O gambito da rainha: conjunto de clichês que formam uma jogada de mestre


Baseada no livro homônimo de Walter Tevis, série “O gambito da rainha”, lançada em 23 de outubro, ficou quase um mês como o programa número 1 da Netflix nos Estados Unidos e segue entre as dez mais vistas do serviço de streaming. Interpretação impecável de Anya Taylor-Joy, como o prodígio do xadrez Elizabeth Harmon, é um dos grandes méritos. Alerta: este texto pode conter spoilers.

*Por Simone Gondim

Há um mês, os assinantes da Netflix não tiram os olhos de um tabuleiro de xadrez. Mérito de “O gambito da rainha”, série baseada no livro homônimo de Walter Tevis. Lançada em 23 de outubro, a atração foi o programa número 1 da plataforma de streaming nos Estados Unidos até a estreia da quarta temporada de “The crown”, em 15 de novembro, e segue entre as dez mais vistas. Estão lá vários elementos novelescos: criança com uma história de vida difícil descobre uma habilidade única, adultos vivem romances tumultuados, personagem principal tem problemas com álcool e tranquilizantes, mulheres lidam com o machismo e, no fim, quando tudo parece que vai dar errado, a heroína conquista seu grande objetivo. Ainda assim, esse conjunto de clichês resulta em uma jogada de mestre, muito por conta da interpretação impecável de Anya Taylor-Joy, que faz a protagonista Elizabeth Harmon.

Logo no começo do primeiro episódio, o batido recurso de mostrar um momento-chave do presente para voltar no tempo e contar como a personagem chegou até ali serve para dar uma ideia de que Elizabeth Harmon é um prodígio do xadrez, mas atormentada, como acontece com muitos gênios. Ao apresentar os vícios em álcool e remédios da protagonista, bem como seu atraso para o que parece ser uma das competições mais importantes de sua carreira, cria-se a expectativa de que veremos a derrocada de uma estrela. Não demora muito para que essa impressão se desfaça: Elizabeth até é dependente de bebida e tranquilizantes, mas não leva uma vida totalmente desregrada e mantém o foco no xadrez, sua maior obsessão. O púbico acompanha o amadurecimento da jovem, da infância em um orfanato até a realização do sonho de ser campeã mundial.

Atriz Anya Taylor-Joy é Elizabeth Harmon, prodígio do xadrez em “O gambito da rainha” (Foto: Divulgação/Netflix)

Além do talento inquestionável de Anya Taylor-Joy, que prende o público com seu olhar enigmático, é preciso dar crédito a Isla Johnston, que interpreta Elizabeth na maior parte da infância. É pelo rosto e pela postura de Isla que vemos o quanto a personagem é fechada e como a descoberta do xadrez se transforma em uma válvula de escape para a menina, que perde a mãe em um acidente de carro e é colocada para adoção. É no orfanato, aliás, que começam a obsessão pelo xadrez e o vício em tranquilizantes – a série dá a entender que, nos anos 1950, nos Estados Unidos, esse tipo de remédio era indicado para crianças.

Outras boas atuações ficam por conta de Moses Ingram, na pele da rebelde Jolene, a grande amiga de Elizabeth nos anos de orfanato; Thomas Brodie-Sangster, que fez o Jojen Reed de “Game of thrones” e aparece como Benny Watts, uma arrogante estrela do xadrez que se oferece para ajudar Elizabeth e acaba tendo um romance com ela; Marielle Heller, a infeliz Alma Wheatley, que adota a adolescente Elizabeth e acaba conseguindo criar um verdadeiro laço afetivo com ela, além de ser a responsável pela entrada da enxadrista no universo das grandes competições; e Bill Camp como o fechado Mr. Shaibel, zelador do orfanato, que proporciona o primeiro contato de Elizabeth com o tabuleiro de xadrez e dá a ela um livro sobre técnicas de jogo.

Isla Johnston interpreta Elizabeth Harmon na infância (Foto: Divulgação/Netflix)

Para garantir que os movimentos de xadrez fossem corretos, “O gambito da rainha” teve a consultoria do lendário Garry Kasparov, Grande Mestre do esporte e considerado por muitos como o maior enxadrista de todos os tempos. A trama é de ficção, mas menciona vários talentos reais do xadrez, como o cubano José Raúl Capablanca, o estadunidense Paul Morphy e os russos Alexander Alekhine e Boris Spassky. Para ensinar os movimentos das peças a Anya e outros atores, como Harry Melling, que faz o campeão Harry Beltik, foi chamado Bruce Pandolfini, um dos treinadores mais conceituados do mundo.

O nome da série vem de uma estratégia de abertura do jogo, na qual se sacrifica um peão para acelerar o desenvolvimento das peças na partida, e traz um erro de tradução. Em português, a peça se chama dama, não rainha, a fim de evitar confusão quando os jogadores anotam os movimentos da partida – enquanto as casas do tabuleiro recebem letras e números, conforme a posição, as peças são registradas pela letra inicial de seus nomes. Como já existe o rei, uma rainha daria margem a dúvida na hora de conferir qual peça teria mudado de lugar.

Marielle Heller é Alma, mãe adotiva de Elizabeth (Foto: Divulgação/Netflix)

Em termos de fotografia, ambientação e figurino, a série dá um show. Para retratar o estilo dos anos 1950 e 1960, período em que é passada a história, foi chamada a alemã Gabriele Binder, que já revelou em entrevistas que vestiu Elizabeth Harmon se inspirando em atrizes como Jean Seberg e Edie Sedgwick, além de apostar na silhueta Courrèges para camisetas e na influência de Pierre Cardin para o vestido que a personagem usa ao disputar o torneio em Paris. É interessante observar que as roupas acompanham a evolução de Elizabeth, que abandona os vestidos sem graça usados no orfanato católico e assume um visual mais elegante e estiloso – a cada torneio, por exemplo, os looks vão ficando mais poderosos.

Embora a série consiga prender a atenção dos espectadores e atrair até os que acham o xadrez um esporte cansativo, escorrega feio em alguns momentos, como ao praticamente romantizar o vício da protagonista, já que os comprimidos são apontados como um facilitador para o talento dela. Quanto mais se aproxima do fim, a trama cai na obviedade – por exemplo, a união de vários personagens para ajudar Elizabeth a vencer sua grande partida contra o russo Vassíli Borgov (Marcin Dorocinski) parece coisa de conto de fadas. Já o fato de a enxadrista dos Estados Unidos ser ovacionada em plena Rússia, na época da Guerra Fria, soa irreal demais até mesmo em se tratando de uma obra de ficção. Para a sorte do público, o roteirista e diretor Scott Frank mais acerta do que erra, fazendo de “O gambito da rainha” uma ótima opção de entretenimento.

Apesar do sucesso da série, não há nada que indique a produção de uma segunda temporada.