No Rio, chef francês Jerôme Bocuse se reúne com a altíssima nata da gastronomia brazuca e afirma: “Chef-celebridade é um perigo!”


Avesso ao excesso de badalação do métier, o herdeiro de Paul Bocuse e presidente do Sirha – espécie de Copa do Mundo da alta gastronomia que terá edição no Rio –, ainda pretende degustar uma moqueca básica antes de embarcar de volta

Há cerca de 35 anos atrás, o Brasil começava a engatinhar na gastronomia internacional, com a presença de Paul Bocuse e de dois profissionais hoje consagradíssimos que se instalaram no Brasil por terem ligação direta com o mestre: Claude Troisgros e Laurent Suaudeau. De lá para cá, a culinária nacional nunca mais foi a mesma, com chefs estrangeiros aterrissando no país e desmistificando ingredientes para os quais ninguém dava bola – mas que sempre fizeram parte do dia a dia –, prontos para revelar essas pérolas para o mundo. Se a terra brasilis foi efetivamente descoberta por Pedro Álvares Cabral e sua turma, a arte da boa mesa foi desbravada por aqui às custas de uma patota de alguns franceses e outros brasileiros pioneiros que, no Rio ou São Paulo, equivalem aos bandeirantes que unificaram o território. Hoje, como todos sabem, gastronomia está na moda, mais até do que a própria moda, com fartura de programas abundando nas televisões abertas e fechadas e cozinheiros elevados ao mais alto patamar no star system. E, com toda essa efervescência, Sirha, o encontro internacional de grandes chefs e da indústria da gastronomia e da hotelaria – evento de referência na França e uma espécie de Copa do Mundo do setor –, inaugura braço latino-americano no Rio em 2015, motivo pelo qual Jerôme Bocuse, filho de Paul e presidente da instituição, compareceu à Cidade-Maravilha nesta quarta-feira (3/12) para realizar foto histórica no Aterro do Flamengo, na companhia de quase 100 renomados profissionais das caçarolas, entre nativos e estrangeiros aqui fixados, a fim de divulgar a presença do evento que está por acontecer em solo brazuca.

HT, óbvio, munido de sua verve investigativa, compareceu de mala e cuia ao badalado café da manhã no apartamento do cônsul-geral da França, Brice Roquefeuil, no Flamengo, ponto de encontro para todos depois posarem para o registro. A surpresa foi gigante e praticamente todo mundo estava lá: além do próprio Jerôme, da presidente internacional da Sirha, Marie-Odile Fondeur, e de Vania Tavares, a executiva da Fagga / GL Events Exhibitions (empresa que esta trazendo a Sirha para o país), era possível esbarrar (tal a densidade demográfica) com chefs do calibre de Flávia Quaresma, Claude Troisgros, seu filho Thomas, Laurent Suaudeau e sua cara-metade Sissi, Pedro de Artagão, Christophe Lidy, Kátia Barbosa, Ísis Rangel, José Hugo Celidônio, Emmanuel Bassoleil, Francesco Carli, Ana Helena Barbará, Nao Hara, Felipe Bronze, Jan Santos, Rolland Villard, Frédéric Monnier, Juarez CamposMarcos Sodré, Olivier Cozan, Onildo Rocha, Silvana Bianchi, Thiago FloresDominique Guerin, Joel Guerin, Pascal Jolly e um sem número de cabeças coroadas, à exceção de Roberta Sudbrack – que não pode voltar a tempo de Nova York –, Alex Atala e, talvez, mais ninguém. Dava até para brincar que, se caísse um torpedo no local, o Brasil passaria fome. Marie-Odile Fondeur evocou a energia do Rio e a alquimia entre toda a turma reunida e Flávia Quaresma foi categórica, agradecendo: “É formidável reunir esse grupo todo.”

Claude Troisgros, presidente da Sirha Brasil, estava emocionadíssimo com a presença de todos e, junto com Flávia, fez as honras da casa: “É um momento especialíssimo, uma oportunidade incrível e a primeira vez que vejo tantos chefs reunidos. Vamos divulgar o Brasil porque, afinal, eu sou brasileiro!”

Foto: Ari Kaye (Divulgação)

Foto: Ari Kaye (Divulgação)

Francês de nascimento, Jerôme Bocuse passa boa parte do seu tempo nos Estados Unidos, já que é o nome à frente do pavilhão francês do Epcot Center, um dos quatro parques temáticos da Disney. Além da administração do restaurante, que serve 1.500 couverts e tem 300 empregados em Orlando, também preside o Sirha, considerado como a maior feira de alimentação e de artes culinárias do mundo, que ocorre em Lyon desde 1983. Ele também integra o comando do Bocuse D’Or, concurso gastronômico internacional criado por seu pai, em 1987, onde a adrenalina é de verdade e aquelas competições filmadas quadro a quadro nas atrações televisivas sequer chegam aos tornozelos, e a Coupe du Monde de la Pâtisserie, que contempla os confeiteiros.

