‘Eu, que adoro o ofício, penso muito antes de encarar quatro horas de Shakespeare’, diz Marcelo Médici


Na comédia ‘Teatro Para Quem Não Gosta’, que vai dos gregos aos dias atuais para contar milênios de História com humor, o comediante comemora 16 anos da bem-sucedida parceria com Ricardo Rathsam

Marcelo Medici e Ricardo Rathsam vivem 32 personagens em ‘Teatro Para Quem Não Gosta’ (Foto de divulgação)

*Por Jeff Lessa

“Teatro Para Quem Não Gosta” pode até soar com um anti-título para uma peça, palavras que tentam manter o espectador afastado das salas. Nada disso: escrito, dirigido e interpretado por Marcelo MediciRicardo Rathsam, o espetáculo, que estreou no Rio na última sexta-feira (dia 26), é uma declaração de amor ao teatro. E vem de uma temporada mais que vitoriosa em São Paulo. O sucesso se deve ao humor inteligente – e eficiente – da comédia, que, em uma hora e trinta minutos, se propõe a narrar nada menos que a história do teatro mundial (estão lá os gregos, o teatro elisabetano, William Shakespeare, Molière, as revistas brasileiras, o TBC, o besteirol, o infantil, os musicais americanos e muito, muito mais). O cerne da questão é a pergunta: o teatro morreu? A dupla responde que não.

“O teatro sempre esteve em vias de acabar. É muito frágil. Chegou a morrer em épocas de guerras, crises religiosas e econômicas, mas renasceu. É sempre prejudicado. E é efêmero. Por mais que você registre as imagens, não é a mesma coisa. Já não é teatro. Mas as pessoas continuam voltando, querendo ver o ator em cena. O teatro não morreu”, opina o ator e comediante Marcelo Médici, 47 anos, que, no palco, interpreta 20 dos 32 personagens da comédia. “Rememoramos os grandes momentos do teatro com muito humor. Não tem aquela história de Nietzsche em cinco minutos? Pois é, nós contamos a história do teatro em pouco mais de uma hora”.

Ricardo Rathsam e Marcelo Medici também interpretam princesas de contos de fadas (Foto de divulgação)

O título pode ser interpretado de várias maneiras. A explicação real, porém, não pode ser revelada, segundo o ator: “Seria um spoiler e estragaria a surpresa do espetáculo”. Certo, porém, é que nada do que está no palco é aleatório ou inventado. Para criar a narrativa foi realizada uma pesquisa intensa e profunda. Quem vai ao teatro só para rir não percebe que está, ao mesmo tempo, aprendendo bastante sobre a evolução dessa arte através dos tempos. “Nós contamos mesmo a história do teatro. Ainda que resumidamente. Por exemplo, ‘Hamlet’. Hamlet é um cara que enlouquece e faz a namorada enlouquecer. Otelo é pior, ele mata a namorada”, brinca Marcelo Médici.

Clássicos como ‘O Doente Imaginário’, de Molière, não ficaram de fora (Foto de divulgação)

Apesar de fazer piada, o ator se questiona se ainda existe espaço para espetáculos longuíssimos como as peças do Bardo num momento em que a vida é tão acelerada. “Eu, que sou ator apaixonado pelo ofício, hoje penso bastante antes de encarar quatro horas de Shakespeare. Afinal, são quatro horas, não é? O último filme do Tarantino, ‘Era Uma Vez em Hollywood’, tem duas horas e quarenta de duração. Mesmo para mim, que amo o diretor amei o filme, foi difícil”, confessa, acrescentando que sente saudade da experiência dos cinemas de rua: “Era outra história. Fiz campanha para o Cinema Belas Artes voltar em São Paulo. Hoje a ida ao cinema é quase um evento Disney”.

Além de fazer uma apaixonada defesa do teatro, a peça, escolhida como melhor comédia pelo Prêmio do Humor, idealizado por Fábio Porchat para valorizar as melhores produções do gênero, comemora, também, 16 anos da frutífera parceria de Marcelo Médici com Ricardo Rathsam. “Dessa vez, eu obriguei o Ricardo a dirigir, coisa que ele nunca quis fazer. Ele escreveu e pesquisou, 90% do texto é dele, mas fiz questão de que também dirigisse”, conta Médici, que já atuou com Rathsam nas bem-sucedidas comédias “Cada Um com Seus Pobrema”, “Eu Era Tudo pra Ela e Ela me Deixou” e “Cada Dois com Seus Pobrema”.

