No Festival do Rio, um encontro com o “o pintor da luz” sob as lentes de Mike Leigh no longa que alça Timothy Spall ao estrelato


“Mr. Turner”, filme que deu ao ator o prêmio máximo em Cannes e que tenta decifrar a vida de um dos pintores mais geniais e misteriosos da história da arte, abre a 16ª edição do evento

* Por Flávio Di Cola

Sua mãe morreu louca e sua relação com o pai tornou-se tão intensa que os papéis de pai-filho chegaram a se inverter. Era muito feio e resmungão, ora rabugento ora debochado. Reconhecido e idolatrado em vida, foi publicamente desprezado pela Rainha Vitória. Sua misteriosa vida amorosa – presume-se – consumiu-se em prostíbulos ou em incontáveis relações fortuitas com criadas e estalajadeiras que geraram filhos jamais reconhecidos por ele. Mas Joseph Mallord William Turner (1775-1851) foi um gênio incontestável da pintura. No apogeu do Romantismo, insurgiu-se contra o academicismo centrado nos “grandes temas” que forravam as paredes monumentais dos palácios da nobreza e da alta burguesia vitoriana, elevou as paisagens à categoria de assunto digno de competir com a pintura histórica, e – talvez aqui resida o seu maior fascínio para o público de hoje – antecipou em quase três décadas o Impressionismo ao reconhecer sem pestanejar que a Europa entrara definitivamente na “era da fumaça, do ferro e do vapor”.

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Mike Leigh, o festejado diretor de “Segredos e mentiras” (Secrets & lies, 1996) e “O segredo de Vera Drake” (Vera Drake, 2004) – filmes que arrebataram respectivamente a Palma e o Leão de Ouro, em Cannes e Veneza -, enxergou na trajetória de Turner uma oportunidade para se aproximar de uma questão que obceca platéias do mundo todo: como pessoas com vidas aparentemente tão comuns conseguem levantar o manto de mistério que cobre o universo e filtrar o que viram através da arte? Foi a partir dessa tensão colossal entre o raso e o sublime – que muitas vezes chega a esmagar o artista – que Leigh desenvolveu o seu belíssimo “Mr. Turner”, uma das pérolas dessa edição do Festival do Rio.

Turner arrebata a Sétima Arte: Miek Leigh durante o Festival de Cannes, em maio passado (Foto: Reprodução)

“Mr. Turner” arrebata a Sétima Arte: Mike Leigh durante o Festival de Cannes, em maio passado (Foto: Reprodução)

Nessa empreitada, Leigh não quis arriscar e preferiu manter-se fiel à tradição das cinebiografias clássicas de grandes pintores da humanidade em que a própria concepção visual do filme informava o público sobre o universo plástico do artista biografado. Hollywood já tinha obtido grandes triunfos nessa linha através das estupendas recriações das vidas atormentadas de Toulouse-Lautrec em “Moulin Rouge” (Idem, United Artists, 1952) e Van Gogh em “Sede de viver” (Lust for life, MGM, 1956), com a inestimável colaboração de diretores de fotografia do calibre de Oswald Morris e Russell Harlan que manipularam o Technicolor ao seu bel prazer até obterem uma síntese que proporcionasse ao grande público não só uma catarse narrativa como também um mergulho na luz, nas cores e nas texturas desses artistas seminais da história da arte. Assim, grande parte do mérito de “Mr. Turner” deve ser creditada à espetacular cinematografia de Dick Pope, também premiado no último festival de Cannes por essa obra, e – é claro – à equipe de direção de arte, que buscou um equilíbrio entre a reconstituição perfeitamente autêntica da Inglaterra vitoriana e o esteticismo exigido por Mike Leigh.

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Antes do derradeiro suspiro no seu leito de morte, Turner – uma pessoa não especialmente religiosa e que se entusiasmou, como muitos, com os notáveis progressos da ciência e da técnica da sua época – ainda teve fôlego para proferir: “Deus é o sol”. O olhar discreto de Mike Leigh não se compromete com nenhuma tese sobre as relações entre a arte de Turner e eventuais epifanias religiosas nos seus encontros com as paisagens da natureza que o obrigavam a constantes e cansativas viagens, principalmente marítimas. Se ele procurava Deus através da luz que banhava as aterradoras cenas de naufrágio que pintou, se ele interpretava o universo pelo filtro das “filosofias naturais” que entraram em moda no século 19, ou se Turner simplesmente estava em busca da “luz perfeita” para seus quadros como qualquer pintor, essas conjecturas o filme deixa a cargo do público resolver. O grande barato de “Mr. Turner” é precisamente o banho estético a que o público é submetido em cada cena, principalmente nas interiores em que há sempre alguém puxando pesadas cortinas e abrindo janelas para instaurar novos e delicados espaços luminosos.

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Muitas zonas da vida privada de Turner permanecem na sombra e pouco documentadas, até por que ela passou grande parte do tempo se deslocando incessantemente pela Inglaterra e – é claro – Itália, onde desde a Renascença os artistas de toda a Europa buscavam experiências sensoriais e culturais obrigatórias para se atingir a maioridade artística. Por essa razão, o roteiro de “Mr. Turner” não oferece muitas surpresas ou reviravoltas dramáticas. Os contratempos das freqüentes viagens do pintor e que poderiam render mais ação são suprimidos, sobrando deles apenas algumas rápidas citações em meio a fleumáticas conversas. Resta também o retrato de uma vida mansa de pintor celibatário – sentimentalmente confuso e sexualmente ativo – e envolvido nas previsíveis picuinhas e polêmicas entre tradicionalistas e inovadores que qualquer grande artista de qualquer época é obrigado a aguentar.

Um espetáculo à parte em “Mr. Turner” é a recriação que Timothy Spall faz desse pintor quase-ogro, com seus resmungos irritadiços, sua desatenção divertida para com as “obrigações familiares”, sua patética exploração erótica da própria empregada, suas constantes citações à mitologia clássica a qualquer momento, suas zombarias e picardias no trato com colegas e desafetos, entre tantos traços que ajudam a compor uma das cinebiografias mais humanas e empáticas dos últimos tempos.

Depois de ter penado durante décadas em papéis secundários e que pareciam condená-lo eternamente à categoria de “coadjuvante de primeira linha” como atestam as suas participações na franquia “Harry Potter” como o monstruoso Peter Pettigrew – o Rabicho –, nos delírios góticos de Tim Burton “Sweeney Todd: o barbeiro demoníaco da Rua Fleet” (Sweeney Todd: the demon barber of Fleet Street, 2007) e “Alice no País das Maravilhas” (Alice in Wonderland, 2010), ou o seu inesquecível Winston Churchill em “O discurso do rei” (The king’s speech, 2010) de Tom Hooper, Timothy Spall não acreditava que seu nome teria alguma chance de vencer na categoria de ‘Melhor Ator Principal’ no Festival de Cannes deste ano, tanto que preferiu gozar férias na Holanda a comparecer ao evento. Quando recebeu a notícia da vitória, considerada por ele tão remota, declarou: “Finalmente me tornei num protagonista premiado, embora muito feio!”.

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Serviço:

“Mr. Turner”, de Mike Leigh, Reino Unido, 2014. Festival do Rio 2014

Próximas exibições:

Dia 29/09: Roxy 3: 14h e 19h Dia 30/09:

Estação Botafogo: 21h15m Dia 02/10:

Cinépolis Lagoon 5: 19h

* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria