Rafaela Azevedo: atriz provoca a masculinidade tóxica e os redpills com um feminismo contundente


Rafaela Azevedo ficou famosa nas redes sociais por conta da sua personagem, Fran, que subverte a lógica feminina e por meio da mesma acidez que os homens destinam às mulheres, tece comentários ferinos aos rapazes, como forma de evidenciar o machismo estrutural. Atriz também aborda de forma crítica os redpills, uma espécie de “confraria macho” existente nas redes sociais, que a fim de afirmar sua masculinidade, provoca misoginia e reitera comportamentos deletérios às mulheres. Artista fala ainda sobre o papel da mulher no humor, já que, historicamente, foi dedicado a elas os secundários ou silenciados. Tanto que exemplifica com famoso “Cala a boca, Magda”, do Sai de Baixo, para retratar a opressão que elas vivem neste segmento dramatúrgico

*por Vítor Antunes

Falas ferinas e intensas luta contra o patriarcado, e humor na inversão dos papéis atribuídos aos homens e às mulheres na sociedade. Assim coloca-se Rafaela Azevedo. Atriz e humorista, aos 32 anos anos ela questiona o status quo e os privilégios dos quais dispõem os homens ao fazer um humor que os satiriza e expõe o machismo estrutural. Em “King Kong Fran“, sua peça, encenada no Rio de Janeiro, a atriz, que também assina o roteiro e co-dirige o espetáculo e fala sobre a necessidade do letramento feminista. “O feminismo avançou, sim, mas ainda há coisas a serem tratadas. Os direitos ainda não estão equiparados. A realidade, ela não é igual para todas as mulheres. Se essa mulher tem um poder aquisitivo maior, se ela é branca, ela acessa outros lugares, mas ainda assim é assediada e oprimida. Ainda que menos suscetível a uma mulher preta, por exemplo”. Diante do sucesso da personagem, “Rafa” quer investir, também nas outras plataformas de audiovisual.

A artista também reflete sobre outra perspectiva do privilégio masculino. Muitos homens  acreditam-se aptos a abordar sobre feminismo e sobre o que é correto ou não do comportamento feminino. Razão pela qual a atriz polemizou ao propor participar de uma mesa de debates sobre masculinidade. “Minha intenção foi gerar polêmica mesmo. Eu proponho, com meu humor instigar sempre. Ainda que possam ser falas violentas, eu me disponho a retrucar no mesmo tom ou acima dele. Me recuso a estar no papel de vítima”, dispara. Rafa aborda as agressões sistemáticas que as mulheres sofrem em razão dos seus corpos e chama a atenção para a quantidade de procedimentos estéticos como a ninfoplastia – cirurgia íntima feminina – em razão da disforia de imagem provocada pela cobrança masculina. Além deste procedimento cirúrgico, o Brasil também é campeão mundial nos índices de implantes de silicone.

Rafaela Azevedo critica os privilégios masculinos e coloca-se como voz ativa em prol da mulher (Foto: Nanda Carnevali)

KING KONG FRAN

Com 100 mil seguidores e uma peça de sucesso em cartaz, Rafaela Azevedo interpreta a personagem título de “King Kong Fran“. A referência ao gorila homônimo do filme hollywoodiano também é intencional. A atriz, que também é clown, alega que às mulheres, especialmente na categoria circense, há um espaço muito delimitado na atuação. Mesmo neste lugar cobra-se haver “a mulher perfeita. Ou é a bailarina, ou a conga. E esta última, por ser feia não é idealizada sexualmente. São caixas que tentam nos colocar”.

Além desta observação, ela traz um questionamento sobre a própria presença feminina no humor: “Historicamente são poucas as mulheres humoristas. E costumamos ser classificadas como pouco engraçadas ou totalmente sem graça. E as que elaboram as piadas em cima de temática sexual, malvistas. Para mim, Tatá Werneck é uma grande referência, assim como a Dercy Gonçalves (1907-2008), a Samantha Schmutz e a Dani Calabresa. Elas são pioneiras em ocuparem esse lugar do humor mais escrachado. Essas mulheres vinham fazendo graça, falando, se colocado e transgredindo por falarem sobre sexo, que é um assunto tabu. Antigamente, ocupávamos no humor o lugar da gostosa burra ou da que não podia falar – vide o “Cala a boca, Magda” (do programa “Sai de Baixo”). A mulher no humor era idealizada. Elas deviam ser ser bonitas, caladas , gostosas, misteriosas… Um objeto!”