Ariel, a Pequena Sereia, é um dos destaques do espetáculo (Foto de divulgação)

O amor pela ribalta vem de muito cedo na vida do ator, que começou na carreira quando tinha 16 anos. “O teatro me recebeu. Exerci todas as funções possíveis em uma produção e estive em muito mais peças que não deram certo do que em sucessos. Mas tenho paixão. Eu tinha necessidade de existir como artista e comecei fazendo teatro infantil de ótima qualidade”, revela. “O teatro é a casa da gente. Eu quero que o público tenha uma experiência boa sempre. Por isso controlo o ar-condicionado e percorro a sala para ver se está tudo limpo mesmo. Afinal, quero agradar o espectador e digo isso sem medo de patrulhas esnobes. Paguei um preço por esse amor, que foi não estar disponível para a TV durante muito tempo. E ator brasileiro não tem plano de carreira nem plano de saúde, não é?”.

Os musicais americanos e o teatro de revista brasileiro são lembrados (Foto de divulgação)

Mas Marcelo Médici lembra com o maior bom humor dos tempos de “pobreza”. “Muitos amigos fizeram telegramas animados nos anos 1990, quando era moda. Invadiam a casa de alguém, ou o escritório, cantando fantasiados, fazendo uma performance para desejar feliz aniversário. Nunca consegui! Por mais que precisasse de dinheiro, eu esbarrava naquilo, não dava. Outros atores ganhavam uma boa grana se fantasiando de monstro para dar sustos nos frequentadores do Playcenter na época do Halloween. De novo, não consegui”, conta, rindo. “Sou capricorniano, não tive aquele golpe de sorte de alguém ver o meu videobook e convidar imediatamente para fazer novela. Só comecei a trabalhar na Globo aos 33 anos, mas me apaixonei”.

Seu papel mais recente na TV foi o de Abner Blum, um faz-tudo atrapalhado filho único de Ester, a típica mãe judia, em Órfãos da Terra. É claro que o personagem pertencia ao núcleo cômico da trama. Ser convidado seguidamente para interpretar papéis de comédia incomoda o ator? “Nem sempre o humor é levado a sério como deveria e o comediante fica estigmatizado. Mas acredito que podemos, sim, provocar e ajudar a enxergar a realidade com outros olhos. Quando interpreto personagens cômicos, busco a verdade deles. Quero que seja uma pessoa possível de existir na vida real, com uma verdade como ser humano, e não apenas um estereótipo para fazer rir”.

O aprendizado do ator passou por um período no humorístico “A Praça é Nossa”. “Em 1998, participei de um concurso promovido pelo Multishow, levado pela minha grande amiga (a humorista) Claudia Rodrigues. Era para escolher o melhor artista de stand-up comedy e eu nem sabia o que era aquilo. Mas o prêmio era em dinheiro e eu estava muito ferrado. Fui e ganhei”, conta. “Eu tinha tanta certeza de que não ia dar certo que me inscrevi com o meu nome real, Marcelo Franco. A Claudinha mostrou o resultado para o Chico Anysio e ele me chamou, mas não funcionou de cara. Nesse meio tempo, o Marcelo Nóbrega me viu numa reprise do Multishow e me convidou para um teste. O pai dele, Carlos Alberto de Nóbrega, viu e perguntou se podia botar no ar. Me contratou pelo dobro do que eu ganharia na Globo. E foi assim que eu me vi trabalhando na ‘Praça’”, explica.

Ele se diverte ao lembrar que fazia um tipo de humor extremamente popular na televisão enquanto trabalhava no teatro com nomes como Carla Camurati e Gerald Thomas: “Eu aprendi a respeitar e a admirar a turma da velha guarda do humor. Entrei em pânico quando me vi no meio de ícones da comédia nacional como Ronald Golias, Dercy Gonçalves, a Velha Surda e tantos outros”.

O amor de Marcelo Medici pelo ofício fica nítido a cada frase, cada palavra. Voltando ao questionamento que deu origem a “Teatro Para Quem Não Gosta”, tocamos mais uma vez na questão: o teatro corre o risco de morrer? “Tenho medo de o teatro perder essa geração tecnológica. Minha afilhada era apaixonada pela Kéfera e, de repente, não é mais, já virou fã de outro. Esqueceu a admiração anterior. Mas tenho um sobrinho que está começando no teatro. Eu digo para ele que não sou contato e que não posso ajudar com indicações, esse tipo de coisa. Ele parece gostar muito, está fazendo infantil, estudando. Não creio que o teatro corra o risco de morrer”.

Em sua história do teatro através dos séculos, os atores também tratam dos espetáculos infantis (Foto de divulgação)

SERVIÇO

Teatro Para Quem Não Gosta

Teatro dos 4: Shopping da Gávea. Rua Marquês de São Vicente 54, Gávea – 2239-1095

Sextas e sábados, às 21h; domingos, às 20h

R$ 60 (sexta, inteira) e R$ 80 (sábados e domingos, inteira)

14 anos

Em cartaz até 15 de dezembro