HT trocou figurinha com ele em um animado tête-a-tête a caminho da sessão fotográfica, onde o chef comentou: “Fico muito feliz de realizar o evento no Rio e o Brasil ter sido escolhido como sede para a sucursal sulamericana do Sirha. Apoio completamente.” Mas, papo vai, papo vem, um alerta: “Muita coisa mudou  nestes 31 anos, desde quando o evento começou. Vejo no Brasil uma semelhança com os Estados Unidos. Não havia gastronomia de verdade por lá e a coisa se profissionalizou. De uma certa forma, nestas última décadas, a América passou a acompanhar a Europa e ter sua identidade culinária. Isso é louvável, mas não podemos nos esquecer da essência: existe um enorme perigo.” Como assim? Bocuse explica: “o fato de os chefs terem sido alçados ao posto de celebridade pode afastá-los de sua genuína vocação, que é comandar uma cozinha. Esse excesso de exposição é prejudicial. Tem muito profissional novato que está preocupado com cozinha molecular, em fazer show, mas não sabe o beabá “, afirma, comparando esse contexto com o dos produtores de moda wannabes que querem se sentar nas primeiras filas dos desfiles e os jovens atores de televisão que preferem o cultivo do estrelato à atuação.

Laurent Suaudeau concorda: “É preciso haver seriedade e não se pode deixar de lado o conteúdo. Isso é o principal. Não adianta valorizar a apresentação final do prato e abdicar de todo aquele artesanato que compõe a rotina de um restaurante. Isso não é culpa dos jovens profissionais, é o sistema midiático que os empurra para isso, mas, por isso mesmo, se torna necessário ter maturidade.”

Pascal Jolly é outro que enfatiza a questão: O dia a dia de um restaurante é milimétrico. Tudo é sistematizado para facilitar os processos e, mesmo assim, o que acontece no almoço é diferente daquilo que se vê no jantar do mesmo dia. Essa é a magia e podem causar enorme estrago os chefs-celebrities, sem o domínio do ofício e sem a certeza absoluta de que, mesmo com este, nada sai igual”, acentua, comentando que entende que os holofotes atuais são reflexo da própria divulgação da gastronomia, mas que “não se pode perder o eixo.”

Christophe Lidy, por sua vez, enfatiza que o meio mudou para melhor, na viradinha dos anos 1980, quando Trosigros e Laurent aportaram no Rio, cada qual comandando um restaurante nas duas pontas opostas da mesma Copacabana, respectivamente o Le Pré-Catelan e o Saint-Honoré: “A profissionalização foi inevitável, assim como a globalização. O momento é ótimo para a gastronomia.” E continua: “São Paulo pode ser a capital do segmento no Brasil, pode se maior e com mais casas, mas o Rio tem excelentes opções e é para cá que os franceses querem vir.” Mas, para ele, a tônica do novo milênio é mesmo a maneira de pensar global: “Assumi um desafio tremendo ao comandar a boulangerie do Zona Sul (supermercado carioca). Mesmo com a massa dos itens vindo diretamente da França, não é brincadeira garantir que o produto seja o mesmo em todas as filiais.”

Já Frédéric Monnier reconhece o avanço do setor no Brasil nestes 30 anos: “A Sihra pode ajudar a acabar com um certo oba-oba que existe e ajudar a fomentar o business. Não dá para esquecer que o comando de uma cozinha é a base de tudo”.

Este slideshow necessita de JavaScript.

Fotos: Ari Kaye (Divulgação) 

A brasileiríssima Kátia Barbosa, do celebrado Aconchego Carioca, observa sobre a pluralidade da culinária no país: “É importante olhar aqui com a visão de quem vem de fora, como nossos colegas franceses. É como viajar para o exterior: você viaja, olha um monte de coisa que seria comum lá fora e que, para a gente, é pitoresco e, na volta, surge uma nova maneira de enxergar o Brasil. Criaturas iluminadas como Troisgros e Laurent viram graça no jiló, na tangerina, no limão, no quiabo e na batata baroa, por exemplo, e nunca mais foi o mesmo. Com isso, deixamos de ser bichinhos do mato e o Brasil Regional ganhou o mundo e se tornou cosmopolita.”

Jan Santos, mineiro que toca os hispânicos Entretapas e Ibérico – e que abre agora em dezembro filial do primeiro na Farme de Amoedo, em Ipanema –, vai fundo nesse conceito: “A gastronomia carioca foge do óbvio. O olhar francês aprimorou a técnica e hoje temos essas duas vertentes igualmente poderosas: a clássica ou francesa, um primor, elaborada ao extremo, minuciosa; e  a visão de quem busca outro tipo de experimentação, como o que acontece hoje na Espanha e no Peru, na qual se parte da busca do ingrediente. Investigar novos produtos, novos fornecedores e, a partir daí, chegar a receitas criativas é algo que me fascina.”

Por fim, em meio ao burburinho todo, Jerôme Bocuse ainda procura otimizar sua visita ao Rio, declarando: “É a segunda vez que venho à cidade, sempre nessa correria. Não dá para conhecer nada direito ainda, mas, dessa vez quero conferir uma moqueca!”