“Pessoas trans são oprimidas todo dia. É existir com medo no país que mais mata transexuais”, diz Benjamin Damini


Em entrevista exclusiva, o artista, que assinava Bia Damini, fala de sua transição, do apoio da família, dos amigos e dos seguidores, e de relacionamento e amor. Além disso, salienta sobre os enfrentamentos diários: “Não sei se existe uma opressão específica, porque lido com ela diariamente. Eu tenho medo de ir à praia, andar na rua, usar um banheiro público. E isso, por si só, já é bem opressor. E se fizermos um recorte social, transexuais negros e periféricos vão sofrer ainda mais com essa violência, com essa opressão. Acho que o que fica para mim dessa questão da opressão é de existir sendo oprimida, porque é isso”

*Por Brunna Condini

De terça-feira para cá, a vida de Benjamin Damini – que, antes de utilizar as redes sociais para compartilhar sua transição de gênero, assinava como Beatriz Damini ou Bia Damini– tem andado bem atribulada. “Não parei um minuto. Fiquei esses últimos dias respondendo mensagens e atendendo telefonemas. A maioria das pessoas que me procurou foi para demonstrar acolhimento e carinho. Achei incrível e que me incentiva a acreditar que a sociedade ainda tem cura. Todo esse afeto, amor, inclusão, acredito que sejam a chave para que a gente consiga transcender todos os paradigmas. E a repercussão positiva do post me motivou bastante a continuar lutando neste sentido”.

“A maioria das pessoas que me procurou foi para demonstrar acolhimento, carinho. Achei isso incrível. A recepção foi muito positiva” (Foto: Guto Costa)

Reproduzimos, abaixo, o texto postado por Benjamin no Instagram:

“Benjamin quer te contar uma história. Ele sou eu. Nessa foto eu tinha 3 anos. Aos 3, eu acreditava ter nascido no corpo errado e por muitos anos rezei antes de dormir pra acordar no dia seguinte no corpo certo, no corpo de um menino. Aos 4, convenci meus amigos da escola de que eu era um menino disfarçado de menina, mas ninguém além deles poderia saber. Aos 7, quando meus seios começaram a se desenvolver e eu não podia mais brincar na praia sem a parte de cima do biquíni, eu chorei. Aos 9, quando eu menstruei, eu também chorei. Foram choros intermitentes que só cessaram depois de dias. Porque eu nasci fêmea, toda fêmea tem que ser menina. Foi isso que sempre me disseram. Então quem sabe seja isso mesmo. Eu sou uma menina e pra sempre vou ser. Mas eu não me sinto menina. Não sei nem ser menina. Não interessa. Aprende. É assim que vai ser. Enxuga essas lágrimas. Engole esse choro. Engole tudo o que te diferencia das outras meninas. Engoli. Comprei sutiã. Sou uma menina. Aos 12, comecei com as explosões de agressividade com a minha família e com qualquer colega na escola que me chamava de maria-macho. Aos 13, escrevi uma história de um menino chamado Benjamin que sentia demais. Aos 14, veio a primeira depressão. Terapia. Remédios. Aos 16 arrumei um namorado. Antônio. Antônio não é o nome dele de verdade. Tipo Beatriz. Eu controlava até as roupas que o Antônio usava. Troca esse shorts porque não tá combinando com a blusa, Antônio. Aliás, não gosto dessa blusa, deixa eu escolher outra. Tadinho do Antônio. Antônio foi uma das algumas vítimas das minhas projeções de gênero inconscientes. A verdade é que eu queria poder usar as roupas que o Antônio usava. E eu até podia. Mas tinha medo. Aos 18 comecei a namorar Ana. Ana não é o nome dela de verdade. Tipo Beatriz. Mas por 21 anos esse nome fez muito sentido. Atriz. Era isso que eu era. Atriz de mim. Quando Ana terminou comigo, eu percebi que eu não sabia quem eu era de fato. Fui buscar”.

“Todo esse afeto, amor, inclusão, acredito que sejam a chave para que a gente consiga transcender todos os paradigmas” (Foto: Guto Costa)

O relato é emocionante e ganhou o apoio dos seguidores e de outros artistas. Aos 21 anos, Benjamin que esteve em “Malhação: toda a forma de amar” interpretando Martinha, conversou com o site HT sobre como lidou com as mudanças, por dentro e por fora. E também sobre a família e todos os sentimentos que rodeiam um movimento como esse.

“Tenho plena consciência que nasci no corpo certo. Meu corpo não é errado. Por que para mim não existem corpos certos e corpos errados, o que existem são corpos” (Foto: Guto Costa)

HT – Aos 3 anos você já sentia que estava no corpo errado, é isso? Como foi exatamente?

 BD – “Sim, com essa idade eu me sentia assim. Hoje já não me sinto mais dessa forma. Tenho plena consciência que nasci no corpo certo. Meu corpo não é errado. Por que para mim não existem corpos certos e corpos errados, o que existem são corpos. Acho até importante falar sobre isso, por que existe esse senso comum: ‘Ah, ele é trans porque acredita que nasceu no corpo errado’. E isso é uma afirmação meio equivocada, porque entra em um lugar de culpabilizar as pessoas trans e patologizar a nossa existência. Acho isso um pouco perigoso. Então, embora esse dilema do “corpo errado” tenha feito parte da minha vida, da minha infância, principalmente, e eu imagino que faça parte do contexto de algumas pessoas trans, acho importante falar que esse sentimento não é uma regra e nem uma condição da transgeneridade. Para mim, por exemplo, isso deixou de ser verdade. Acho que nasci no corpo certo para mim. E inclusive, se eu pudesse nascer um homem cisgênero, não escolheria isso. Eu me amo. Amo meu corpo, me aceito do jeito que sou. Para mim é me permitir ser quem eu sempre fui, o homem que sempre fui, e poder exercer meu livre arbítrio quanto à minha existência. E dentro disso, quanto ao meu corpo”.