Rafaela Azevedo propõe que o patriarcado invisibiliza as mulheres (Foto: Nanda Carnevali)

E prossegue: “A ancestralidade do humor é masculina. Os homens diziam que não éramos engraçadas. Mandavam que tirássemos os narizes de palhaço, por sermos bonitas demais para fazer graça, por exemplo. Isso é um recado. Um pedido de ‘não acabe com a minha idealização de mulher. Quando você me faz rir eu assumo que você é engraçada, um indivíduo, e não a mulher idealizada que não erra’. Para a atriz, “só existe humor quando a mensagem é compreendida, quando se fala sobre o que se entende, com o que se reconhece.

Uma mulher que gera o riso, lida com a humanidade dela. Humor fala de fracasso e, no humor, uma mulher que fala das suas fragilidades e não da idealização proposta pelo patriarcado, que quer que uma mulher sexy, realiza-a como broxante, não-engraçada – Rafaela Azevedo

A mesma agressividade com a qual os homens dedicam-se a tratar e/ou objetificar o corpo feminino, Rafaela empresta à sua personagem, a Fran. Porém, segundo ela, “tem homens que não entendem que estou fazendo ironia. E se dirigem a mim com xingamentos quando digo sobre temas sensíveis como o “ser corno”. Retrucam dizendo ‘se fossemos nós fazendo piadas desse teor seríamos as piores pessoas do mundo’. Porém, é o que mais fazem. O número de mulheres que contraem IST’s (Infecções Sexualmente Transmissíveis) mesmo sendo fiéis ao marido é altíssimo e eles sabem disso. Falo sobre eles serem cornos por querer lançar luz sobre este tema. Já que há os caras que traem a mulher e a coloca em risco por não acreditá-las dignas de respeito”.

A sociedade admite que um homem traia 17 vezes a sua esposa e ganhe um reality show, enquanto há uma cantora que todos SUPUSERAM de que ela havia traído o marido famoso. Ela foi ameaçada de morte pelos seguidores. O cara pode fazer o que for, pois ele será perdoado. Já a mulher, não pode nem sonhar em fazer – Rafaela Azevedo

REDPILLS

Um assunto que tem sido muito discutido nas últimas semanas, especialmente depois da repercussão de uma matéria exibida no “Fantástico” da TV Globo, trata sobre os redpills e as masculinidades toxicas. Os redpills, ou “machosfera” são grupos que objetivam discutir o papel dos homens na sociedade moderna, mas que, em busca desse masculinidade idealizada, acabam por reproduzir ideais machistas ou misóginos nas redes sociais. Perguntamos à Rafaela como essa masculinidade agressiva atravessa-a enquanto mulher. “Diariamente. O que esses caras fazem, se comunicando, reproduzindo e monetizando a misoginia, e a violência contra nós, reforça o medo que sentimos quando entramos num carro de aplicativo e quem dirige é um homem. Uma mulher nunca está tranquila quando está num espaço em que há um homem. Ela sempre pensa que pode ser estuprada ou violentada por ele”. De acordo com sua fala, algumas dessas experiências vividas por ela, compõem o espetáculo.

Ainda em consonância com suas afirmações, o movimento de debate sobre os redpills pode “gerar a criminalização destes homens. Ali estão presentes as provas, as caras deles, as falas, nas redes sociais… Eles estão assumindo, ensinando como violentar mulheres. Eu vejo dessa forma. Já existe um projeto que conseguiu as votações para criminalização (desses canais). Há um caminho com isso. Mas aquilo dali não é nada novo. Só mostra o quanto os homens fazem isso e o quanto eles são impunes. O que queremos é que esta impunidade acabe mesmo”.

Em fevereiro deste ano, “Rafa” foi convidada a participar de um podcast onde debateria algumas questões relacionadas à sua peça, justamente num espaço da “machosfera”. Nesta, um dos homens debatedores, ao comentar uma foto de Azevedo disse ter “SDPNQD – Síndrome do Pênis Nervoso Que Digita”. Reiterando a polêmica, a atriz disse querer participar daquele espaço para, “enquanto mulher, falar de masculinidade”, uma clara provocação aos produtores de conteúdo que se acham aptos a falar de feminismo sem ter lugar de fala. “Eu propus isso para gerar uma polêmica, já que a gente vê mulheres matriculando-se em cursos sobre “como ser uma mulher de valor”, ministrado por homens. Eu que me coloco no lugar de fazer uma oposição clara, de pau a pau, com o machismo. Proponho que, com o meu humor eu seja opressora mesmo”.

E ela prossegue dizendo “O objetivos desses workshops é ensinar a uma mulher a ser uma serviçal dos homenss. Minha participação nesses podcast redpill seria ensinando um homem a ser submisso. E aí sim veríamos como seria, estando alguém com voz e poder, discutindo no mesmo patamar”, diz, provocadora. Mas não sem reforçar que não acha que sua “experiência possa agregar a quem foi socializado de forma masculina”.

