“Sofri abuso sexual aos 10 anos. Acho importante falar disso para ajudar outras pessoas”, desabafa Ed Lopez Dassilva


O ator, no ar na reprise de “Malhação – Viva a Diferença”, e também em “Salve-se Quem Puder”, fala abertamente, pela primeira vez, sobre a violência que sofreu na infância e de como ressignificou e transformou a dor em arte. Ele é autor do livro “Meninos que não vão para o Céu” e da websérie com o mesmo título: “Estou no Rio de Janeiro há 24 anos. Quando olho para trás e lembro que nasci numa cidade sem água potável, sem esgoto e sem energia elétrica, e estou na televisão, eu digo com muito orgulho que sou um vitorioso. Já dormi na rua, passei fome, fui vendedor, auxiliar de padaria, animei festas, entreguei quentinhas macrobióticas para celebridades, fui balconista de farmácia e agora me sinto uma pessoa realizada”

*Por Brunna Condini

Quando não tocamos em algo que dói muito, o que ocorrreu não desaparece. Mas quebrar anos de silêncio, de alguma forma, pode libertar. Além disso, dividir a experiência pode acolher outras pessoas que passaram ou estejam passando pelo mesmo. Pensando nisso, o ator Ed Lopez Dassilva, no ar na reprise de “Malhação – Viva a Diferença” (2017), e na trama das 19h, que está prestes a retornar, “Salve-se quem Puder”, decidiu falar com exclusividade ao site sobre uma dor antiga.

Em 2013, através do livro “Meninos que não vão para o Céu”, o ator revelou o abuso sexual que sofreu na infância. A obra inspirou também uma websérie com o título. Mas até então, Ed ainda não tinha falado abertamente sobre o assunto. Ele quis conversar conosco porque acredita que sua experiência, infelizmente, é mais comum do que se imagina. E é. O Brasil tem dados recentes de ao menos 32 mil casos registrados de abuso sexual contra crianças e adolescentes (dados do Ministério da Saúde de 2018). Se, por um lado, especialistas atribuem o aumento de registros ao investimento em campanhas, abertura de canais de denúncia e formação de profissionais para a identificação de situações de abuso, por outro, também destacam o momento crítico no enfrentamento deste tipo de violência. Ao longo de 2019, programas federais foram descontinuados, e a desarticulação entre entidades da sociedade civil e governamentais vive momento crítico.

“Eu sentia muito medo. Um dia tomei coragem e resolvi contar para a minha avó, mas ela não acreditou e me deu uma surra. Foi uma surra grande” (Foto: Lucas Lisboa)

A seguir, o ator enfrenta o desafio de mexer nas lembranças, tentando, quem sabe, apontar caminhos para quem vivencia ou vivenciou algo do tipo. Com uma carreira e muitos sonhos para realizar, ele só quer saber dos dias melhores, que já vieram, e virão.

Ed, quem te abusou durante quanto tempo e como isso acabou? “Aos 10 anos, fui morar com os meus avós no subúrbio de Fortaleza, no Ceará. Eles eram evangélicos e eu também frequentava a igreja. Aproximadamente um ano depois, o marido da minha tia, que também era evangélico, me convidou para ir à casa dele. Ele morava ao lado da casa dos meus avós. Nesse dia, a minha tia tinha saído de casa. Quando entrei, ele trancou a porta e disse que queria fazer uma brincadeira. Não fazia ideia do que era, porque na minha família, na minha escola ou na igreja, era proibido falar sobre esse tipo de assunto. Foi uma cena horrível, pois eu senti muita dor. No final, ele me ameaçou dizendo para eu não contar para ninguém porque eu estava possuído pelo demônio. Ainda me pediu para orar e tirar esse mal de dentro de mim. Lembro que corri para casa da minha avó e chorei muito. A partir daí, não consegui dormir direito, acordava gritando e sonambulava falando sozinho. Uma semana depois, aconteceu a mesma coisa, mas foi com o irmão dele que estava passando um tempo por lá. Enquanto eu ia para escola ele me agarrou no meio do caminho. Era um longo trajeto deserto, mais ou menos 20 minutos da minha casa até a escola. Ele me puxou para os fundos da escola Dolores Alcântara, que ficava perto de uma ponte de madeira. Fiquei muito machucado, cheguei sujo na escola e com os óculos quebrado. Tanto o marido da minha tia como o irmão dele me violentaram duas vezes. Eu sentia muito medo. Um dia tomei coragem e resolvi contar para a minha avó, mas ela não acreditou e me deu uma surra. Foi uma surra grande. Ele parou de me procurar e se separou da minha tia. Já o irmão dele voltou para cidade natal e nunca mais vi os dois”.

O relato de Ed mostra que abuso sexual não tem gênero. A violência que aconteceu à margem da família deixou danos que o artista tenta administrar desde então. “Até hoje tenho insônia. Demorei muito para entender o que tinha acontecido. Daí, em 2005, os pesadelos retornaram, e eu sempre tinha o mesmo sonho: que estava na casa que eu morava na época e não podia sair dela e não podia ir até a casa ao lado. Acordava triste e chorava sem motivo. Foi aí que relembrei das cenas de violência sexual. Nesta época, fui me isolando novamente e passei a andar de cabeça baixa. Eu não entendi, porque isso só veio à tona há pouco tempo dentro de mim. Acho que depois que o marido da minha tia e o irmão foram embora eu arquivei tudo e fiquei aliviado”, desabafa.

“Aos 14 anos conheci um rapaz por quem me apaixonei e bloqueei isso da minha mente. Mas, aos 30 anos, isso voltou a me perturbar. Procurei um psicólogo e um psiquiatra e fiz terapia. Recordo, que quando atuei na novela “Velho Chico” (2016), ainda tinha ataques de ansiedade. E até hoje durmo bem pouco”, revela.