HT –  E a sua família quando percebeu e como reagiu?

 BD – “Meus pais dizem que sempre souberam. Eu já esboçava a minha transexualidade desde a primeira infância. Então, para eles não foi surpresa, a reação foi de acolhimento. Tanto da minha família, quanto dos meus amigos. Tenho muita sorte, sou muito grato por ter tido apoio e suporte familiar. Isso é muito importante e só vem para me mostrar que escolhi as pessoas certas para ter essa troca de afeto. É muito bom saber disso. Meus pais já sabiam que eu ia fazer o post e também apoiaram. Sou uma pessoa feliz no meu contexto familiar e afetivo. Tenho um irmão, que é dois anos mais velho que eu, e agora na pandemia estou na casa dos meus pais em Sorocaba (São Paulo), tem sido ótimo. Venho de alguns anos morando fora daqui, por conta de estudos ou trabalho. E agora estou tendo esse privilégio de passar mais tempo com eles”.

HT – Quais eram as principais dúvidas que te habitavam antes de terça-feira?

 BD – “Para ser sincero, não existiram dúvidas quanto ao post. Ele veio de uma necessidade minha, comigo mesmo, de contar essa história do início ao fim. No princípio era isso, escrevi no meu bloco de notas, deixei ali. Até tinha intenção de trazer a público, mas quando eu estivesse pronto para isso. Eu queria viver um dia de cada vez. Eu escolhi o dia 22, porque marca o início da Primavera, que é uma data muito especial para mim, essa virada. Quando ao meu processo também, não tenho dúvidas. Estou vivendo um dia por vez e respeitando o meu processo. Celebrando as pequenas conquistas comigo mesmo e com a minha família, amigos”.

HT –  Achou que era lésbica antes? Teve namoradas? 

 BD – “Não me identificava como mulher lésbica antes de me entender trans. Tive um relacionamento sério com uma mulher. E sempre fui muito aberto aos meus processos de autoconhecimento, ela sempre me apoiou, me respeitou, porque no final das contas, é sobre isso: a gente escolher estar com pessoas que nos amam, apoiam, respeitam. Se eu me amo e me acolho, não vejo o motivo de estar em relações que  não me dão isso de volta, sabe?”.

HT Você recorda em que momento teve a consciência de que era trans? A terapia a ajudou?

 BD – “Em alguns momentos tive realmente esse clique de consciência, mas na maioria deles não me permitia olhar para isso. Então, a terapia me ajudou muito. Principalmente, na questão de me permitir olhar para algo que eu não queria ver, mas que, no final das contas, era o que eu precisava”.

HT – Você disse que precisou reprimir quem você era. O que mais marcou como opressão?

BD  – “Não sei se existe uma opressão específica, porque lido com ela diariamente. Pessoas trans são oprimidas todos os dias. Existir sendo trans, já é existir com medo. Eu tenho medo de ir à praia, andar na rua, usar um banheiro público. E isso, por si só, já é bem opressor. Vivemos no país que mais mata transexuais no mundo. E se fizermos um recorte social, transexuais negros e periféricos vão sofrer ainda mais com essa violência, com essa opressão. Acho que o que fica para mim dessa questão da opressão é de existir sendo oprimido, porque é isso”.

HT – Pretende continuar trabalhando como ator?

 BD – “No momento estou focado nos meus projetos musicais. No início deste ano assinei um contrato de distribuição musical com a Sony, e a gente está produzindo meu primeiro single, que se chama “Gela”, que deve ser lançado em novembro. Estou super empolgado e em breve terei novidades”.

HT – O que está sentindo agora é bom?

 BD – “Estou me sentindo muito leve. Me sinto com cem quilos a menos (risos)”.

HT – Está namorando alguém?

 BD – “Não estou namorando. Estou em um momento que está muito bom ser só, existir só. E compartilhar minha vida comigo mesmo. Tem muita beleza na solidão e na solitude. Está sendo bom experimentar. Mas também não me fecho para amar, para o amor, a gente nunca sabe. Estou sozinho, mas com o coração aberto. Sempre”.

HT – Benjamin já nasce perdoando? Que sonhos ele tem?

 BD – “Gostei muito dessa frase. É isso. Precisei me perdoar para me permitir ser quem eu sou. E hoje eu quero existir nessa minha completude. Poder me expressar sem medo. Permitir que a minha auto identificação e a minha liberdade de ser quem sou sejam as minhas maiores qualidades. Quero fazer arte. Escrever, cantar as minhas histórias, dar vida às minhas composições. Fazer música para mim e para o mundo. Acho que é algo que a minha alma está pedindo neste momento. Esses são meus sonhos”.

“Precisei me perdoar para me permitir ser quem eu sou. E hoje eu quero existir nessa minha completude. Poder me expressar sem medo” (Foto: Guto Costa)