Nesse confronto de ideias, que pode ser violento, eu proponho ser violenta também, mas me recuso a ser vítima – Rafaela Azevedo

Quando faz piadas sobre os tamanhos dos pênis, a personagem de Rafaela traz outra vertente importante da masculinidade falocentrada. Para ela, o falo vai muito além do próprio órgão sexual. “Há algo nessa masculinidade frágil, que é fálica, mas não está diretamente ligado a isso. É algo psíquico. Quando falo do pênis e objetifico esse lugar, eu estou fazendo com que os homens sintam o mesmo que sentimos desde que nascemos e somos pressionadas a colocar silicone, a fazer cirurgias íntimas femininas. Estas últimas aliás são recorde no Brasil. Além do fato de muitas não chegarem ao orgasmo por que têm vergonha do próprio órgão. Isso foi algo criado pelos homens e as mulheres acreditam que serão amadas apenas se encaixarem-se neste padrão. O absurdo é naturalizado às mulheres e ninguém questiona”.

Com efeito, dados da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS) e Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) salientam que o Brasil é o país com o maior número de realizações de cirurgias plásticas no mundo. Com aproximadamente 1.5 milhões de cirurgias ao ano. Quanto à ninfoplastia, cirurgia de reparação dos lábios vaginais, de 2015 a 2016, foram realizados 23.155 procedimentos, segundo levantamento da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps).

FEMININA VERSUS (VERSUS?) FEMINISTA

Durante a última gestão federal, tornou-se famoso o dualismo, inclusive proposto pela atriz Regina Duarte, que dizia: “Eu sou feminina e não feminista”. Para a intérprete de Fran “é difícil as mulheres se enxergarem num lugar tão ruim, aceitarem que sejam ela agredidas, violentadas. Nem todas têm essa nitidez de mundo. É desanimador que hajam mulheres que vivam nessa crença conservadora onde o conceito de feminilidade é aquele que a oprime. E se ela se rebelar contra isso, não há nada que a proteja enquanto direitos humanos, já que a violência contra ela é validada. Esse sistema patriarcal é bem elaborado. É como se fosse ensinado às oprimidas, que não é viável combater o seu algoz, e que isso não leva a lugar nenhum. Cabendo a elas, serem  cuidadoras e ainda ensinar aquele que as agridem. É algo muito violento. Isso é uma elaboração de controle e bem feita. Essa ideia de “sou feminina” não existe por que não existe “um feminino”. Isso é um padrão criado para prender as mulheres dentro de uma ideologia que é equivocada”.

Ainda que tenha avanços na causa, Rafaela não poupa também o movimento feminista. Para ela, há a sensação de que ele “está numa bolha social e racial. Os avanços são diferentes quando observada as realidades de uma mulher branca, de uma mulher preta, de uma mulher trans. Há coisas a serem tratadas. Os direitos ainda não estão equiparados. A realidade não é igual para todas as mulheres. E se essa mulher for possuidora de um poder aquisitivo maior, se ela é rica, ela já acessa outros lugares.

Creio que a mulher deva se reconhecer como uma classe. Acho que a gente se dissipa muito. Precisamos acolher as subjetividades e ter claro quem é o nosso opressor, o nosso opositor e este é o patriarcado: A entidade homem-hetero-branco-cis – Rafaela Azevedo

Depois que começou a ser reconhecida pelas intervenções de Fran nas redes sociais, Rafaela diz adorar que chamem-na pelo nome da personagem. Inclusive há quem pense que a “Rafa” é inventada e não o contrário. “Eu adoro que as pessoas que me conhecem depois da Fran chamam-me assim e não por meu nome. Quando eu “apareço de Rafa” no Instagram, dizem “a personagem Rafa que você criou é muito boa, Fran”. E a Rafa aparece como agora, numa entrevista, numa imersão. Elas se comunicam. Na rua gritam meu nome fictício em vez do real”, disse.

E como são duas mulheres que dialogam, Rafa diz que “A Fran ensinou muito às mulheres. A mim, especialmente, aprendi com ela a ter coragem. A falar o que eu penso, a não ter Síndrome de Impostora e que posso, sim, ser o que quiser e que tenho acolhimento e sou amada por errar e posso errar à vontade. Haverá gente que me acolherá e me fará sentir viva. Seria insuportável viver como mulher se não fosse a Fran. Eu não conseguiria”. Por isso, parafraseando a peça protagonizada por Marília Pêra (1943-2015), Rafa, vai às redes sociais “brincando em cima daquilo”, dos apaixonantes desafios de ser mulher.