Com Félix chafurdando na lama e Valdirene dando pinta de rica, a Globo mais uma vez copia Hollywood


Assim como seus pares, o novelista Walcyr Carrasco sabe como ninguém trazer para a telinha cenas que o cinema se encarregou de deixar na memória. Afinal, para que mexer em time que está ganhando?

Walcyr Carrasco gosta de brincar com arquétipos. Assim como alguns de seus colegas de profissão, seu olhar arguto costuma mirar naqueles personagens e situações que se consagraram ao longo dos séculos na literatura e, mais recentemente, no cinema e que, por isso mesmo, se forem dignamente trabalhados, são barbada certa. Agora, em “Amor à Vida”, ele retoma – ainda que em segundo plano – as comédias de costumes, justo aquelas que têm personagens em contextos invertidos, uma das marcas do cinema americano ao longo das décadas. Com o vilão Félix (Mateus Solano) passando o pão que o diabo amassou por ter perdido a vida boa e a desclassificada Valdirene (Tatá Werneck) brincando de perua milionária, ambos deslocados de seus ambientes originais, o autor evoca aqueles enredos nos quais protagonistas (ou vilões) endinheirados são despidos de frívolas frescuras, típicas de quem nunca precisou se esforçar na vida, para encarar o árduo dia-a-dia de quem necessita batalhar o prato de comida, ou são alçados à condição de fausto que sempre sonharam – as benesses de uma vida com cartão de crédito sem limite -, mas não tem savoir faire para vivê-la. Com isso, o dramaturgo acerta a bola no gol, nivelando a reflexão sobre riqueza e pobreza no patamar da comédia, recurso caro à dramaturgia de uma forma geral, sobretudo ao cinema.

Depois de divertir o público à custa do bardo William Shakespeare em sua “O Cravo e a Rosa” (atualmente em reapresentação no “Vale a Pena Ver de Novo”, com ótimos índices de audiência), onde transpunha a trama de “A Megera Domada” para os loucos anos 1920, e de trazer elementos das comédias cinematográficas para outras obras de época, como “Chocolate com Pimenta” , “Alma Gêmea” e “Gabriela”, o autor tem recriado as maquiavélicas reviravoltas das novelas mexicanas em “Amor à Vida”. Com enredo que se aproxima dos dramalhões vespertinos – e personagens com nomes à altura: Félix, Pilar, Paloma, César – o autor, cheio de manha, impõe ao público cenas dramáticas que, despidas da super produção realista que caracteriza as novelas globais, seriam risíveis. Se “Amor à Vida” fosse uma novela mexicana – tipo “Maria do Bairro” ou “A Usurpadora” -, os telespectadores possivelmente ririam de algumas das cenas mais inverossímeis da história da televisão. Deixar a sobrinha recém-nascida em uma caçamba de lixo? Roubar a filha da mãe e do pai de criação e fugir pelo Peru ameaçando jogá-la de um penhasco? Se vingar do marido temperando a dose diária de uísque com uma pitada de veneno? Coisa de produção da Televisa, certamente! Como se trata da Globo, ninguém pensa nisso. Mérito para Walcyr.

 (Foto: Ellen Soares/TV Globo)

(Foto: Ellen Soares/TV Globo)

Agora, para conferir humanidade ao vilão estereotipado Félix, o autor faz uso de mais um expediente chupado do cinemão. Afinal, como dizia o antigo chefão dos estúdios Fox, Daryl F. Zanuck: “Ninguém nunca perdeu dinheiro por subestimar o público”. Assim, Walcyr Carrasco vai direto na fonte e bebe daquelas comédias dos anos oitenta, estreladas por comediantes como Eddie Murphy Dan Aycroyd, atores que até podem estar meio sumidos hoje em dia, mas que cumpriram seu papel com louvor em décadas passadas, levando multidões às salas de exibição justamente com esse tipo de humor que o dramaturgo está reciclando. Não por acaso, gente que veio da telinha, se consagrando primeiro em programas como “Saturday Night Live” para, depois, ser absorvida por Hollywood. Ponto duplo, portanto, para  Carrasco.

Murphy e Aycroyd já haviam trocado de papeis, invertendo as posições de mauricinho rico e morador de rua miserável em “Trocando as Bolas” (Trading Places, Paramount, 1983), uma versão caricata, passada em uma Manhattan yuppie, de “O Príncipe e o Mendigo”, a obra-prima o escritor Mark Twain. Quando, ao perder as posses, o esnobe Félix vai parar na residência de subúrbio de sua ex-babá Márcia (Elizabeth Savalla) – justamente a mãe da piriguete pobretona que ficou rica através de um golpe do baú – se torna inevitável a comparação entre o rico que ficou na miséria e a pobre que se tornou madame sem estofo para isso, assim como na comédia de John Landis, protagonizada pelos dois ídolos dos cinema. Por o vilão para vender cachorro quente em carrocinha e a trambiqueira borra-botas morando em um condomínio de luxo foi uma sacada de mestre. Espertamente, ao deslocar o personagem de Solano para o habitat natural do de Werneck, Walcyr aproxima brilhantemente seus dois maiores trunfos: os avassaladores carismas daqueles que são o maior sucesso de “Amor à Vida”: Félix e Valdirene. E acaba plagiando, talvez sem querer,  Hollywood, que também atirou no mesmo balaio as duas maiores apostas  da comédia americana na época.

