Tico Santa Cruz: “Cada um faz o que quer de sua voz pública, mas silêncio também é posição política”


O músico, que viu a mulher e o filho enfrentarem a Covid-19, falou do seu envolvimento com movimentos sociais, como o ‘Panela cheia Salva’, e a importância de mais pessoas aderirem: “Com a pandemia, acho que ajudaria se artistas que têm grande visibilidade ajudassem disseminando informações que nada têm a ver com política, ideologias, mas com ciência”. Além disso, Tico revelou que ele e a banda têm produzido sem parar. E mais: o músico e escritor está escrevendo livro no qual abordará a trajetória enfrentada por ele e a banda de 2014 até agora. “Não será uma biografia, mas traz um panorama geral, uma leitura do meu pensamento, e o que vivi ao longo desses anos com o pessoal da banda, minha família, pessoas que gostam de mim e também as que não gostam, já que pretendemos ouvir quem tem opinião contrária”

*Por Brunna Condini

A empatia e o olhar para o próximo sempre permearam a vida Tico Santa Cruz. Na semana passada, por exemplo, o vocalista do Detonautas Roque Clube, promoveu junto a outros artistas, como Preto Zezé, Kell Smith e Rogério Flausino, do Jota Quest, o Panela Cheia Salva ClubHouse Festival, com o intuito de arrecadar doações para o Movimento Panela Cheia  –  iniciativa da CUFA (Central Única das Favelas) com o Gerando Falcões e a Frente Nacional Antirracista, com o apoio do União SP e cooperação da Unesco  –, que buscam recursos para a compra de cestas básicas para pessoas em situação de vulnerabilidade. Em entrevista exclusiva após o evento, Tico faz um balanço da ação: “Minha admiração pelo trabalho que a CUFA desenvolve não é de hoje. Então, resolvi fazer um festival no aplicativo Club House para reunir amigos e também todos aqueles que poderiam colaborar com doações. Ficamos ao vivo durante duas horas. As doações foram direto para o site do Movimento Panela Cheia. A abrangência da atuação é nacional, portanto precisa de muitas contribuições para continuar atendendo pessoas em lugares onde quase ninguém chega. Aproximadamente 19 milhões de pessoas estão em situação de fome e 100 milhões em insegurança alimentar. É uma calamidade. Uma questão humanitária”.

E completa: “Se eu pudesse ter um único desejo realizado hoje seria que ninguém passasse fome. Em um país do tamanho do Brasil é triste e inaceitável. Um amigo meu diz algo que faz muito sentido: ‘não dá para ajudar todo mundo, mas todo mundo pode ajudar alguém'”.

"Num país do tamanho do Brasil, ter gente ainda passando fome é triste e inaceitável" (Reprodução)

“Em um país do tamanho do Brasil, ter gente ainda passando fome é triste e inaceitável” (Reprodução)

Com a realidade de um ano e dois meses de pandemia e longe dos palcos, Tico fala sobre o período: “Eu e minha filha (Barbara Odara, 12 anos) não pegamos a Covid-19. Mas minha mulher (Luciana Rocha, com quem está há 20 anos) e meu filho (Lucas, 19) testaram positivo. E temos nos mantido isolados, na medida do possível”, revela, acrescentando: “Um período difícil sem ter a renda dos shows, mas tenho apoiado ações que acredito, escrito um novo livro e composto muitas músicas. Já temos um disco inédito e várias canções para lançar. Tenho produzido muito com a banda mesmo de forma remota”.

Tenho produzido muito com a banda, mesmo de forma remota. Estamos esperando a vacina chegar para podermos voltar a trabalhar como antes” (Divulgação)

Detonautas Roque Clube (Foto: Bruno Kaiuca)

Durante uma hora, Tico bateu um papo aberto e comentou sobre as canções com temática político social que a banda lançou pela Sony Music, como ‘Racismo é Burrice, ‘Micheque’, ‘Mala Cheia’, ‘Kit Gay’, ‘Político de Estimação’ e ‘Carta ao Futuro’. “Essa última, ‘Carta ao Futuro’, lancei no Facebook com voz e violão e, poucas horas depois, já tinham mais de 100 mil visualizações. Ali vi que existia uma demanda das pessoas se sentirem musicalmente representadas por letras que não estavam sendo feitas. Ocupamos esse lugar e vimos o reflexo em todas as plataformas digitais. Ainda temos mais três músicas para lançar com essas temáticas, além do disco que tem uma pegada mais existencial”.

Ativista do seu tempo

Aos 43 anos, o carioca Luís Guilherme Brunetta Fontenelle de Araújo, o Tico Santa Cruz, é um dos artistas que se destacam por se posicionar sobre o que acontece no país. Você acredita que no cenário que estamos vivendo, talvez se mais artistas usassem a visibilidade que possuem para trazer temas relevantes para o foco, conseguiríamos mover essa estrutura para atender às necessidades do povo mais rapidamente? “Eu não julgo nenhum artista. Cada um faz o que acha melhor da sua voz pública. Porém, toda posição é uma posição política. Seja falar contra ou a favor. E, quando você se omite, também é uma posição. O silêncio também é uma posição política. Claro que nem todos os artistas têm disposição para receber críticas e uma série de consequências quando você expõe seus posicionamentos. Mas falando da questão da pandemia, acho que ajudaria se artistas que têm grande visibilidade ajudassem disseminando informações que nada têm a ver com política, ideologias, mas com ciência”.

