Crítica teatral: Rodrigo Monteiro analisa o monólogo “A Geladeira”, estrelado por Márcio Vito, parte do progama Ocupação Copi, no SESC Copacabana


A Ocupação Copi começou no dia 11 de junho, abrigando, além de “A geladeira”, a peça “O Homossexual ou A dificuldade de se expressar” e a oficina “O Ator-Travesti – Experimentos sobre o universo de Copi”. Os méritos do projeto são inegáveis. Aplausos!

* Por Rodrigo Monteiro

“A geladeira” é o monólogo do argentino Raul Damonte Botana (1939-1987), mais conhecido como Copi, que foi um desenhista, romancista, dramaturgo e ator que viveu seus últimos vinte e cinco anos em Paris. Escrito em 1983, o texto foi levado à cena logo em seguida ao seu lançamento por seu próprio autor que, nessa época, havia sido diagnosticado como portador do vírus HIV. A peça trata da solidão e do medo da morte através dos seus contrários: o excesso de companhia e a festa de aniversário.

geladeira

Em cena, a história de L., um ex-modelo que se vê com uma geladeira deixada no meio de sua sala no dia em que completa 50 anos. O objeto é uma metáfora para a AIDS que levou Copi e tantos outros dessa vida, mas também para todas as notícias capazes de lembrar de que essa existência termina quando menos se espera. Essa encenação, no entanto, revela pouco dessa complexidade, investindo muito mais na troca de personagens e no uso dos objetos de cena.

No palco da Sala Multiuso do Espaço SESC Copacabana, há em destaque o modo habilidoso com que Marcio Vito interpreta a enorme variedade de figuras, oferecendo a cada uma delas a chance de coexistir ao lado de L.. Esse espetáculo integra o programa da Ocupação Copi cujas atividades sobre o legado desse autor se estendem até o dia 8 de julho. Vale a pena conferir!

Ocupação CopiTudo acontece no dia do aniversário de L., em sua casa, logo depois dele se deparar com uma geladeira abandonada no meio de sua sala. Sem saber de onde ela veio, L. não ousa abri-la, nem mesmo tocá-la a princípio. Enquanto descobre sua procedência e decide o que fazer, ele recebe o telefonema de um amigo que mora na Austrália e que requisita seu retorno às passarelas. Depois outro do editor do livro de suas memórias, que é quem lhe adianta o dinheiro do qual ele vive, e que espera dele atitudes mais comerciais e menos verdadeiras. Ao reclamar com a portaria sobre quem permitiu a entrega do eletrodoméstico, L. entra em discussões com os vizinhos, com a governanta e seu marido. Aparecem para uma visita ainda um detetive, seu terapeuta, sua mãe e um rato.

Na evolução vertiginosa dessas aparições que atravessam o dia do protagonista, o espectador entra em seu universo. L. foi um referencial de beleza no passado e agora aprende a ficar recluso. Dentro dessa complexidade, é muito bonito identificar o modo como a geladeira parece manchar a rotina do personagem principal, desencadeando uma efervescência de sensações que fazem com que ele modifique o modo de se relacionar com o mundo. E principalmente refletir sobre como esse eletrodoméstico é capaz de ganhar novos significados a partir do contexto narrativo em que ele está envolvido.

Situado bastante próximo do ator e dos objetos de cena, o público do espetáculo tem poucas marcas que associem a geladeira a algo mais. A direção de Thomas Quillardet, que já havia produzido esse mesmo texto também com Marcio Vito em 2007, no Festival de Curitiba, acaba justificando a narrativa pela evolução dos personagens e dos usos dos adereços. Talvez a intenção tenha sido manter a dúvida sobre a existência real desses interlocutores com quem L. conversa. De fato, o jogo estabelecido é interessante, mas o esforço para isso é enorme e a importância nem tanto se a questão for simplesmente a aparição misteriosa de uma geladeira na sala. Lá pelas tantas, o espectador conta quantos objetos ainda não foram tocados em cena e prevê quanto tempo falta para o espetáculo terminar, o que é fatal para o ritmo.

Marcio Vito defende bem sua colaboração à peça. Em performance exuberante, o ator dá vida aos muitos personagens construindo cada um deles com mudanças de tom sutis, mas fundamentais. Pequenas alterações no jeito de olhar, no ritmo de dizer as palavras ou na corporalidade dão conta dos diálogos travados entre duas figuras interpretadas ao mesmo tempo pelo mesmo ator. Quase sem afetação na forma de representar L., Vito parece ter preferido um ponto de vista sobre esse personagem que é mais próximo do público e menos caricatural. A concepção pode ser reveladora. A nova idade e o novo corpo expulsaram esse homem do mundo da moda, mas talvez ele já esteja plenamente conformado com isso (até a peça começar).

Traduzida por Maria-Clara Ferrer, essa versão tem iluminação assinada por Lara Cunha e por Fernanda Mantovani, ambas colaborações adequadas com o desenvolvimento do que parece ter sido a proposta.

A Ocupação Copi começou no dia 11 de junho, abrigando, além de “A geladeira”, a peça “O Homossexual ou A dificuldade de se expressar” e a oficina “O Ator-Travesti – Experimentos sobre o universo de Copi”. Os méritos do projeto são inegáveis. Aplausos!

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Ficha técnica:
Texto: Copi
Tradução: Maria Clara Ferrer
Com: Marcio Vito
Direção: Thomas Quillardet
Assistente de direção: Renata Hardy
Produção de arte: Eloy Machado
Iluminação: Lara Cunha e Fernanda Mantovani
Gestora de Projetos: Maitê Medeiros
Produtor Assistente: Fellipe Marques
Produção Quintal – Direção Geral: Verônica Prates

Serviço:
“A geladeira”
Quando: Até 5 de julho. Qui a sáb, às 19h; dom, às 18h.
Onde: Sala Multiuso, Espaço Sesc, Copacabana
Duração: 50 minutos
Quanto: R$20

* Rodrigo Monteiro é dono do blog “Crítica Teatral” (clique aqui pra ler) , licenciado em Letras – Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, bacharel em Comunicação Social – Habilitação Realização Audiovisual, com Especialização em Roteiro e em Direção de Arte pela mesma universidade, e Mestre em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor no Curso de Bacharelado em Design da Faculdade SENAI/Cetiqt. Jurado do Prêmio de Teatro da APTR (Associação de Produtores Teatrais do Rio de Janeiro) desde 2012.