Crítica Teatral: Rodrigo Monteiro analisa “O Camareiro”. “Tarcísio Meira e Kiko Mascarenhas em um dos melhores espetáculos em cartaz no Rio”


“O camareiro”, em cartaz até o próximo dia 12 de junho, no Teatro Sesc Ginástico no centro do Rio de Janeiro, é excelente sob todos os aspectos.

* Por Rodrigo Monteiro

Escrito pelo sul-africano Ronald Harwood em 1980, “O Camareiro” narra o colapso vivenciado por uma companhia shakespeariana de teatro com a debilidade mental de seu maior astro. Em questão, está uma sociedade ameaçada pelo avanço do totalitarismo nazista e a implacável chegada da velhice: os novos e os velhos sistemas se enfrentando e exigindo que tudo seja reavaliado.

Tarcísio Meira e Kiko Mascarenhas

Tarcísio Meira e Kiko Mascarenhas

Dirigido brilhantemente por Ulysses Cruz, eis uma oportunidade de se reencontrar com Tarcísio Meira, comemorando 60 anos de carreira e 80 de idade, no palco, lugar de onde ele esteve afastado por duas décadas. Ao seu lado, está Kiko Mascarenhas, o idealizador do projeto, em um dos seus trabalhos de interpretação mais vibrantes: o papel título. Junto deles, Lara Cárdulla, Karen Coelho, Silvio Matos, Ravel Cabral e Analu Prestes em ótimas colaborações também. O cenário de Andre Cortez e o figurino de Beth Filipecki e de Renaldo Machado são outros dois grandes destaques da montagem que eleva em muitos níveis a qualidade da programação teatral carioca nessa temporada.

A peça se passa em 1942, quando a Inglaterra corria sério risco de ser invadida por Hitler como vários outros países da Europa já o tinham sido no meio da Segunda Guerra Mundial. Alarmes militares, sobrevoos aéreos, tanques e soldados marchando pelas ruas lembravam os ingleses, além do rádio, dos jornais e do cinema, do perigo iminente. A narrativa começa quando Sir (Tarcísio Meira), o ator líder da companhia shakespeariana, está sumido, o que põe em risco a sessão de “Rei Lear” marcada para a noite.

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Manter um espetáculo de teatro em cartaz naquele clima geral de apreensão é definitivamente posto em cheque dadas também as circunstâncias de saúde em que o protagonista dela se encontra. Manter a tradição inglesa da pontualidade e da correção, sustentar Shakespeare como bastião do mundo ocidental ainda não vencido pelos nazistas e sobreviver mesmo com o escasso dinheiro que aquele trabalho proporciona estão de um lado. Do outro, o isolamento em casa contra o pânico, a fome e o frio das ruas. Há uma escolha a ser feita e, com certeza para o público de “O camareiro”, fica claro que é Norman (Kiko Mascarenhas) aquele que lidera a todos no caminho a ser seguido.

Ronald Harwood escreveu o texto baseado em suas lembranças de juventude. Entre 1953 e 1958, recém chegado à Inglaterra, ele foi camareiro do famoso ator britânico Donald Wolfit (1902-1968). A dramaturgia foi levada à cena pela primeira vez no ano em que foi escrita em West End, em Londres, tendo recebido indicação ao Lawrence Olivier de Melhor Espetáculo de 1980. Dois anos depois, a montagem americana concorreu aos Tony de Melhor Ator (Tom Courtenay) e de Melhor Espetáculo.

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Em 1984, a versão cinematográfica dirigida por Peter Yates ganhou, entre outros prêmios, cinco indicações ao Oscar: Melhor Ator (Tom Courtenay e Albert Finney), Melhor Direção, Roteiro e Melhor Filme. Em 2015, dois meses depois dessa versão brasileira ter estreado em São Paulo, foi ao ar pela BBC a última versão fílmica da obra, essa protagonizada por Ian McKellen e por Anthony Hopkins.

“Rei Lear”, a peça dentro de “O camareiro”, foi escrita entre 1604 e 1606 por William Shakespeare (1564-1616). Ela fala sobre a velhice e está no contexto do fim do longo reinado da Rainha Elizabeth e do início do de Jaime IV, mais velho que ela. A relação entre pais e filhos, os laços de sangue e as filiações bastardas são pano de fundo para a continuidade da descendência, dos sonhos da juventude e dos planos de vida. Nos personagens de Ronald Harwood, que chegaram ao Brasil através da brilhante tradução de Diego Teza, paira uma certa ansiedade acerca dos últimos traços de uma Inglaterra que nunca mais foi a mesma. Depois do fim da Segunda Guerra, o mundo já não comportou a abnegação da criadagem nas estruturas sociais tão fixas nem tampouco a relação entre trabalho e emprego permaneceu intacta naquele país.

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A direção de Ulysses Cruz, com delicadeza e sensibilidade, preserva todo esse contexto de transformação de valores presentes na Inglaterra do início do século XVII e dos anos 40 do século XX. Do velho e nobre ator Sir (Meira) ao jovem dramaturgo Oxenby (Ravel Cabral) até chegar à Milady (Lara Córdulla) e ao ator Geoffrey (Silvio Matos), há um abismo. Em uma ponta, marcas diversas que valorizam a arte. Em outra, a mediocridade da vida simples e das necessidades básicas. Norman (Kiko Mascarenhas), o camareiro, é, nessa versão de Cruz, espelho em que as realidades se refletem, são avaliadas e rendidas. Com maestria, o ritmo se mantém ileso, em um crescente cada vez mais profundo e cuidadoso na encenação. Ele revela a complexidade do homem e da época retratada além de aproximar o público brasileiro daquele da narrativa pelos seus aspectos mais humanos. De alguma maneira, também nós somos testemunhas de um mundo em transformação.

