Cacá Ottoni fala sobre papel em “Amor de mãe” e realidade nas escolas públicas: “Descaso do estado”


“Eu lembro de ter lido um depoimento do avô da Agatha Vitória, menina que foi baleada no Alemão, dizendo que a neta era muito estudiosa, só tirava 10 e adorava ir para escola. Ou seja, mesmo diante de todas as dificuldades do meio público e todo o descaso do estado, ela percebeu, seja por mérito da família, de uma professora ou dela mesma o prazer de aprender. Mas foi morta por uma bala de fuzil na Kombi”, comenta a atriz

*Por Karina Kuperman

Em “Amor de mãe”, Joana é uma menina que divide seu tempo entre a escola pública e o trabalho, no bar do pai. Cacá Ottoni, sua intérprete, sabe que é uma realidade que representa muitos jovens no Brasil. “A novela toda é muito real. O que mais me encanta nesse trabalho, dentre todos os encantamentos – e olha que são muitos, é o fato de retratar a realidade de muitos brasileiros de verdade. A Joana é uma  jovem estudante secundarista do Colégio Estadual Luiz Gama que vive o conflito de ter que convencer o pai de que ela quer estudar. O pai, Seu Nuno (Rodolfo Vaz), prefere que ela se atenha ao serviço do bar. Joana resiste e consegue levar os estudos mesmo assim, mas se intimida diante de figuras de poder, como o pai e a professora. Em nenhum momento ela confronta diretamente o pai. Sempre se mantém respeitosa, o chama de senhor e foi criada sozinha por ele devido à morte da mãe.  Inicialmente, ela, assim como os demais alunos, demonstra não enxergar qualquer possibilidade de mudança em relação a sua realidade. Mas a chegada da nova professora de história, Camila (vivida por Jessica Ellen), inaugura uma grande virada na vida de todos. Ela começa a perceber suas aptidões, como por exemplo a facilidade com tecnologias. Ela desenvolve um aplicativo para auxiliar a amiga que não tem com quem deixar o filho para estudar. A partir do contato com a professora os alunos vão se empoderando, se tornando cada vez mais donos daquele espaço, entendendo os seus direitos…”, analisa.

Cacá Ottoni (Foto: Karen Gadret)

Realidade, de fato, não falta na trama de Manuela Dias. Logo na primeira semana da história, o público viu cenas impactantes de um tiroteio interrompendo aulas da escola pública. “Foi bem forte passar por essa situação aparentemente absurda, mas que infelizmente é comum no país e mais ainda no Rio. A gente vive um momento de descaso total do próprio estado em relação às comunidades, a periferia e a educação. Essa cena fala sobre todos esses abandonos. Eu lembro de ter lido um depoimento da avó da Agatha Vitória, menina que foi baleada no Alemão, dizendo que a neta era muito estudiosa, só tirava 10 e adorava ir pra escola. Ou seja, mesmo diante de todas as dificuldades do meio público e todo o descaso do estado ela percebeu, seja por mérito da família, de uma professora ou dela mesma o prazer de aprender. Mas foi morta por uma bala de fuzil dentro de uma Kombi. E existem muitas Ágathas no Brasil. Retratar alunos que passam por esse tipo de risco todos os dias, e não apenas as questões mais superficiais próprias dessa faixa etária é fundamental num momento como esse”, destaca ela, que conquistou o papel através de um teste: “Fui chamada pela produtora Marcela Bérgamo pra fazer um teste. Já conhecia a Manu Dias por conta de outro trabalho e desde então a admiro muito como profissional, mulher, mãe, além de acompanhar como espectadora sua linda trajetória. Eu já era fã dela antes. Assim fica mais fácil compreender o nível da minha felicidade”.

(Foto: Reprodução)

Antes de viver Joana, ela integrou o elenco de tramas como “Lia” e “Jesus”, na Record, “Santo Forte”, na Sony, e “Malhação”. Será que agora a pressão é maior? “A cada vez que me perguntam isso eu tenho mais medo. Mas o prazer de fazer é tão maior do que o medo que tenho acalmado um pouco o coraçãozinho. Trabalhar com quem admiramos há anos gera nervosismo, mas também crescimento. Crescer dói, não tem jeito. Mas não deixo o medo atrapalhar meu trabalho e me divirto muito durante as gravações”, explica ela, que já tem uma história no cinema: ganhou o prêmio de “melhor atriz” no Festival Cine Maracanaú por “Caubóis do Apocalipse” e foi indicada a “melhor atriz” no festival de cinema de Los Angeles (LABRFF) por “Canastra Suja“. “É sempre muito bom ser reconhecida pelo trabalho. Fiquei muito feliz com as indicações, até porque tenho um carinho especial por todos os trabalhos que fiz. Cada um me trouxe novos conhecimentos, novas pessoas, muitos amigos, experiência, enfim… O prêmio em si não é nada perto de tudo o que ele representa. É a celebração de uma troca artística. Pensar que aqueles primeiros encontros na sala de ensaio, no palco vazio, com mil inseguranças deram origem a esse trabalho que alguém assistiu e gostou a ponto de sentir vontade de premia-lo é fantástico”, comemora.

