativista Sonia Guajajara, e a perspectiva de reestruturação de instituições e de políticas públicas em defesa dos povos indígenas. É vital lembrar também o legado de Chico Mendes (1944-1988), seringueiro e ativista das causas florestais, que foi assassinado há exatos 35 anos em um momento que se discute com mais afinco a questão da demarcação das terras indígenas. Trazendo luz a este cenário de reformulações e recálculo de rotas, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) anunciou, para este mês de abril, uma agenda que dominará o Acampamento Terra Livre 2023, evento que será realizado entre os dias 24 e 28, em Brasília (DF).

E este será o cenário da primeira exibição do documentário Amazônia, Coração da Mãe Terra (2022), codirigido e coproduzido pelo jornalista e escritor Gert-Peter Bruch e a princesa Esmeralda da Bélgica, dois importantes ativistas ambientais de grande atuação na proteção desse valioso bioma e de seus povos originários. O doc foi produzido no ano passado, último da gestão Bolsonaro. O período no qual o ex-presidente esteve no poder foi duramente criticado por órgãos de defesa do Meio Ambiente pelo desmazelo com as políticas da floresta e dos direitos dos povos originários. Segundo dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), de janeiro a setembro de 2022, ano em que foi rodado o documentário, a área de floresta amazônica derrubada atingiu 9.069 km², o que corresponde a quase oito vezes a cidade do Rio de Janeiro. A maior devastação em 15 anos. Muitas dessas áreas devastadas são revertidas para a criação de gado de corte. No início do ano corrente, 2023, tornou-se público o flagelo humanitário vivenciado pelo povo Yanomami.

Princesa Esmeralda da Bélgica (Acervo Pessoal)

Gert Peter Bruch (Foto: Yann Rossignol)

Diz a música de Martinho da Vila que, “da terra Caiapó, o Deus morava nas montanhas e fez filhos do chão”. Atualmente, há uma grande disputa exatamente pelo chão amazônico. E o documentário “Amazônia, Coração da Mãe Terra” que adverte para a urgência de esforços globais em defesa dos povos originários. Mônica Guimarães, diretora-executiva do Documenta Pantanal, afirma que “Proteger um bioma é proteger todos os biomas. Esse filme é um exemplo de como todos eles estão interligados e como a preservação perpassa o social. O documentário é uma ferramenta importantíssima na batalha pela conservação do ecossistema”, diz ela, que também é produtora executiva do maior festival de documentários da América Latina, o “É Tudo Verdade”.

Pôr do sol na Amazônia (Foto: Todd Southgat)

Amazônia, Coração da Mãe Terra também será exibido em sessão única e gratuita, no Espaço Itaú de Cinema – Augusta, em São Paulo, no dia 29 de abril, com a presença do diretor, lideranças indígenas e da princesa Esmeralda da Bélgica, que após a projeção permanecerão com o público para um bate-papo. A conversa também terá a presença do advogado Orlando Villas-Bôas Filho e de Marina Villas-Bôas, filho e viúva do sertanista Orlando Villas-Bôas. Entre 1963 e 1975, em importante colaboração no Xingu, Marina atuou como enfermeira e foi responsável pelo ambulatório designado para cuidar da saúde dos indígenas, com resultados excepcionais, como zerar os registros de óbito infantil.

A magia das borboletas clicadas no Xingu (Foto: Todd Southgate)

RAÍZES

Ativista ambiental desde os 17 anos, um dos diretores do longa, o francês Gert-Peter Bruch tomou consciência das lutas dos povos originários do Brasil por intermédio da campanha de arrecadação de fundos globais realizada em 1989 pelo cantor britânico Sting, em solidariedade ao cacique Raoni Metuktire, líder do povo Caiapó, que então somava esforços para que fossem iniciadas as primeiras demarcações de terras indígenas na esteira de direitos recém-adquiridos com a promulgação da Constituição Federal de 1988. No filme, o indigenista e ex-presidente da FUNAI, Sydney Possuelo relata que “Raoni conseguiu, como um imã, chamar pessoas de dentro e de fora do Brasil para uma ação muito importante, ao lado de Sting, que ajudou na demarcação de várias terras indígenas. A grande contribuição de Raoni e de outros que se portam como ele, é a divulgação de que eles estão aqui e agora. Eles não são índios históricos. E essa ação é um incentivo”, diz, sobre a entrada de personalidades e personagens não indígenas na luta pela causa florestal.

