Enquanto se prepara para os blockbusters de Natal, a mídia comemora os 25 anos da morte de sua rainha-bitch: Bette Davis


Soberana e símbolo dos estúdios da Warner Bros., bisca nº 1 dos melodramas femininos de Hollywood, atriz raçuda e insuperável, rival de Joan Crawford, irascível e encrenqueira: é tempo de lembrar Mrs. Davis, estrela-máxima numa época em que ser diva era muito diferente do bate-cabelo atual!

* Por Flávio Di Cola

Há certos filmes – bons ou maus – que tiveram o privilégio de acabar associados indelevelmente a um momento crucial da história do seu país. Para toda uma geração de norte-americanos que vivenciaram o ataque japonês à base naval de Pearl Harbor, a consequente entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra e os dificílimos primeiros meses de mobilização e derrotas perante a máquina de guerra nazista, o filme-símbolo foi e sempre será “Estranha passageira” (Now, voyager, Warner Bros., 1942, de Irving Rapper) que lotou os cinemas durante meses, tornando-se um dos casos mais célebres de escapismo, em que milhões de pessoas trocaram – lá no escurinho do cinema – a áspera realidade pelos 118 minutos de uma das histórias mais românticas da tela. E no centro desse fenômeno estava Bette Davis (1908-1989), a quintessência da heroína-patinho-feio que começa como uma mocréia recalcada e mal amada para se transformar num lindo cisne durante um cruzeiro para um Rio de Janeiro de sonhos, onde também descobre o amor na figura de um arquiteto bonitão, rico, carinhoso e…casado.


Cena final de “Estranha Passageira” com a troca de cigarros e o famoso bordão final “Por que pedir a lua se temos as estrelas?” (Reprodução)

A atriz foi um fenômeno das telas e alcançou o patamar máximo das estrelas, mesmo sem ter o biotipo necessário para se tornar sex symbol e, neste mês, a indústria do cinema comemora os 25 anos de sua morte, vítima de câncer, numa época em que atrizes maduras – como Anjelica Huston e Susan Sarandon – se esforçam desesperadamente para tentar ocupar no imaginário do público o lugar que Bette deixou vago.

Com Paul Henreid em cena de "Estranha Passageira" look de Orry-Kelly que ficou na história do figurino (Foto: Reprodução)

Com Paul Henreid em cena de “Estranha Passageira”: look de Orry-Kelly que ficou na história do figurino (Foto: Reprodução)

A data anda sendo lembrada nestes últimos dias pelos tabloides e cadernos de cultura em todo o mundo, e até uma entrevista de 1963 entre a lendária atriz e a jornalista Shirley Eder foi desengavetada pela emissora nortemericana PPS, em que a diva mostra mais uma vez porque não tinha papas na língua: “Sempre digo o penso, ainda que digam que em Hollywood não se possa fazer isso. Acredito que se pode ser respeitado na Meca do cinema dizendo a verdade, como em qualquer outra parte, ou eu não teria tido uma carreira”. E até mesmo o canal Telecine Cult anda programando sessões duplas de sucessos do mito, a dobradinha “A Rainha Tirana” (The Virgin Queen, 1955, de Henry Koster) e “A Malvada” (All about Eve, Fox, 1950, de Joseph L. Mankiewicz). Programinha imperdível para quem já viu (e não se cansa de ver) a estrela muitas vezes e para quem não está tão familiarizado assim com ela, que estrelou 91 longa-metragens no cinema e teve 32 participações na TV, atuando até o ano de sua morte.

A estátua de Bette Davis no Madame Tussaud, imortalizada em cera como Margo Channing, sua personagem em "A Malvada" (Reprodução)

A estátua de Bette Davis no Madame Tussaud, imortalizada em cera como Margo Channing, sua personagem em “A Malvada” (Foto: Reprodução)

Estranha passageira” foi mais um daqueles filmes em que Bette Davis desde a primeira cena subjugava o público para depois fazer das suas emoções gato e sapato, seja despertando o ódio mais mortal na assistência como em “Pérfida” (The little foxes, WB, 1941, de William Wyler), seja arrancando torrentes de lágrimas no papel de sofredoras abnegadas que a tudo renunciam pelo bem do outro como em “Tudo isso e o céu também” (All this, and heaven too, WB, 1940, de Anatole Litvak). Mas os roteiristas da Warner não paravam de imaginar novos desafios para a estrela suprema de Hollywood nos early forties. Por exemplo, em “Jezebel (Idem, WB, 1938, de William Wyler) no papel da arrogante Julie Marstom – que lhe deu seu segundo Oscar e que ela literalmente exigiu do chefão do estúdio Jack Warner como consolação por ter perdido o papel de Scarlet O’Hara em “E o vento levou…” –, Davis chegava ao requinte de iniciar a trama como a mais desagradável das vilãs para converter-se num anjo de arrependimento e bondade nos minutos derradeiros, num grand finale que será sempre lembrado como um dos mais inverossímeis da história do cinema, mas para o qual o público era arrastado crédulo e indefeso graças à garra de Bette.

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O hit de 1981 de Kim Carnes “Bette Davis eyes” exalta precisamente o ponto de onde emanava o star power de uma estrela que antes de aportar em Hollywood já era um “monstro do teatro” e que atingiu o cume sem precisar ser bonita e sexy: o par de olhos enormes de um azul aguado onde podiam transitar a pior das vilanias como  a mais sublime entrega amorosa. Mas o paradigma que Davis criou e legou para a eternidade do cinema foi o da “bitch” insolente que se insurge contra a mediocridade e as limitações da vida, destruindo durante o seu percurso não só outras pessoas como também a si mesma.

