Crítica Teatral: Rodrigo Monteiro sentencia sobre “Cabaré on Ice”, em cartaz no Buraco da Lacraia: “É o mais divertido da cidade”


Em cartaz às sextas-feiras no Buraco da Lacraia, é uma chance imperdível de reviver o teatro de revista, o burlesco, o cabaret, o politicamente incorreto que andam tão soterrados em uma sociedade cada vez mais careta

Por Rodrigo Monteiro

“Cabaré on Ice” estreou há um ano, substituindo o sucesso “Buraco da Lacraia Dance Show”, que foi assistido por mais de oito mil pessoas. Utilizando, como fio condutor, o repertório musical normalmente cantado em brincadeiras com videokê, o espetáculo é o que há de mais engraçado em cartaz na cidade nesse primeiro semestre de 2015. Apresentada somente às sextas-feiras, a partir das 22h, no Buraco da Lacraia, essa divertidíssima atração dá ao público acesso livre ao open bar da Casa até o amanhecer. Mais ainda: eis aqui, para gente de toda idade e estilo, uma chance imperdível de reviver o teatro de revista, o burlesco, o cabaret, o politicamente incorreto que andam tão soterrados em uma sociedade cada vez mais careta.

Simone Mazzer no pocket show de abertura do espetáculo "Cabaré on Ice"

Simone Mazzer no pocket show de abertura do espetáculo “Cabaré on Ice”

A noite começa com um pocket show de Simone Mazzer, acompanhada do músico Marco Antônio Scolari. Ainda na abertura, a cantora oferece sua voz potente para “Miss Celie’s Blue” (de Quincy Jones, celebrizada no filme “A cor púrpura”, de 1986), seguindo com “Tango pra Tereza” (de Jair Amorim e de Evaldo Gouveia) e indo para um dos momentos mais alegres da apresentação, “É que nesta encarnação eu nasci manga” (As Frenéticas). A melhor parte do show, que traz também em seu repertório o “Tango do Mal” (trilha da novela “Babilônia”), é “My funny Valentine” (Richard Rodgers e Lorenz Hart). Com várias canções além dessas citadas, o espetáculo encerra com o animado “Dancing Queen” (Abba), que é um claro convite para “Cabaré on Ice” que começa depois de um breve intervalo.

“Cabaré On Ice” começa exorcizando as questões religiosas que vêm ganhando pauta com o crescimento das bancadas evangélicas no legislativo. No primeiro quadro, aparecem Jesus e outros personagens cristãos em muito brilho, formas e texturas. O modo como Sidnei Oliveira, Letícia Guimarães, Luis Lobianco e Éber Inácio unem os elementos, tornando-os marcas de clara ironia em favor da comédia, atinge o público em cheio ganhando em resposta uma sonora gargalhada inicial. Referências ao lanche oferecido aos passageiros de transporte aéreo, ao bom humor matinal de Xuxa (em um quadro engraçadíssimo em que a apresentadora estimula uma menina em cadeira de rodas a fazer ginástica) e à célebre coreografia da abertura do “Fantástico” de 1987 mantêm o ótimo ritmo da encenação.

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Então, chegam os melhores quadros da noite. Em “Arrastão”, Elis Regina é assaltada em meio ao seu movimento de braços (TV Excelsior/1965). Em um momento stand-up comedy, Luis Lobianco interpreta um homem convertido à Igreja Universal convidando as pessoas a visitarem o Templo de Salomão em São Paulo. Depois, Lula e Dilma (ela sentada no colo dele como um fantoche) aparecem cantando “Hakuna Matata” (de “Rei Leão”) com destaque para o trecho em que a canção diz “os seus problemas você deve esquecer”. E tem ainda o grupo todo cantando uma versão de “Rosa Morena” (Dorival Caymmi) em que, no lugar da letra original, canta-se a biografia da atriz Rosamaria Murtinho (ela assistiu ao show em setembro de 2014). Ao fim, surge o quadro “On Ice” do espetáculo, essa uma divertida surpresa mesmo a quem gargalhou durante toda a noite ao longo das vinte canções. “Entra no meu buraco”, um hino da produção, encerra o evento e abre o fim da noite.

Todos os intérpretes têm, em conjunto, ótimo resultado, mas se destacam a qualidade vocal de Letícia Guimarães e a performance de Éber Inácio (Joel Grey brasileiro!). Inácio, em excelente interpretação clownesca, faz sorrir e faz chorar, enternece e alegra, mas principalmente dá esperança a quem se utiliza de um espetáculo como esse para acreditar na vida. O conjunto estabelece e sustenta estreita relação com a plateia, aproveitando-se dos enormes desafios que há em se apresentar para pessoas que assistem, mas também bebem, vão ao bar, conversam e participam. É notório observar como o elenco aumenta aparentemente o espaço útil de 1m x 2m do palco pelo excelente uso que dele faz.

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O Buraco da Lacraia abriu em 1987, ganhando esse apelido porque ficava em um subsolo na Rua Álvaro Alvim, na Cinelândia. Hoje localizada na Rua André Cavalcanti, número 51, na Lapa, zona central do Rio de Janeiro, a Casa está aberta para adultos de todos os gêneros e orientações sexuais. O espetáculo “Cabaré on Ice”, nesse clima de convivência complexa e, por isso, humana, é um alívio na programação cultural da Cidade Maravilhosa. Seria oferecido a peso de ouro aos turistas se estivéssemos em um país com mentes menos fechadas. Bravo!
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Ficha técnica
“Buraco da Lacraia Cabaré on Ice”, criação coletiva – direção, direção musical, figurino e produção – de Luis Lobianco, Leticia Guimarães, Éber Inácio e Sidnei Oliveira, que também atuam.
Concepção cenário – Escritório de ARTE cenografia
Adereços – Éber Inácio
Letras – Luis Lobianco
Coordenação de divulgação – Sidnei Oliveira
Iluminação – Escritório de ARTE cenografia
Assistente de cenário e produção de objetos – Luiz Orofino e Thiago Gouveia
Projeto Gráfico – Thiago Sacramento
Coordenação de produção – Letícia Guimarães
Assistente de produção – Maria Alice Silvério e Thamires Trianon

* Rodrigo Monteiro é dono do blog “Crítica Teatral” (clique aqui pra ler) , licenciado em Letras – Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, bacharel em Comunicação Social – Habilitação Realização Audiovisual, com Especialização em Roteiro e em Direção de Arte pela mesma universidade, e Mestre em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor no Curso de Bacharelado em Design da Faculdade SENAI/Cetiqt. Jurado do Prêmio de Teatro da APTR (Associação de Produtores Teatrais do Rio de Janeiro) desde 2012.