Eu vou brigar mais, até conseguir. Você não pode ficar fraco. Tem que ser duro. – Raoni Metuktire, líder do povo Caiapó

Cacique Raoni. Expoente nome caiapó (Foto: Todd Southgate)

Codiretora do projeto audiovisual, a princesa Esmeralda da Bélgica tem ligação intrínseca com a luta em defesa dos povos originários. Seu pai, o Rei Leopoldo III (1901-1983), abdicou do trono e foi um precursor do ambientalismo, destacando-se como um dos mais participativos ativistas em defesa da Amazônia no cenário internacional, a partir de 1964, quando teve o primeiro contato com os irmãos Villas-Bôas – os sertanistas Cláudio, Orlando e Leonardo – e com o nascente Parque Nacional do Xingu.

Ao longo de dois meses em que lá esteve, estabeleceu amizade com o cacique Raoni e se destacou como fotógrafo, legando um inestimável acervo imagético compilado no livro Diário de Viagem – Fotografias do Rei Leopoldo III ao Brasil – 1923-1923, editado pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP).

A luta que os irmãos Villas-Bôas desenvolveram ao longo dos anos 1960 foi uma luta muito difícil, e se não houvesse o respaldo de grandes figuras como, por exemplo, a do Rei Leopoldo III, provavelmente eles não tivessem conseguido o êxito que tiveram na manutenção desse grande projeto que foi o Parque Indígena do Xingu – Orlando Villas-Boâs Filho

COSMOGONIA ENCANTADA

Com narrativa poética e protagonismo das mais expressivas lideranças indígenas em atuação no País, “Amazônia, Coração da Mãe Terra”adverte para a urgência de articulação de esforços globais em defesa dos povos originários e da preservação dos recursos naturais da maior floresta tropical do mundo. “Graças à Mãe Terra, as folhagens nos protegem e resfriam o chão. Nós respiramos ar puro e repelimos os incêndios. Não é mais o caso de todas essas regiões onde a floresta já foi arrancada”, lamenta Raoni, em um dos vários depoimentos seus registrados no filme.

[Com o desmatamento] Restam apenas pequenas ilhas de floresta que eles também querem destruir. Eu não gosto disso. Não gosto nada disso” – Raoni Metuktire, líder do povo Caiapó

Para Kretã Kaingang, chefe do povo Kaingang, originário da Mata Atlântica do Paraná, é preciso compreender que as riquezas da floresta não podem ser mensuradas apenas como uma fonte de recursos naturais, mas sim como um terreno sagrado, de caráter espiritual para os nativos que ali vivenciam uma cosmogonia completamente alheia aos valores de quem reside nos grandes centros urbanos. “Há muitas pessoas que não entendem como funciona a floresta. Lá residem os seres vivos e os seres espirituais. Então, para nós, os povos indígenas, ter acesso, entrar nessas florestas, passar e sentir aquela força de espírito dos seres encantados, que nós chamamos, é muito importante. A gente não é nada diferente do que tem dentro daquele território e daquela terra. A gente é igual a todos. Então, um tem que respeitar o outro”, afirma  Kretã.

Kretã Kaingang é o líder da nação Kaingang, do Paraná (Foto: Planète-Amazone/Gert Peter Bruch)

Para Valdelice Veron, líder do povo Guarani-Kaiowá no cerrado de Mato Grosso do Sul, o dia a dia de contemplação de uma rotina encantada dispensa hierarquia sobre a importância de todos os seres vivos da floresta. “Cada bichinho, cada joaninha, cada formiga, começando dos bichinhos pequenos, tem seu papel para nós. E os bichos grandes, como as antas e as capivaras, ajudam a limpar os rios”, explica.

No documentário, essa dimensão mística defendida por Kretã Valdelice é reverberada em um depoimento de Jojo Mehta, diretora-executiva da Stop Ecocide International, instituição baseada no Reino Unido com atuação em diversos países: “Para as culturas indígenas, a relação com o meio ambiente está muito ligada ao patrimônio cultural e às práticas culturais. O indígena não pensa no mundo natural como uma fonte de recursos, o mundo natural é como um nosso parente”, diz.