Downton Abbey: o mundo é das mulheres! Nessa quarta temporada, são elas que fazem a diferença!


Com a saída do Matthew Crawley, que representava a modernidade dos novos tempos, são flappers e mulheres independentes que sintetizam a essência do século 20 na série!

Desde a primeira temporada, “Downton Abbey” (idem, ITV, 2010-) tem sido objeto de discussões da crítica, assim como de verdadeira devoção dos fãs, que demonstram se deliciar da impecável reconstituição de época, do charme nesse ambiente aristocrático e do roteiro inteligente de Julian Fellowes, seu criador e principal escritor, como se estivessem à mesa de algum rega-bofe pós-vitoriano. Entretanto, a atração tem mais qualidades do que o sofisticado apuro visual e aquelas tiradas mordazes de alguns personagens, típicos detentores – entre nobres e criadagem – daquela fleuma britânica, com a fina ironia que se tornou marca dos ingleses ao longo dos séculos, representada, sobretudo, pela magistral atuação de Dame Maggie Smith, intérprete da impagável Condessa Viúva de Grantham. É o que pode ser conferido nesta quarta temporada, recém-iniciada no Brasil, através do canal a cabo GNT aqui no Brasil.

Maggie Smith: sua matriarca continua responsável por pérolas que funcionam como o contraponto entre o velho e o novo mundo (Foto: Divulgação)

Maggie Smith: sua matriarca continua responsável por pérolas que funcionam como o contraponto entre o velho e o novo mundo (Foto: Divulgação)

Mais do que um panorama das relações entre nobres nem tão abastados e empregados perplexos com as transformações sociais, a série é um primoroso relato da evolução do comportamento em um tempo nem tão distante assim – as décadas de 1910 e 1920 –, revelando, em seus pormenores, o quanto a sociedade mudou da água para o vinho ao longo do século 20, desembocando na revolução de costumes que virou tudo de pernas para o ar, nos anos sessenta. Tudo isto faz o período retratado no seriado parecer tão distante quanto as lutas medievais de “Game of Thrones”(idem, HBO, 2011-) ou as maracutaias do poder na Itália renascentista de “Os Bórgias” (The Borgias, Showtime, 2011-2013). E se as três primeiras temporadas, que vão de 1912 ao início dos anos 20, focam o caminhar do pensamento tradicional para o contexto de uma sociedade pós-revolução industrial, é possível afirmar que na nova fornada de episódios são as mulheres que comandam o seriado, com até mesmo a Condessa Viúva – que reproduz os hábitos do velho mundo – tentando se ajustar a esse novo momento. É caso de vida ou morte, e quem não souber nadar nesse mar corre o risco de se afogar em alguma onda traiçoeira e morrer na praia (da Cornualha).

Esta temporada já começa com uma baixa no elenco: o mocinho Matthew Crawley morre em um acidente de carro na última cena do ano anterior, fruto do desejo de Dan Stevens, o ator que o encarnava, que resolveu alçar novos voos no cinema americano. Dado o carisma do astro, muitos se perguntaram como a série iria sobreviver sem ele, mas o inspiradíssimo roteiro tem se revelado acima de qualquer desfalque no elenco. E, considerando que o sufrágio feminino é coisa recente dentro do contexto do seriado – as mulheres inglesas passaram a ter direito ao voto, ainda que parcial, em 1918, por conta de sua participação nos esforços de guerra – é natural que, se os homens, como o Conde de Grantham (Hugh Bonneville) e o abnegado mordomo Charles Carson (Jim Carter), têm dificuldade para entender como o mundo mudou, as representantes do sexo feminino estão muito mais aparelhadas, prontas para as novas batalhas que virão. Tudo a ver. Matthew tinha sido construído pelo criador da série como a catapulta para esse sopro de modernidade e, na sua ausência – e com os machos-alfa ainda apegados à velha cartilha –, nada melhor do que apelar para o escrete das garotas e vitaminar a história.     