(Foto: Karen Garret)

Além disso, ela também tem uma vasta experiência no teatro e, inclusive, está em cartaz no Rio com o espetáculo infantil “Ana Fumaça Maria Memória“. “Levo para a TV o estado de jogo. Apesar de serem áreas diferentes de atuação, elas se aproximam no que diz respeito a presença cênica. Nessa novela por gravarmos sempre com uma única câmera, por exemplo, as necessidades e desafios da atuação tornam-se mais próximas do teatro e do cinema. Com uma câmera só e muitos planos sequência as ações precisam ganhar mais concretude, tudo tem que ser de verdade pra não sermos revelados. Essa novela é bem cinematográfica, tanto esteticamente quanto em termos de dinâmica da cena mesmo”, diz.

A atriz vive Joana em “Amor de mãe”(Foto: Karen Gadret)

Pensa que acabou? Pois, em 2020, Cacá poderá ser vista em “O auto da mentira“, dirigido por José Eduardo Belmonte. “É um longa inspirado nos causos do Ariano Suassuna. O próprio contava essas histórias em palestras. algumas inclusive são bem conhecidas pela internet e a Tati Maciel adaptou realocando essas pérolas para diferentes ambientes, situações e personagens. A minha história, intitulada ‘Disney’ é a quinta e última do filme.  Minha personagem é a Lorena, uma jovem estagiária de uma agência de publicidade. Lorena é totalmente inadequada e as vezes se torna até ‘clownesca’ dentro daquele espaço. Quanto mais ela tenta de inserir, mais dá bola fora. Até que ela resolve mentir pra tentar ser incluída no grupo cool da agência e vive uma série de confusões em função disso. Estou muito curiosa pra assistir. O texto é ótimo, a direção do Belmonte também, e eu ainda tive a chance de contracenar com o Luís Miranda, muita sorte”.

Com tudo isso, ela também arranjou tempo para trabalhar como palhaça no programa “Enfermaria do Riso”, no hospital dentro da Unirio. “Me formei lá e, em 2011 conheci o trabalho, fiquei apaixonada, me inscrevi na seleção e passei. Ao contrário do que muitos pensam íamos para o hospital para aprendermos e sermos ajudados. O paciente por vezes descobria uma força aparentemente inexistente de ajudar aquelas figuras sempre inadequadas. Mas em outras circunstâncias nossa presença tornava-se valiosa simplesmente por aceitarmos um ‘não’ de uma criança ao aparecermos em sua porta. Infância e hospital não combinam nada, mas muitas crianças desenvolvem doenças ou problemas que tornam essa estadia, ainda que injusta, necessária. Nesse caso, elas não podem dizer não ao médico, nem aos medicamentos, procedimentos ou decisões dos pais. Mas aos palhaços elas podem exercer sua autonomia. Podem rir com a gente, nos ajudar a sair de uma enrascada ou simplesmente julgar melhor irmos embora. E nós íamos, muitas vezes, até que elas quisessem mudar de opinião”, conta.

“Até o primeiro ano do ensino médio eu pensava em fazer artes cênicas ou letras ou cinema ou filosofia ou medicina. Mas fui cada vez mais desacreditando nessa possibilidade. Meu avô era médico e trabalhou inclusive no mesmo hospital que eu, o Gaffrée Guinle. Essa relação com o universo hospitalar contribui pro meu interesse, mas sem dúvida foi o aprofundamento que o programa trouxe que me fez admirar a arte da palhaçaria para todo o sempre. Sem exageros. A figura do palhaço, esse ser transgressor por natureza, dentro do espaço do hospital é muito potente. Justamente por fugir daquele assistencialismo clássico, da pessoa que vai ajudar quem está doente, o que já imediatamente a coloca em uma posição superior ao enfermo. O palhaço vai ser ajudado. Ninguém, por mais grave que seja a situação clínica, consegue estar mais encalacrado do que o palhaço. Então o paciente se torna potente perante àquela figura torta. Eu amava trabalhar na enfermaria, voltaria sem dúvida a atuar no hospital”.