‘Há pouca abertura para escuta. Precisamos ouvir alunos e famílias’, diz Luiza Rangel sobre teatro-documentário


Criadora de um grupo de teatro com estudantes do ensino fundamental da Escola Municipal Vera Lúcia Chaves da Costa, no Conjunto Urucânia, na Zona Oeste do Rio, ela apresenta no sábado (dia 14), na UniRio, o espetáculo ‘Fale sobre Mim’, com narrativas autobiográficas suas e da turma. O objetivo é encontrar novos sentidos no cotidiano e na vida

*Por Jeff Lessa

Faz tempo que a imagem de alunos sentados em fileiras de carteiras voltadas para o quadro-negro enquanto o professor fala sozinho para a turma tentando transmitir conhecimento envelheceu. Hoje, diante de uma realidade cada vez mais em mutação, essa cena passou a remeter a estagnação. Com a aceleração da vida proporcionada pelas redes sociais e seu imediatismo, nada mais natural que buscar meios dinâmicos de aprendizado e comunicação com a comunidade. Pois foi com o objetivo de transformar memórias, anseios e dores de estudantes de escola pública em arte que a atriz, diretora e professora Luiza Rangel formou um grupo de teatro com seus ex-alunos da Escola Municipal Vera Lúcia Chaves da Costa, no Conjunto Urucânia, localizado na Zona Oeste do Rio. No sábado (dia 14), eles apresentam o espetáculo “Fale sobre Mim” na Sala Paschoal Carlos Magno, na UniRio. No elenco estão a professora e os jovens Analya Britney (13 anos), Brenda Laura Coelho (13), Caio Nunes (13), Lucas Reis (14), Maria Paula dos Santos (13) e Wilson Ruan (15).

No sábado (14), os ex-alunos de Luiza Rangel apresentam ‘Falem sobre Mim’ na UniRio (Foto de Luiza Rangel)

“Sempre me interessei por teatro-documentário. Ouvindo as histórias dos alunos, tive a ideia de trabalharmos narrativas autobiográficas. As vivências são bastante fortes”, conta Luiza. “Levantamos histórias e material textual e inscrevemos uma cena de 15 minutos no Festival Estudantil de Teatro Amador, o Festa. A peça agora tem uma hora de duração. Nosso interesse não era falar apenas sobre a família, mas também comentar a relação com o bairro e com a escola”.

A professora e diretora Luiza Rangel diz que as coisas só acontecem porque existe um desejo muito grande (Divulgação)

Durante o processo de elaboração do espetáculo, a professora se propôs a criar uma cena autobiográfica junto com seus alunos. Com isso, além de compartilhar a tarefa com os jovens, Luiza dissolveu a hierarquia professor-aluno. “O objetivo é convocar os estudantes a olhar as metáforas do mundo e a encontrar novos sentidos em seu cotidiano e em sua história de vida. Ainda existe pouca abertura para a experiência de escuta no espaço da escola. Precisamos ouvir mais os alunos e suas famílias, além de valorizar suas contribuições. É importante proporcionar relações mais plurais, afetivas e humanas na escola”, defende a professora.

“Fale sobre Mim” se divide em dois atos. No primeiro estão colocados o ponto de vista e as impressões da professora, seu encantamento com o potencial dos alunos, mas também o seu estranhamento com a realidade violenta e difícil que cercava a escola. O segundo ato trata das memórias dos estudantes, o olhar deles sobre a vida, a família, a adolescência, a escola, o bairro, a cidade e o tempo. Como a escola se situa numa área de conflitos, a violência urbana gerada por disputas de territórios não poderia ficar ausente da dramaturgia.

Lucas, Wilson, Brenda, Analya, Maria Paula e Caio se encontram com a diretora na hora do almoço (Foto de Luiza Rangel)

“No ano passado, tivemos um período complicado na comunidade de Antares, que fica diante do Conjunto Urucânia. Foi uma época de confronto entre grupos rivais por questões de território. A escola estava bem na área de risco e precisou ficar fechada por alguns dias”, conta Luiza Rangel. “De lá para cá, as coisas se acalmaram, mas precisávamos tratar desse assunto na peça”.

Muitas vezes a vida real traz o inesperado. Para o ano que vem, um dos seis alunos da turma já propôs um tema delicado: “Ele quer falar sobre depressão. E nós pretendemos investigar. Os alunos que não quiserem participar ativamente, não precisam fazer a pesquisa, podem dar opiniões e observar, mas, normalmente, todos abraçam as ideias. É importante que a professora e diretora abra espaço para a escuta. Talvez em casa eles não consigam falar de certos assuntos, é importante ouvir os relatos dessas crianças”, afirma Luiza Rangel. “A pesquisa da gente é muito pautada na experiência. Quando fizemos o trabalho sobre as famílias, eles trouxeram muito sobre as próprias casas, as casas dos tios, dos avós. Trouxeram coisas do cotidiano, acessaram a memória. É um trabalho sobre história pessoal que reflete na história social”.

Os alunos Analya, Caio, Brenda, Lucas e Wilson durante encontro para falar da peça (Foto de Luiza Rangel)

Fazer o trabalho acontecer não é fácil. Como se trata de uma turma de ex-alunos, os encontros semanais para tratar do espetáculo precisam acontecer obrigatoriamente fora dos horários das aulas. “Nós nos reunimos às terças-feiras na hora do almoço. São 50 minutos por semana e só. As coisas acontecem porque existe um desejo muito grande”, conta, emocionada, a professora, que mora no Engenho de Dentro e todo dia leva uma hora de trem para chegar ao trabalho. “Usamos o que temos na escola como cenário. Fizemos uma mesa a partir de um pano branco esticado, por exemplo. E os figurinos são os próprios uniformes escolares”.

Diante da realidade precária, mas de muita garra, não há como não lembrar a série “Segunda Chamada”, produzida pela O2 Filmes e exibida pela TV Globo desde outubro deste ano, que retrata o difícil cotidiano de uma escola pública estadual em que os professores tentam ajudar os alunos a seguir com os estudos. “Ainda não vi ‘Segunda Chamada’, acredita? Mas acho importante trazer a realidade das escolas públicas para a cena. São escolas sucateadas e esse é um olhar sobre a educação que nós precisamos ter. Eu estou entrando agora para o Município, cheia de gás, com vontade de fazer muita coisa. Mas vejo colegas com mais tempo de magistério cansados, esgotados”, lamenta. “Não temos suporte psicológico nem assistência social. Essas duas coisas ajudariam muito. Os alunos trazem demandas que, para nós, como professores, são complicadas, mas que não podemos deixar de atender como seres humanos”.

Os atores amadores têm entre 13 e 15 anos de idade (Foto de Luiza Rangel)

Como na série de TV, os professores se veem obrigados a se envolver com a vida dos alunos fora dos muros do colégio: “Já tivemos estudantes em situação de abandono, com fome mesmo. Nesses casos, arrecadamos alimentos, não podemos deixá-los à míngua. E no inverno, também pedimos agasalhos para ajudar os que estão com frio”. Por conta disso, Luiza não se cansa de repetir que “Falar de si é um ato político e poético”. No sábado a gente confere.

SERVIÇO

Fale sobre Mim

UniRio: Sala Paschoal Carlos Magno (Palcão). Av. Pasteur 436, fundos, Urca – 2542-2717

Sábado (14), às 16h

Grátis

60 minutos

96 lugares