As escolas de samba também são verdadeiras incentivadoras da economia circular. O Carnaval do Rio de Janeiro é a maior fábrica de fantasia do mundo, tanto no sentido do delírio imaginativo quanto da vestimenta propriamente dita. Cada escola de samba do Grupo Especial, por exemplo, desfila com, pelo menos, 3.500 componentes, o que resulta em cerca de 42.000 figurinos na Marquês de Sapucaí. Com a complexidade de materiais como tecidos, aljofres, polímeros e passamanarias, a reutilização é não apenas uma alternativa, mas uma necessidade. A Beija-Flor de Nilópolis, campeã do Carnaval 2025, é uma das escolas que utiliza (e muito) o reaproveitamento de materiais como parte fundamental do seu processo criativo. Sabemos que não há possibilidade de desperdício. Trata-se de uma grande engenharia de economia circular e periférica. Exemplo disso foi a própria Beija-Flor, em 2018, que inovou ao utilizar uniformes escolares como figurinos.
Usei o exemplo da escola campeã do Grupo Especial do Carnaval do Rio para linkar a uma iniciativa do SENAI CETIQT. O projeto acadêmico de iniciação científica ‘Sustentabilidade em Cena’ tem por objetivo lançar mão da técnica do upcycling em fantasias do Carnaval carioca ratificando que podem ser transformadas em novas peças, promovendo a redução do impacto ambiental e renda para trabalhadores ligados à essa indústria. Uma abordagem que lança luz sobre o criar, renovar e ressignificar peças e materiais, com a pegada da sustentabilidade e chancela do upcycling. A proposta se baseia em dar nova vida a produtos que seriam descartados, sejam roupas ou sobras da indústria têxtil, diminuindo tanto a quantidade de resíduos lançados no planeta quanto a necessidade de produzir matéria-prima.
UMA IMERSÃO NA CAMPEÃ DO CARNAVAL DO RIO E O UPCYCLING
Em 1989, no icônico desfile “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia“, do carnavalesco Joãosinho Trinta (1933-2011), roupas velhas foram transformadas em figurinos com potente cunho social e um carro alegórico queimado foi reaproveitado, questionando o que é “ouro ou lata”. Este conceito ressurgiu neste 2025 e destaco, por exemplo, o último setor do desfile da Beija-Flor, quando retalhos de fantasias antigas deram origem a novas criações. Um uniforme da Companhia de Limpeza Urbana (COMLURB) foi transformado em figurino de destaque para o ator Wanderley Gomes, que interpretou o próprio Joãosinho Trinta, na Marquês de Sapucaí. Tudo isso sob a concepção do jovem carnavalesco João Vítor Araújo, que, em sua primeira vitória no Grupo Especial, ratificou uma abordagem inovadora e sustentável para a festa. Neste ano, sacos plásticos de lixo foram incorporados em elementos alegóricos e, assim como em 1989, revestiram uma alegoria icônica: a imagem do Cristo com a frase “Mesmo proibido, olhai por nós”, em referência ao que foi censurado à época.
No Carnaval 25, a azul e branco homenageou Luiz Fernando Ribeiro do Carmo (1943-2021), Laíla, o grande diretor de carnaval da escola de samba, com o enredo “Laíla de Todos os Santos, Laíla de Todos os Sambas”. Laíla e Joãosinho Trinta foram, respectivamente, diretor de carnaval e carnavalesco da Beija-Flor de Nilópolis e criaram, em 1989, o desfile de “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia” . “O carro que criamos agora com o Cristo Negro é uma grande obra em homenagem à “ascensão celestial de Joãosinho Trinta e Laíla em comunhão, o Mago e o Griô, reencontro de bambas no plano espiritual a olhar por nós (“O Cristo Preto me fez como eu sou”, diz o samba-enredo), analisa o carnavalesco João Vítor.

Beija-Flor, a campeã do Carnaval 2025

Beija-Flor, a campeã do Carnaval 2025
Com uma longa trajetória no Carnaval, João Vítor já está acostumado a praticar o upcycling, especialmente por ter passado por escolas com menos recursos, onde era comum transformar fantasias antigas em novas. Em 2022, quando liderou a Acadêmicos do Cubango, grande parte do material utilizado no desfile veio de reaproveitamento, tanto de escolas mais estruturadas quanto da própria agremiação, que enfrentava dificuldades financeiras.
Talvez o conceito de upcycling não fosse conhecido por esse nome dentro do Carnaval, mas é uma prática enraizada nas comunidades pobres e carentes, onde os artistas veem nessa técnica uma forma concreta de combater o desperdício. Nada é descartado sem antes cumprir todo seu ciclo de uso. O aljofre de uma roupa velha pode enfeitar uma nova, o grelô de um figurino pode revestir outro, e uma pedraria pode ornamentar um novo elemento. As plumas brancas de um ano são guardadas e tingidas em várias cores até serem pintadas de preto.
Ao fim dos desfiles, nada vai para o lixo. Os componentes devolvem suas fantasias para as escolas, justamente para que possam ser reaproveitadas em outros carnavais. Caso o enredo do próximo ano não comporte a reutilização, as peças são doadas ou vendidas para agremiações de divisões inferiores ou de outras cidades. Essa lógica se estende também às alegorias e esculturas, garantindo que a festa continue pulsante e sustentável.
ENGAJAMENTO DOS ESTUDANTES DE DESIGN DE MODA DO SENAI CETIQT
Por meio da técnica de upcycling, conceito que consiste em reaproveitar peças que seriam descartadas para a criação de um novo objeto, o Projeto ‘Sustentabilidade em Cena’ propõe a reutilização dos materiais descartados das fantasias e adereços, criando produtos como roupas, bolsas e itens de decoração. Sob a orientação de professores, em parceria com o Núcleo de Sustentabilidade e Economia Circular (NUSEC/ABIT), estudantes do curso de Design de Moda do SENAI CETIQT lideram esse processo, que une criatividade e responsabilidade ambiental.