“Somos nove irmãos. Apenas as minhas três irmãs e uma prima me apoiaram, me deram força. Minha mãe não entendeu direito” (Foto: Lucas Lisboa)

Como sua família reagiu quando soube? “Somos nove irmãos. Apenas as minhas três irmãs e uma prima me apoiaram e me deram força. Minha mãe não entendeu direito. Nos falamos uma única vez, mas depois ela não quis mais tocar no assunto, pelo menos comigo. Já os meus irmãos nunca falaram sobre isso. Não acredito que tenham lido o livro. Um deles assistiu a websérie e achou muito pesada, achou as cenas fortes”.

Transformando a dor em arte

Falar sobre a história também é passá-la a limpo. Aos 46 anos, ele vem transformando em arte sua experiência. Tanto que a primeira temporada da websérie “Meninos que não vão para o Céu” foi indicada ao prêmio do Rio Webfest, e a segunda temporada, ao Awards Rainbow Cinema Festival, em Nova York. Ele atua, dirige, escreve e produz a websérie, e, em outubro, começam as gravações de mais uma temporada. A produção aborda temas como homofobia, pedofilia, violência doméstica e HIV.

“De alguma forma todos esses temas fizeram parte da minha vida ou estiveram muito perto de mim e acho importante falar disso. Cresci vendo a homofobia de perto, sou vítima de pedofilia, assim como alguns amigos meus. Presenciei a violência doméstica dentro da minha casa e na de outros parentes. Já perdi cinco amigos soropositivos. Um deles até atuou em um curta-metragem que escrevi e dirigi sobre o tema. O vídeo ganhou o selo oficial do Ministério da Saúde e virou material escolar”, conta.

O que diria para alguém que sofre abuso e que acredita que de alguma forma, é “culpado” e não vítima? “Quando a websérie foi lançada, eu recebi várias mensagens de pessoas relatando casos. Me procuravam nas redes sociais pedindo conselhos e ajuda. Eram homens e mulheres, de várias idades, que foram abusados, violentados. E eu sempre reforço que essas pessoas são as vítimas, nunca o contrário. Há um mês conversei com um rapaz e ele dizia que sentia culpa, que mereceu, mas ele só tinha 12 anos quando aconteceu! Eu disse que a vítima de uma violência dessas nunca é culpada, mesmo que alguém a ameace e diga o contrário”.

“Quando olho para trás e lembro que nasci numa cidade sem água potável, sem esgoto e sem energia elétrica, e estou na televisão, eu digo com muito orgulho que sou um vitorioso” (Foto: Lucas Lisboa)

O ator é casado há 12 anos com o advogado e funcionário público Lucas, e durante a entrevista, acabou relembrando um caso de homofobia que passou ano passado, com um comerciante conhecido no seu bairro, em Santa Teresa. “Era um senhor que nos fornecia gás há anos. Como ele já tinha uma certa idade, chamou o filho para ajudá-lo. Eu liguei pedindo gás e ele esqueceu o celular dele ligado, enquanto aconselhava o filho a não se aproximar de mim por eu ser gay. Disse que eu era um “viado safado” e não queria que o filho fizesse amizade comigo. Ele veio me pedir desculpas dizendo que falou sem pensar, mas eu o denunciei assim mesmo. Até hoje ele não foi chamado para depor, voltei na delegacia para saber sobre o caso, mas não podiam me atender por causa da pandemia. Fiquei mal com isso, precisamos sempre denunciar”.

Realizando sonhos

No ar na reprise de “Malhação” e prestes a retornar ao set de “Salve-se quem Puder”, em que faz Gumercindo, funcionário do sítio de Zezinho, interpretado por João Baldesserini, Ed relembra sua trajetória até aqui. O ator nasceu no estado do Ceará, na pequena cidade de Lagoa do Riacho – município de Aracoiaba – a cidade foi construída pelo seu bisavô José Lopes da Silva, com menos de 1.500 habitantes, e até cinco anos atrás não tinha energia elétrica. “Estou no Rio de Janeiro há 24 anos. Quando olho para trás e lembro que nasci numa cidade sem água potável, sem esgoto e sem energia elétrica, e estou na televisão, eu digo com muito orgulho que sou um vitorioso. Já dormi na rua, passei fome, fui vendedor, auxiliar de padaria, animei festas, entreguei quentinhas macrobióticas para celebridades, fui balconista de farmácia e agora me sinto uma pessoa realizada”.

Quando soube que queria ser ator?Quando vi o Miguel Falabella falando no vídeo show sobre a arte de atuar. Ele falava com uma empolgação que acabou me tocando. Quando cheguei ao Rio, fui procura-lo. Consegui o telefone dele com um amigo jornalista e liguei para a casa dele. O Miguel foi atencioso e me convidou para assistir ao ensaio da peça “A Partilha”. Fiquei apaixonado por aquilo tudo. Ele me recebeu muito bem e disse que eu era um jovem muito corajoso. Eu tinha 22 anos na época. O Falabella me disse que se eu consegui chegar até ele vindo de longe eu era capaz de chegar em qualquer lugar. Saí do teatro cheio de gás e confiante”.

Ed Lopez em cena de “Malhação”: “Já dormi na rua, passei fome, fui vendedor, auxiliar de padaria, animei festas, fui balconista de farmácia e agora me sinto uma pessoa realizada” (Divulgação)

Desde então, ele vem transformando obstáculos em motivação para conquistar seu espaço: “Sonho em ser um ator reconhecido, atuar em bons papéis que não sejam apenas secundários. E também sonho em escrever uma série para a televisão. Aliás, já comecei a escrever”.

Estamos na torcida, Ed.