Não é de hoje que os novelistas da Globo assumem ares de roteiristas de Hollywood na televisão brasileira. Silvio de Abreu costuma ser enfático quando, em entrevistas, confessa que se inspira em clássicos do cinema para contar suas histórias. Suas comédias mais rasgadas, como “O Jogo da Vida”, “Guerra dos Sexos”, “Cambalacho” e “Sassaricando”, todas dos anos 1980 e “A Rainha da Sucata”, na virada dos 1990, eram verdadeiros compêndios de imbroglios típicos das comédias de costume americanas. Assim como “A Próxima Vítima” e a mais recente “Passione”, trazem elementos de rocambolescas histórias de mistério.

Em 1978, Manoel Carlos usou elementos de “Rebbeca” (Selznick International Picures, 1940), o livro de Daphne du Maurier que virou filme nas mãos de Alfred Hitchcock, para apimentar a parecidíssima história de “A Sucessora”, adaptada do romance de Carolina Nabuco. A misteriosa e vilanesca governanta que pintava e bordava e a ingênua mocinha, respectivamente Nathalia Timberg e Susana Vieira, praticamente  repetem os personagens de Judith Anderson e Joan Fontaine na novela global. Curiosamente, as mesmas Nathalia e Suzana agora fazem parte do elenco da novela das nove, outra que rouba cenas dos roteiros hollywoodianos.

No mesmo ano em que “A Sucessora” foi ao ar, outro autor, Gilberto Braga, também fazia o dever de casa, com o dedo apertando o botão de rewind do videocassete, à procura de cenas que faziam parte da sua bagagem de referências em tapes de obras clássicas e contemporâneas do cinema. No último capítulo de “Dancing Days”, o encontro final entre a protagonista Julia Mattos (Sonia Braga) e a vilã Yolanda Pratini (Joana Fomm) acaba em balaco, com as duas rolando pelo chão da boate que norteia a história até lavarem a roupa suja acumulada por anos. No final, fazem as pazes. Igualzinho à cena-clímax de “Momento de Decisão” (The Turning Point, Twentieth Century Fox, 1977), com Anne Bancroft e Shirley MacLaine.

Craque no uso deste tipo de artifício, Gilberto Braga gosta de usar citações cinematográficas em seu trabalho. A ambiciosa filha que repudia a mãe honesta, respectivamente Maria de Fátima (Glória Pires) e Raquel Accioly (Regina Duarte), um dos pontos altos de “Vale Tudo“, repetiam trechos, com diálogos inteiros atualizados, de personagens vistos em clássicos como “Stella Dallas” (United Artists, 1937) e “Imitação da Vida” (Imitation of Life, Universal, 1959). Aliás, o autor deve ser apaixonado por este último, pois, já havia usado cenas inteiras como inspiração para escrever outras de “Dona Xepa” onze anos antes.

Apaixonado pela era de ouro do cinema, Gilberto também xerocou outra referência memorável de Hollywood em “Dancing Days”:  o mordomo afetado da vilã Yolanda Pratini, interpretado por Renato Pedrosa, reproduz tiques e trejeitos de outro, igualmente obcecado pela patroa, vivido pelo ator-diretor Erich von Stroheim em uma das obras-primas da cinematografia, “Crepúsculo dos Deuses”. Seu criador, aliás, o austríaco Billy Wilder – um gênio em se tratando de refletir a vida e mordaz como ele só – é um daqueles diretores-roteiristas que costumam ser chupados de canudinho pelos novelistas da Globo, assim como outras cabeças férteis, igualmente hábeis na arte de fazer drama ou comédia: Ernst Lubtisch, Frank Capra e Blake Edwards – este último, um mestre na carpintaria de contar histórias através de gags.

Edwards – autor da série  original de “A Pantera Cor de Rosa” e de expoentes da sétima arte como “Bonequinha de Luxo” e “Victor ou Victoria” –, pode ser, inclusive, uma inspiração constante nas cenas de humor criadas por Carrasco, tão habilidoso quanto em criar episódios-pastelão, como aqueles em que personagens caipiras jogam uns aos outros na lama de um chiqueiro, uma das marcas de “Alma Gêmea”. Trechos exibidos ontem na novela das nove, como o da sogra que desconfia da fidelidade de Valdirene e trama um bote, escondida atrás da pilastra, poderiam fazer parte de uma das aventuras do Inspetor Clouseau e sua trupe. Como se vê, a máxima do pai da química moderna, Antoine Lavoisier de que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma’ é perfeitamente válida para a ficção.