Gahbi: ator não-binário de “Elas por Elas” abre o coração sobre ter conseguido na Justiça retificação de gênero


Ele dá vida ao personagem Polvilho, que é um amigo confidente de Renée, a primeira protagonista transexual de uma novela da TV Globo. Acompanhando a atriz Maria Clara Spinelli, intérprete de Renée, Gahbi representa na vida real e na TV um forte papel e voz social relacionado a discussões sobre retificação de gênero e gordofobia. Isso porque o comediante brasiliense é uma pessoa não-binária, gorda e gay, além de se montar como drag queen. E mais: é a primeira pessoa não-binária a conseguir a retificação de gênero em uma ação judicial individual no Distrito Federal

A princípio, o artista Gahbi faria uma pequena participação especial no remake de “Elas por Elas”, que estreou nesta segunda-feira, dia 25. Todavia, ao integrar o elenco, o humorista recebeu um convite para aumentar seu tempo de tela. Ele dá vida ao personagem Polvilho, que é um amigo confidente de Renée, a primeira protagonista transexual de uma novela da TV Globo. Acompanhando a atriz Maria Clara Spinelli, Gahbi representa fortes voz e papel sociais relacionados a discussões sobre retificação de gênero e gordofobia na TV e na vida real. Isso porque o comediante brasiliense é uma pessoa não-binária, gorda e gay, além de se apresentar como drag queen em espetáculos de humor.

Conhecido até pouco tempo no mercado como Gabriel Borges, o ator mudou, recentemente, o nome artístico para “Gahbi”. Segundo o intérprete de Polvilho, essa mudança profissional acompanha seus processos e transformações pessoais, ao se entender e se identificar como pessoa não-binária. Neste tópico, Gahbi se firmou como uma forte bandeira a favor dos direitos de pessoas da comunidade LGBTQIA+. Isso porque ele foi a primeira pessoa não-binária a conseguir a retificação de gênero em uma ação judicial individual no Distrito Federal. A conquista histórica marca a trajetória na busca por um lugar para chamar de seu no mundo, além de abrir portas para outros indivíduos transgêneros não-binários. Todo o processo contou com o apoio da mãe dele, Vera Adelaide.

Com palavras revestidas de humor, o ator alerta aos seguidores sobre o lugar social de incômodo que seu corpo assume e desse processo de transformação, assim como a importância da resistência política para a sua existência. Quando perguntado sobre a orientação sexual, o humorista brasiliense disse que estava imerso em um processo de autodescoberta. “A vida toda, eu me considerei um homem cis gay afeminado. Eu entendo que a minha descoberta não binária ainda é recente. Depois de descobrir, você pensa ‘eu sempre fui’. No lugar de homem gay, eu me sentia muito dissidente, muito fora do que era apresentado. Eu penso ainda nisso como um lugar de aprendizado”.

Com a recente divulgação pública da minha retificação de gênero e do meu trabalho como drag, eu venho recebendo xingamentos. Mas há muitos feedbacks legais de pessoas que me veem como uma figura de representatividade. Esse é um lugar muito importante no sentido das pessoas poderem se enxergar, especialmente quando a gente fala de uma novela, por exemplo, que é um elemento da cultura brasileira muito forte — Gahbi

Assim que entrou no mercado audiovisual, o ator admitiu ter se sentido pressionado sobretudo no quesito estético. Ele recebeu conselhos de algumas pessoas para emagrecer, anular o sotaque de Brasília e se vestir de maneira mais “sóbria”. “Eu percebi que buscava esse lugar de aceitação profissional e pessoal, mas passei por esse período na carreira de tentar me adequar ao que o mercado me apresentava como ‘correto’, o caminho para trabalhar ali. Nos últimos anos, eu passei por um processo de transformação muito grande e percebi que à medida em que eu me entendia e expressava quem sou, ao invés de portas se fecharem, eu fui ganhando novos espaços dentro do mercado. O medo foi embora”.

Gahbi foi a primeira pessoa a conseguir na Justiça do DF a retificação de gênero em seus documentos para “não binário” (Foto: Divulgação)

Gordofobia

Atendendo por todos os pronomes, Gahbi ressalta a importância que o movimento “body positive” assumiu em sua vida nos últimos anos. “A minha relação com o movimento ‘Corpo Livre’ é muito importante para mim a permanência e existência como pessoa, artista e ativistas. Foi uma virada de chave, uma descoberta da terapia para mim. Como pessoa LGBT e pessoa gorda, eu sempre tive um lugar de despertar um incômodo nas pessoas mesmo sem entender o porquê. Era muito difícil me situar no mundo a partir dessa via do incômodo. Quando a gente fala na relação do movimento com a sociedade, eu não acho que [o discurso e ação] estejam alinhados. É a venda de um movimento estético muito forte de estabelecer padrões ilusoriamente muito bem desenhados, mas que são inalcançáveis na prática”, observa.

Para ele, o mundo do audiovisual está começando ainda a abrir espaço para personagens e artistas com “corpos normais”. A mudança de comportamento por parte do cinema, da TV e dos streamings se dá por posicionamentos e cobranças na internet de grande parte do público que desejava se ver representado nas telas.