Entre os nobres, essas mudanças serão sentidas logo de cara. Lady Mary (Michelle Dockery), como herdeira legal de Matthew, será forçada a assumir uma condição de comando no clã, ainda que se identifique com aqueles antigos valores da Inglaterra, nos quais a esposa ficava sempre a um passo atrás do marido. E estão previstos embates entre ela e seu pai, já que este terá dificuldade em aceitar a divisão do poder com uma mulher. E, se a moderninha de plantão, a caçula Lady Sybil (Jessica Brown Findlay) morreu de parto no início da terceira temporada, Fellowes resgata um personagem que aparece en passant neste mesmo ano, Lady Rose MacClare (uma prima novinha, interpretada por Lily James) e a introduz no corredor de passagem entre a área social e os aposentos dos empregados. Como uma adolescente que se criou durante o burburinho desta revolução pós-guerra, Rose é naturalmente interessada por tudo aquilo que lhe cerca, independente do atestado de origem. E, claro, as convenções sociais não são suficientes para lhe preencher as tardes. E, principalmente, as noites. Se viver nesta época significa admitir a migração do universo da representação social através das certidões de nascimento para uma nova realidade, repleta de oportunidades para quem sabe exercitar seus próprios talentos, Rose é a flapper que, alheia à caretice da separação de classes, dá uma banana para essas formalidades e bate as asinhas, pronta para explorar um contingente de possibilidades, como um passarinho que assovia de galho em galho. Amante da música que representa esses novos tempos – o jazz –, ela provavelmente vai causar barulho ao longo dos próximos capítulos e atrair a atenção do lacaio bonitão, Jimmy (Ed Speleers).

Lady Mary (Dockery), sua mãe Cora (Elizabeth McGovern) e Lady Edith (Carmichael): são seus olhos que se voltam para a nova ordem social (Foto: Divulgação)

Lady Mary (Dockery), sua mãe Cora (Elizabeth McGovern) e Lady Edith (Carmichael): são seus olhos que se voltam para a nova ordem social (Foto: Divulgação)

Mas, entre as mulheres, ninguém mais parece significar o próprio cerne da série que a irmã do meio, Lady Edith Crawley (Laura Carmichael). De personagenzinha secundária e indigesta, que inveja a irmã mais velha e bem mais bonita, ela vem de desenhando como alguém pega carona nessa brisa, aberta ao tipo de mentalidade que se configura nesta nova sociedade, desde que foi abandonada no altar e enterrou o sonho de se tornar uma dama que frequenta saraus. Sua transformação – para melhor! – na história não só surpreende sua família como alimenta a imaginação dos fãs, que a vêem como aquela trufa empoeirada no fundo da caixa de bombons que, ao ser mastigada, revela insuspeitos licores capazes de suscitar a imaginação. Grata surpresa. Desde o périplo do casamento que não se realizou, ela já conseguiu um emprego, se tornou colunista-escritora, enamorada do dono casado do jornal (já que seus princípios ainda não permitem que ela se torne amante) e ruma à sua independência enquanto indivíduo. Agora é só o público dar tempo ao tempo e esperar o que vai acontecer.

Lily James: sua flapper inconsequente Rose acompanha os novos tempos de metrópoles frenéticas (Foto: Divulgação)

Lily James: sua flapper inconsequente Rose acompanha os novos tempos de metrópoles frenéticas (Foto: Divulgação)

Em contrapartida, ainda está faltando Fellowes estabelecer quais personagens do andar de baixo sintetizarão esse momento de mudanças, já que as serviçais mulheres estão alguns decibéis abaixo do sopro de modernidade daquelas que flanam pelos andares superiores. Anna Bates (Joanne Froggatt) talvez? Ou alguma das ajudantes de cozinha, já que a íntegra governanta Sra.Hughes (Phyllis Logan) já está velha demais para mudar de cabeça? Ou o submordomo gay, Thomas Barrow (Rob James-Collier)? Bom, seria bacana, mas, nesse caso, os compêndios de história do comportamento estão aí para deixar claro que, na realidade, esse “plôt” só começaria a fazer algum sentido se o enredo se deslocasse uns 40 anos à frente, quando a contracultura se encarregasse de pregar o amor livre sem fronteiras.