"Eu não julgo nenhum artista. Cada um faz o que acha melhor da sua voz pública. Porém, toda posição é uma posição política. Falar contra, a favor, são posições. E quando você se omite, também é uma posição. O silêncio também é uma posição política" (Divulgação)

“Eu não julgo nenhum artista. Cada um faz o que acha melhor da sua voz pública. Porém, toda posição é uma posição política. Seja falar contra ou a favor. E quando você se omite, também é uma posição. O silêncio é uma posição política” (Foto: Bruno Kaiuca)

No front pela democracia

Tico diz que não se arrepende de ser um artista que se posiciona de forma tão aberta, mas reconhece que a atitude no front trouxe danos. “Antes da pandemia, nós como banda vínhamos retomando nossos espaços. Até porque eu, em 2018, decidi por conta própria começar um movimento de recolhimento pós-eleições. Mas aí veio 2020, a pandemia, e o presidente Bolsonaro já de cara começou a subestimar o vírus, as medidas de prevenção, indo contra seu próprio ministro da Saúde. Era muito difícil ficar em silêncio, então voltei a atuar de forma mais presente nas redes. Acho que as pessoas estão percebendo que o negacionismo é caminho sem volta. Antes, sofria ataques sistemáticos, boicote, censura, isolamento da banda e tivemos muitos danos financeiros. Nos posicionamos e tivemos retaliação. Por outro lado, durmo tranquilo. Sempre entendi que estava do lado das pessoas que prezam pela República e pela democracia. A questão não é partidária, mas de cunho democrático, pelo qual eu pretendo sempre atuar”.

durmo tranquilo. Sempre entendi que estava do lado das pessoas que prezam pela República, pela democracia. A questão não é partidária, é de cunho democrático, pelo qual eu pretendo sempre atuar” (Reprodução)

“Durmo tranquilo. Sempre entendi que estava do lado das pessoas que prezam pela República, pela democracia. A questão não é partidária. É de cunho democrático, pelo qual eu pretendo sempre atuar” (Reprodução)

Livro aberto

O músico está reunindo tudo o que viveu no período com a banda em um livro. “Estou escrevendo com o Bruno Levinson sobre toda essa trajetória que enfrentamos de 2014 até agora. Acho que meus companheiros foram muito fortes e resilientes de terem se juntado a mim nesta história. Se não fosse por eles, talvez eu não tivesse resistido. Acho que com o tempo, as coisas ficarão mais claras. E, quando tudo ficar mais claro, aquilo que perdermos por nos posicionarmos contrários à maioria, acredito que o universo possa nos retribuir de forma ao reconhecimento das pessoas, de que só estávamos nos colocando pela democracia”, observa Tico.

“A narrativa do livro começa em 2013 e de que maneira um pensamento foi construído para que eu tivesse a disposição de ir para linha de frente atuar como um artista praticamente isolado. Alguns outros artistas começaram a se manifestar em seguida. O livro não será uma biografia, mas traz um panorama geral, uma leitura do meu pensamento, e o que vivi ao longo desses anos com o pessoal da banda, minha família, pessoas que gostam de mim e também as que não gostam, já que pretendemos ouvir quem tem opinião contrária. É um registro em 360º de como todo esse movimento, envolvimento, afetou meu trabalho, minha vida, minhas percepções. Pretendemos lançá-lo no ano que vem, até por esse um ano político”.

"Tenho vivido um dia de cada vez, com a cabeça em sobreviver à essa pandemia. Claro que os impactos financeiros são enormes para quem não está trabalhando. Não estava preparado para ficar um ano e dois meses sem trabalhar. Não sou um homem rico" (Reprodução)

“Tenho vivido um dia de cada vez, com a cabeça em sobreviver à pandemia. Claro que os impactos financeiros são enormes para quem não está trabalhando. Não sou um homem rico” (Reprodução)

Da pandemia para os palcos

Ele revela que na pandemia a família precisou administrar a hiper convivência, já que todos foram privados das suas atividades como antes, e ele privado dos shows e da estrada. “Cada um reage emocionalmente de uma forma, equalizar isso não foi fácil. E me sinto como um comandante do navio e que não pode vacilar. Então tenho que buscar essa segurança para que eles entendam que nosso ‘navio’ não estava à deriva”, pontua. “Não sou um super homem, né? Faço terapia há muitos anos, mas caí em alguns momentos e busquei ajuda médica. Tenho vivido um dia de cada vez, com a cabeça em sobreviver à essa pandemia. Claro que os impactos financeiros são enormes para quem não está trabalhando para sustentar vidas”.

E revela: “Identifiquei no começo deste ano que estava em um princípio de depressão. Sou um cara ativo, do esporte, e comecei a ver que estava com dificuldades de levantar da cama, sem paciência. Então, procurei um médico e consegui voltar às minhas atividades. Fico contando os meses para que a maior parte da população esteja vacinada. Pela previsão, outubro. Não dá para sobreviver a mais um ano sem trabalhar”.

Como você imagina um show de retorno? “É até difícil de visualizar. Quando trabalhamos dentro de uma perspectiva de que não se sabe quando voltam os shows, isso mexe muito com você. Foge totalmente ao controle. Mas o show que gostaria de fazer é aquele em que vai poder ter um mundaréu de gente, todo mundo chorando, porque está voltando a viver. Isso é o que passa na minha imaginação: tão emocionado que não vou nem conseguir cantar direito”.

Tico imagina o show de retorno: "Eu ali, com todo mundo, tão emocionado que não vou nem conseguir cantar direito” (Reprodução)

Tico imagina o show de retorno: “Eu ali, com todo mundo, tão emocionado que não vou nem conseguir cantar direito” (Reprodução)