“Quando a gente começa a falar sobre o Corpo Livre, a primeira resposta é reativa. O primeiro movimento reativo é a romantização da obesidade com a acusação de ‘vocês não falam de saúde’. Para sair desse lugar de opressão e buscar uma aceitação social, a brincadeira com a língua também é provocativa, eu fiquei pensando ‘qual é a referência de saudável? Ela parte de uma ideia saudável a partir da estética ́. Eu estou em um processo de ressignificar esse lugar da saúde por um viés não apenas estético. O movimento deixa as pessoas pensarem que é uma radicalização, mas eu acho que se trata apenas da possibilidade de se existir a partir do corpo que você está. [Esse olhar] abriu muitos caminhos profissionais e mudou o meu olhar para outros corpos. Além de olhar para mim pessoalmente, ressignificar esse hábito é olhar para a formas na qual eu me relaciono afetivamente e sexualmente”.

“Como humorista, entendo que o meu trabalho com o texto que eu levo para cena também faz parte desse processo de reeducação do que se ri”

Limites do humor

Também influenciador digital e produtor de conteúdo nas redes, o artista admitiu ter observado que a discussão sobre os “limites do humor” dificilmente chega a humoristas vindos de minorias sociais. Para Gahbi, a pergunta só é direcionada a comediantes dentro dos padrões vigentes pela sociedade já consolidados no mercado.

“O humor em si não tem limites, porque a gente não tem como controlar o que cada um vai achar graça. É preciso ter um limite não no sentido de podar a criatividade e censurar, mas de ter um cuidado. Eu percebo, por parte de muitos colegas humoristas, uma preguiça e uma falta de cuidado ao estudar o texto e perceber que não dá para a gente fazer o humor dos Trapalhões, do Zorra. A gente vive um tempo de reeducação e questionamento. É preciso que a gente entenda do que está rindo. Como humorista, entendo que o meu trabalho com o texto que eu levo para cena também faz parte desse processo de reeducação do que se ri e do que se acha graça. Particularmente, eu prefiro fazer um humor de situações cotidianas e não de tipos de personalidades específicas”, pontua.

Gahbi faz dois tipos de stand-ups: como a drag queen Gabriela Pimentel e, desmontado, com a “cara limpa”. Atualmente, o artista não tem preferência no formato do show, a escolha da persona apresentadora depende de seu desejo no dia.

Caminho até “Elas por Elas”

Durante o trânsito de mudança do sentido Distrito Federal para o Rio de Janeiro, o artista encontrou com a diretora Amora Mautner em uma peça do ator Marcos Veras, no Teatro XP, no Jockey Club Brasileiro, na zona sul do Rio. Ali, o humorista perguntou despretensiosamente a ela sobre futuras oportunidades no mercado audiovisual. Para ele, a brincadeira voltada ao desejo de trabalhar com a profissional tomou uma proporção inimaginável. Afinal, o que começou com o comentário “um dia ainda vou fazer uma novela sua” levou Gahbi a participar, em poucas semanas, de um processo de testes que culminou em seu primeiro personagem nas telas.

Determinado a se projetar no mercado audiovisual brasileiro, o humorista confessou não ter imaginado que chegaria tão longe nesta seleção. Por isso, ele tem se mostrado tão empolgado na missão de construir a narrativa de Polvilho. Gahbi ficou ainda mais motivado a dar vida a esse papel ao saber que foi incluído até mesmo no vídeo do elenco oficial, exibido pela primeira vez na pré-estreia oficial de “Elas por Elas“, realizada no dia 14 deste mês.

O personagem Polvilho trabalha há uns bons anos na padaria Estelar, de dona Renée e seu Wagner (César Mello) e, além de funcionário, é um entusiasta dos deliciosos sonhos que a patroa faz. Por ter muitos anos de casa como funcionário da padaria, sente-se um pouco gerente do estabelecimento e, na ausência dos patrões, é quem coloca ordem na padaria e nos outros funcionários. Ele é astuto e observador, presta atenção na movimentação e em tudo o que é dito ali naquela padaria de Niterói. Além do lado profissional, Polvilho tem um carinho e uma empatia muito grande pela família de Renée, sendo um amigo fiel de todos eles.

“Fazer Elas Por Elas está sendo, pra mim, o começo da realização de um sonho. Eu amo novela, sempre fui noveleiro de carteirinha. A minha primeira vivência de dramaturgia foi assistindo televisão e tinha esse desejo muito forte em mim de trabalhar nessa linguagem. Estou feliz demais de fazer o Polvilho, estou encantado por ele e por esse projeto. Estou fazendo com amor e entrega. Tudo foi crescendo também. Isso acompanha o movimento da minha carreira, não há nada meteórico até agora, é degrau a degrau com aprendizado e crescimento. O personagem seria uma pequena participação, foi crescendo, ganhando cena. Está sendo um desafio e, ao mesmo tempo, gostoso e divertido de fazer. Isso é de uma alegria imensa e acho que, com comédia e drama, a novela vibra alegria! E o público vai vibrar junto.”, declara Gahbi

Retificação de gênero

A partir de uma ação individual na Justiça de Brasília, Gahbi foi a primeira pessoa a conseguir a retificação de gênero em seus documentos para “não bináro”. “Apesar de ter conseguido a liberação do juiz para fazer a retificação do gênero, eu ainda não busquei a minha certidão. Eles foram atrasando o processo. Eu não mudei o nome, na certidão continua Gabriel. Desde pequeno, eu escutava de todo mundo que ‘Gabriel é nome de anjo’ e falam que anjo não tem sexo. Escolhi o nome artístico Gahbi”, explicou ele, que iniciou o processo na Justiça para a retificação no ano passado.