Atores da série Netflix sobre tragédia da Boate Kiss, irmãos Miguel e Fernando Roncato revelam impactos emocionais


‘Todo dia a mesma noite’ está em sexto lugar no mundo como a série mais assistida da plataforma de streaming. Mistura ficção e realidade sobre o incêndio na boate que matou 242 pessoas, tragédia que completa 10 anos. Miguel interpreta uma das vítimas do incêndio. Fernando, por sua vez, vive o vocalista da banda, que segurava o artefato que deu origem ao fogo. Nesta entrevista, eles revisitam a trajetória artística que começou em Nova Prata, Rio Grande do Sul, falam da importância do trabalho e revelam como foram impactados emocionalmente. “Até hoje todos estão sem respostas, então a série vem para iluminar essas vidas, por memória, por justiça e para que não se repita”, diz Fernando

*Por Brunna Condini

Ao entrevistar os irmãos Miguel e Fernando Roncato, que estão no elenco de ‘Todo Dia a Mesma Noite‘, série da Netflix inspirada na tragédia da Boate Kiss, que completou 10 anos, é impossível não se emocionar lembrando daquele fatídico 27 de janeiro de 2013. O incêndio que ceifou 242 vidas e feriu outras 636 pessoas na boate, localizada na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, abalou o Brasil e tomou uma repercussão de nível mundial. Sabendo-se que 90% das vítimas tinham entre 18 e 30 anos, é inevitável imaginar quantos sonhos foram interrompidos, o impacto das perdas entre as famílias e tudo o que esses jovens viveram naquela noite. Fernando Roncato interpreta Roberto, o vocalista da banda que segurava o artefato que deu origem ao fogo. Já Miguel, faz Felipinho, uma das vítimas fatais. Os irmãos vivenciaram no set uma recriação de momentos daquela noite e do que se seguiu pós tragédia, tudo baseado no livro que dá nome à produção, escrito pela jornalista Daniela Arbex.

“Apesar de termos tido toda uma preparação, essa história mexe, é tudo muito triste. Minha maior característica como ator é a intensidade cênica, uso muito a minha emoção e me entreguei totalmente para poder viver aquilo ali. Haviam centenas de figurantes bem na minha frente, diante do palco, precisava estar no comando daquilo, afinal era um show, mesmo que como ator eu já soubesse o que vinha depois. Acabei tão dentro desse processo, sentindo essa carga emocional e física da história, que adoeci depois das filmagens”, revela Fernando, sobre a experiência na série que está em sexto lugar no mundo como a mais assistida da plataforma de streaming. “Até hoje todos estão sem respostas, então a série vem para iluminar essas vidas, por memória, por justiça e para que não se repita”.

Sobre famílias que desaprovaram a produção, alegando que não foram consultadas, criticando a comercialização da tragédia pela Netflix, e também ressaltando que voltaram a ter crises de ansiedade e pânico após a exibição do trailer na TV, Miguel não se estende: “Como atores não cabe nos pronunciarmos em relação a isso, e não temos autonomia para falar sobre esse assunto”.

Miguel e Fernando Roncato estão na série 'Todo dia a mesma noite' da Netflix (Foto: Fernanda Araújo)

Miguel e Fernando Roncato estão na série ‘Todo dia a mesma noite’ da Netflix (Foto: Fernanda Araújo)

Dividida em cinco episódios, a série, que mistura realidade e ficção, retrata a história de quatro familiares específicos. “Meu personagem foi inspirado na história de um menino que também faleceu no banheiro da boate na tentativa alucinada de encontrar a saída. Foi uma responsabilidade enorme e muito difícil, porque custei a ter um distanciamento e o processo foi duro. O mais difícil foi separar a nossa relação humana do lado profissional, precisamos ter um distanciamento do personagem, até por que em algumas cenas anteriores à tragédia, interpretamos jovens felizes que não sabiam o que iria acontecer. Essas foram as cenas mais duras, para todos foi muito difícil, mas acho que conseguimos um resultado respeitoso e digno”, diz Miguel, que, como o irmão, é natural de Nova Prata, Rio Grande do Sul.

O ator de 29 anos também teve dificuldades em ‘não levar o trabalho para casa’ e divide aqui a forte experiência: “Um um dos dias de filmagens, ao sair do set, era final da tarde, cheguei em casa, tomei um banho e custei a tirar aquelas imagens da minha cabeça, esse foi um dia bem pesado. Tivemos um suporte emocional muito grande no set, psicológico, e um auxílio técnico, que permitiam que as sequências fossem divididas de maneira que nos sentíssemos emocionalmente contidos e precisos. Além disso, a união entre a equipe que trabalhou de uma maneira linda e respeitosa, nos ajudou a conduzir da melhor forma”, recorda.

Eu demorava para dormir nos dias que filmávamos as sequências internas e externas da boate, e, principalmente, as cenas no banheiro que tinham muita ação, emoção e foram o auge desse processo. Nesses dias foi muito difícil desligar – Miguel Roncato

Miguel Roncato, como Felipinho, em cena da série 'Todo dia a mesma noite', da Netflix (Divulgação/ Netflix)

Miguel Roncato, como Felipinho, em cena da série ‘Todo dia a mesma noite’, da Netflix (Divulgação/ Netflix)

“As cenas que gravei com as famílias na série também foram muito difíceis. Nós viajamos para Bagé e foi a última parte que filmamos, já tínhamos feito a sequência da boate, mas quando a gente viajou para o Rio Grande do Sul, com o nosso núcleo familiar, e íamos gravar no sítio, vi aquelas crianças, montei no cavalo e foram aquelas cenas que quando eu fechava os olhos, imaginava: tenho que contar essa história, mostrar esses jovens felizes e é importante honrar a memória deles e de certa forma eternizar isso tudo”.