Todos os trabalhos de interpretação são excelentes. Em papeis menores, Analu Prestes (a assistente de direção Madge), Ravel Cabral e Silvio Matos (os atores Oxenby e Geoffrey) bem como Karen Coelho e Lara Córdulla (as atrizes Irene e Milady) deixam ver, nas menores oportunidades, a força possível que dá sustentação ao todo. Tarcísio Meira, cujo último trabalho em teatro tinha sido “E continua… Tudo bem” (texto de Bernard Slade com direção de Marco Nanini, em 1996), exibe trabalho majestoso que já bem foi reconhecido com o Prêmio Shell de Melhor Ator em 2015. Há, em sua atuação, enorme força, absoluto cuidado, grande domínio de palco e vibrantes colaborações na defesa das intenções.

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Kiko Mascarenhas, um dos maiores atores brasileiros da sua geração, apresenta aqui um dos melhores momentos de sua carreira. Sua performance é exultante. A versão brasileira de Norman viabiliza o personagem através de um misto de excelentes usos do ritmo nas alternantes movimentações gestuais e corporais. As expressões faciais dão profundidade para cada pequeno detalhe da dramaturgia, suas intenções geram jogo que organiza toda a trama, seu magnífico colorido vocal emoldura toda a peça. O personagem tem sua humanidade aflorada pela apresentação de suas fraquezas e, ao mesmo tempo, a determinação dele se vê nos embates com os atores menores da companhia. Um trabalho magnífico!

“O camareiro” tem, como todos os principais trabalhos assinados por Ulysses Cruz, excelente direção de arte. Os figurinos de Beth Filipecki e de Renaldo Machado (com visagismo de Emi Sato e de Rose Verçosa) – também vencedores do Prêmio Shell -, o cenário de André Cortez (com produção de arte de Luiz Rossi) , o desenho de luz de Domingos Quintiliano e a trilha sonora original de Rafael Langoni elevam as qualidades já enormes do texto e da interpretação. Em todos os âmbitos, dos mais estruturais aos mais da superfície do espetáculo, se veem habilidade no uso do idioma teatral, bom gosto nas escolhas estéticas e inteligência na articulação do conteúdo.

Lá pelas tantas, Sir diz a Nornam que tem pena dos críticos de teatro. Se o personagem soubesse como é bom não só assistir a espetáculos como “O camareiro”, mas também refletir sobre eles, teria inveja de nós. Aplausos!

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Serviço: 
Onde: Sesc Ginástico. Av. Graça Aranha, 187 – Centro
Quando: Sexta a sábado, 19h. Domingos, 18h.
Quanto: Valores: R$ 5 (associado Sesc), R$ 10 (meia-entrada), R$ 20.

Ficha Técnica:
Texto: Ronald Harwood
Tradutor: Diego Teza
Diretor: Ulysses Cruz
Diretor Assistente: Ravel Cabral
Elenco: Tarcísio Meira, Kiko Mascarenhas, Lara Córdula, Karen Coelho, Silvio Matos, Ravel Cabral e Analu Prestes
Coach Texto: Ana Luiza Folly
Cenografia: Andre Cortez
Figurinos: Beth Filipecki / Renaldo Machado
Produtor de arte: Luis Rossi
Designer de Luz: Domingos Quintiliano
Trilha Original: Rafael Langoni
Designer de Som: Laércio Sales
Fotos Divulgação: Priscila Prade e Juliana Hilal
Designer Gráfico: Victor Hugo
Visagismo: Emi Sato/Rose Verçosa
Assistente de Visagismo: Rodrigo Reinoso
Diretor de Palco: Angelo Máximo
Assistente de Palco: Alessandro Dourado
Camareira: Sabrina Rafaele
Assistente de Camareira: Priscila Romio
Produtoras Executivas: Carmem Oliveira / Viviane Procópio
Administradora: Carmem Oliveira
Assistente de Produção RJ: Marcela Araújo
Assistente de Produção SP: Igor Dib
Diretor de Produção: Radamés Bruno
Diretor Financeiro: Andre Mello
Produção: BR Produtora
Administração Geral: Ricca Produções
Patrocínio: Porto Seguro Seguros
Produtores Associados: Tarcísio Meira / Kiko Mascarenhas / André Mello
Realização: Lei Federal de Incentivo à Cultura, Ricca Produções, KM Produções, Ministério da Cultura, Governo Federal – Brasil Pátria Educadora

* Rodrigo Monteiro é dono do blog “Crítica Teatral” (clique aqui pra ler) , licenciado em Letras – Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, bacharel em Comunicação Social – Habilitação Realização Audiovisual, com Especialização em Roteiro e em Direção de Arte pela mesma universidade, e Mestre em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor no Curso de Bacharelado em Design da Faculdade SENAI/Cetiqt. Jurado do Prêmio de Teatro da APTR (Associação de Produtores Teatrais do Rio de Janeiro) desde 2012.