Projeto acadêmico e o upcycling reaproveitando fantasias

Projeto acadêmico e o upcycling reaproveitando fantasias
Para a ex-aluna do curso de Design de Moda Luara Essinger, que fez parte do grupo de estudantes participantes do projeto, a experiência contribuiu para ampliar a sua percepção sobre os materiais: “Acredito que a iniciação científica é importante para entendermos um pouco mais sobre as peças de Carnaval e quais são os tipos de tecidos usados que, em sua maioria, são artificiais. Então, aprendi muito sobre o ciclo da moda e como podemos utilizar insumos orgânicos de formas cada vez mais sustentáveis. Aprendi a ver a produção e o ciclo de vida de uma peça de maneira mais cirúrgica”, comenta Luara.
Coleta, triagem e criação
Segundo o SENAI CETIQT, o processo começa com a coleta e triagem dos materiais descartados, que são analisados, desmontados e organizados em uma teciteca e uma materioteca – bibliotecas de tecidos, aviamentos e outros insumos. Com esses materiais em mãos, os alunos dão início à criação de novos produtos, explorando diferentes técnicas de design e reaproveitamento.
Entre as soluções mais utilizadas estão o patchwork, técnica de costura que consiste em unir pedaços de tecido para criar uma peça, a estamparia manual e a modelagem criativa, que transformam o que seria resíduo em produtos únicos e comercializáveis. Além de estimular a criatividade, o projeto permite aos alunos lidar com limitações de recursos, algo essencial em um mundo que busca soluções mais sustentáveis.

Projeto acadêmico e o upcycling reaproveitando fantasias

Projeto acadêmico e o upcycling reaproveitando fantasias
Para a professora do curso de Design de Moda Cristiane Santos, que atuou como uma das coordenadoras desse projeto, o resultado depende da peça: “Não é a gente que determina no que vai ser transformado o insumo. É o insumo que nos diz em que é possível transformar, porque a gente tem que desenvolver o que é possível com aquele material”, explica Cristiane.
Resultados para o meio ambiente
O impacto desse trabalho vai além das vitrines. Ao evitar que toneladas de materiais sejam descartadas em lixões, o projeto reduz a necessidade de produzir novos insumos, economizando energia e diminuindo as emissões de carbono. Além disso, ele se conecta aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, especialmente os que promovem educação de qualidade, trabalho decente e consumo e produção sustentáveis.
De acordo com a especialista em gestão ESG Camila Costa, que atua no Núcleo de Sustentabilidade e Economia Circular do SENAI CETIQT (NuSec), a promoção da conscientização e iniciativas como essa podem contribuir tanto com o meio-ambiente quanto com a renda de quem trabalha nos bastidores do Carnaval:
Em 2024, foram recolhidas 24 toneladas de resíduos têxteis provenientes de fantasias nos desfiles da Sapucaí, sem contar os desfiles das escolas menores (séries prata e bronze) e de blocos de carnaval que ocorrem nas ruas. Projetos que promovem a reutilização criativa desses resíduos não apenas reduzem o impacto ambiental, mas também geram oportunidades de renda e inclusão social, especialmente para comunidades carentes – Camila Costa
Projeções
Com o sucesso das primeiras experiências na iniciação científica, Cristiane Santos ainda prevê a possibilidade de expandir o projeto, incorporando mais rigor científico e ampliando o impacto, mostrando como esse avanço também reforça o papel da educação no enfrentamento dos desafios ambientais e sociais: “A ideia é sistematizar ainda mais o processo, criando manuais e registros detalhados para tornar o trabalho replicável em outras regiões ou até mesmo em outros setores”, destaca a professora.
Por fim, o SENAI CETIQT reforça que o Carnaval do Rio de Janeiro, reconhecido oficialmente como manifestação cultural, é muito mais do que uma festa, é um símbolo de criatividade e diversidade. Transformar os resíduos desse evento em produtos sustentáveis reforça essa identidade cultural e mostra como a economia circular pode ser uma ferramenta poderosa para gerar soluções que beneficiem o meio ambiente, a economia e a sociedade.
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