Fernando comenta ainda sobre o processo de interpretar o vocalista da banda que segurou no palco o artefato pirotécnico que provocou o incêndio. “Acredito muito em energia e acho que todas as pessoas que estavam nesse projeto precisavam estar de alguma forma, porque existia uma identificação e respeito muito grandes. Foi um desafio viver alguém que existe nessa história, sem colocar o meu olhar diante dos fatos, respeitando a dramaturgia. Nossa função era entregar a verdade desses personagens para ajudar a contar essa narrativa e não seja esquecida. No meu caso, tive de levar a alegria através da música para aqueles jovens extravasarem, naquele momento que era de divertimento, jovialidade e energia, mas já com a cabeça no que sabemos que ia acontecer. Mantive meu coração muito aberto para tudo o que pude sentir durante o processo, e é muito importante que essa história agora esteja sendo abraçada do jeito que está”, frisa.

Fernando Roncato em cena da série 'Todo dia a mesma noite' (Divulgação/ Netflix)

Fernando Roncato em cena da série ‘Todo dia a mesma noite’ (Divulgação/ Netflix)

Um pelo outro

Miguel fala da satisfação em ter o irmão Fernando neste trabalho com ele, embora não tenham contracenado. “Ter alguém ali de sangue, trouxe uma segurança subconsciente. Já havíamos trabalhado juntos algumas vezes e saber que podemos contar um com o outro dá uma estabilizada maior. Minha primeira novela foi ‘Passione‘, na Globo, em 2010, depois fomos para a Record e trabalhamos juntos por lá também”, conta. E Fernando acrescenta: “Sou apaixonado pelo Miguel, além de ser meu irmão, é um exímio ator, é uma honra trabalhar com ele. Acho que cada um de nós tem as próprias características enquanto artistas, mas estamos ali um pelo outro. O apoio dele foi extremamente importante. Tê-lo ali nas filmagens e ter trocado com Miguel me ajudou a dar uma equilibrada nessa energia”, lembra ele, que tem 35 anos e é o irmão mais velho.

Filhos da Glaucia e do Valdir, os atores revisitam a própria história. “Tivemos uma infância culturalmente rica. Somos fãs dos nossos pais, aliás a família é muito importante para nós, fizemos questão de conservar nossos valores familiares, já que saímos de casa muito cedo. Ainda crianças, tivemos contato com o teatro, a dança e oportunidades de nos desenvolvermos artisticamente. Nossa avó, a dona Eliete, foi a nossa referência de artista, porque ela dança, canta, faz um pouco de tudo. Hoje está com 81 anos, lúcida e assistindo a série falou:  “Eu aguentei, viu? Vi até o fim. Consegui. Entendi que aquilo ali não eram vocês e que estavam contando histórias de jovens que infelizmente se foram”. Ela é bem sensível”, conta Miguel. “Essa relação com as artes foi extremamente importante. Por exemplo, nessa série eu canto, e na infância, no tempo da catequese, comecei a cantar na igreja para experimentar, sempre acreditei nessa pluralidade do ser humano”, pontua Fernando.

Miguel e Fernando Roncato com os pais Glaucia e Valdir (Acervo pessoal)

Miguel e Fernando Roncato com os pais Glaucia e Valdir (Acervo pessoal)

Pensando na trajetória dos dois, Fernando destaca que a do irmão foi mais retilínea na arte. “Eu fui jogar futebol aos 10 anos, achei que ia ser jogador para o resto da vida. E fui durante um tempo, me profissionalizei, viajei e já morei em 14 lugares diferentes até chegar aqui no Rio. Joguei na base do Grêmio, no Nacional de São Paulo,  Atlético Mineiro, foram alguns times de base em que me profissionalizei”, revela.

“O Miguel resolveu extravasar o planeta e logo eu arrumei um jeito de ficar perto dele. Acho que talvez ele tenha me puxado para a atuação. Eu sempre tive envolvimento com teatro, mas vendo ele em espetáculos em São Paulo, isso acabou me levando meio que inconscientemente para as artes. Lá nos profissionalizamos e fizemos algumas peças, depois viemos para o Rio de Janeiro e o Miguel foi aprovado para fazer novela ‘Passione‘. Em 2010, nós dois realmente mergulhamos na carreira, aproveitando as oportunidades. E agora engatamos esse projeto que eu acho que foi mais uma missão de vida do que exatamente só o  trabalho em si. Queremos mais trabalhos juntos, contracenando desta vez”.

Miguel e Fernando Roncato dividem o amor pela carreira e a família (Foto: Fernanda Araújo)

Miguel e Fernando Roncato dividem o amor pela carreira e a família (Foto: Fernanda Araújo)

E finaliza: “Nossos pais sonharam nossos sonhos juntos, eles acreditaram. Imagine, lá atrás, em uma cidade de 20 mil habitantes na época, dois jovens saindo de casa atrás de um sonho, que poderia ser inatingível. Sempre cuidamos um do outro. Mas nossos pais bancaram essa escolha junto com a gente, e se chegamos aqui, também foi graças a eles. Carregamos a nossa cultura e nossas tradições para todos os lugares que a gente vai”.