Maeca nas telas: os penetrantes olhos da atriz viraram hit pop nos eighties (Foto: Reprodução)

Marca nas telas: os penetrantes olhos da atriz viraram hit pop nos eighties (Foto: Reprodução)

O que seria do cinema sem as cenas antológicas de desatino que protagonizou? Em A carta (The letter, WB, 1940, de William Wyler) ela entra em cena 50 segundos depois dos créditos descarregando como uma harpia esvoaçante todo o tambor de balas sobre as costas do amante que rasteja pela porta, completamente abatido, e que momentos antes a rejeitara. Em “A filha de Satã” (Beyond the forest, WB, 1949, de King Vidor), usando uma inacreditável peruca preta para ressaltar a malignidade da mulher ambiciosa e inconformada com a vidinha que o seu fracassado e provinciano marido (Joseph Cotten) lhe proporciona, Bette pronuncia uma das suas falas mais famosas ao rodar os olhos pela sua salinha de estar decorada com saldos, segurando desdenhosamente uma lixa de unhas e com um olhar de escárnio até hoje insuperável: “What a dump!” [Que pocilga!]. Já no clássico camp O que aconteceu com Baby Jane? (What ever happened to Baby Jane?, WB, 1962, de Robert Aldrich), em que Bette Davis e Joan Crawford levaram para tela uma legendária rivalidade fabricada em grande parte pela própria Warner Bros., Bette foi indiscutivelmente coroada a rainha-mãe do trash a partir do momento em que serviu uma ratazana em decomposição para o almoço da irmã paralítica (Crawford), mantida prisioneira numa mansão gótica caindo aos pedaços.


Ratazana da maldade: a famosa cena da iguaria pouco calórica oferecida por Bette Davis à sua rival Joan Crawford, com quem contracena em “O que aconteceu com Baby Jane?” (Reprodução)  

Mas não é só na zombaria fria ou no desacato histérico em que é possível encontrar o melhor de Bette Davis. Os roteiristas do estúdio sempre davam um jeito de incluir nos filmes dessa estrela do buliçoso signo de Áries uma cena de bofetada, e daquelas muito bem dadas. Vale a pena rever “Jezebel” só pelo espetacular tapa na cara que ela aplica num apático e resignado Henry Fonda depois do baile em que ela o desmoralizara perante toda a sociedade de New Orleans, ou mesmo “Meu reino por um amor (The private lives of Elizabeth and Essex, WB,1939, de Michael Curtiz) em que no papel da enrugada e calva rainha Isabel, estapeia colericamente o lindo rostinho de Errol Flynn na frente de toda uma corte perplexa e aterrorizada com o destempero da tirana.

Competitiva! Davis na famosa cena do baile em "Jezebel", ao lado de Henry Fonda: o filme é em P&B, mas, no enredo, seu vestido é vermelho e choca os convidados. Faz todo sentido. Se a atriz foi recusada para o papel de Scarlett O'Hara em "...E o vento levou" e esta usava um vestido feito de cortina numa festa, que Bette desse a palavra final e arrasasse nas telas com vestido espalhafatoso, mesmo que fosse sob os reprovadores olhares das puritanas (Foto: Reprodução)

Competitiva! Davis na famosa cena do baile em “Jezebel” ao lado de Henry Fonda: o filme é em P&B, mas, no enredo, seu vestido é vermelho e choca os convidados. Faz todo sentido. Se a atriz foi recusada para o papel de Scarlett O’Hara em “…E o vento levou” e esta usava um vestido feito de cortina numa festa, que Bette desse a palavra final e arrasasse nas telas com um vestido espalhafatoso, mesmo que fosse sob os reprovadores olhares das puritanas (Foto: Reprodução)

É claro que essa imagem artística turbulenta e irrefreável cultivada genialmente por Bette Davis para a tela e para deleite de legiões de mulheres no mundo inteiro que experimentavam – devido à guerra e pela primeira vez em suas vidas – as vantagens da ausência dos homens na administração de suas existências, era o reflexo de uma personalidade rebelde e volúvel, segundo se depreende dos relatos contidos nos meticulosos memorandos administrativos da Warner Bros.: discussões e contendas intermináveis com os executivos, os produtores, os diretores, os roteiristas e até com os figurinistas eram comuns durante as filmagens com Bette. Enquanto estabelecia parcerias artísticas com colegas como Olivia de Havilland ou Mary Astor, hostilizava abertamente as “inimigas”, como a célebre atriz sulista Miriam Hopkins, uma estrela tão inteligente e temperamental como Davis, a ponto de prepararem e desmontarem armadilhas uma para outra nos sets de filmagem.


Nos anos 1970, Vincent Price brinca com Bette Davis em um tributo da indústria cinematográfica à estrela (Reprodução)

Por isso, o seu papel como a despótica estrela da Broadway Margo Channing de “A malvada é frequentemente citado como um espelho bem fiel da própria Bette Davis, cuja personalidade inflamável intimidou na vida real – assim como na trama desse clássico absoluto – a pobre e indefesa Marilyn Monroe que dava seus primeiros passos rumo ao estrelato. Conta-se que Marilyn, numa das cenas em que tinha que contracenar com Bette, ficou tão nervosa com a carranca desta que acabou se desconcentrando completamente – o que, convenhamos, não é tão difícil assim no caso da diva loura –, tendo que repetir onze vezes o mesmo take, irritando ainda mais a veterana atriz. Encerrado esse martírio, Marilyn correu para o banheiro do set, não aguentou e vomitou feio. What a dump!

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“Fasten up your seatbelts, it’s going to be a bumpy night”