Mulheres são protagonistas em Tóquio e repudiam machismo dentro e fora das competições


Apesar de no Japão a participação feminina ser recorde na quantidade e proporção de atletas, ainda ficamos nos perguntamos o quanto avançamos na questão de gênero e igualdade. Para refletir conosco, convidamos a atriz Leticia Birkheuer, que já foi jogadora de vôlei e ama esportes, a pesquisadora de narrativas femininas Maria Carolina Medeiros e o pesquisador Valmir Moratelli: “Precisamos cobrar cada vez mais participação feminina e isso deve vir junto com investimentos na área esportiva por parte dos governos e das empresas que patrocinam determinados esportes. É inadmissível que ainda hoje tenhamos um único atleta, jogador da seleção masculina de futebol ganhando mais que todo o time da seleção feminina de futebol brasileira. Há algo muito errado que ainda precisa ser feito para mexer nesse ciclo”, opina o pesquisador

*Por Brunna Condini

Os Jogos Olímpicos de Tóquio, no Japão, são delas. É a maior participação feminina da história, com mulheres representando 49% dos atletas. É um marco histórico? Sim, sem dúvida. Mas o que isso representa? Quer dizer que uma maior visibilidade no esporte pode levar à igualdade tão batalhada? O espaço nos jogos foi dado em pé de igualdade? Maria Carolina Medeiros é professora, doutoranda em Comunicação na PUC-Rio, pesquisa narrativas femininas e frisa: “Quase da metade dos participantes destas Olimpíadas são mulheres. Para Paris 2024 temos a promessa de 50% a 50% da participação dividida entre mulheres e homens, mas é importante refletirmos como isso não representa de fato uma equidade. Você diz que mais mulheres podem participar, mas não dá condições igualitárias para isso. É só observarmos o exemplo da atleta lactante Ona Carbonell, referência mundial do nado artístico. Ela não pôde ficar com seu filho Kai em Tóquio apesar de a criança, de 11 meses, estar em período de amamentação. Na verdade, ela não teve facilidade para levar seu filho. Não é que não tenham deixado levá-lo, mas não foi permitido que ela se deslocasse para amamentá-lo. Então, no final das contas, ninguém “proibiu”, mas não facilitaram a vida dela”.

A atleta Ona Carbonell e seu filho Kai durante uma concentração ano passado (Reprodução)

A atleta Ona Carbonell e seu filho Kai durante uma concentração ano passado (Reprodução)

Maria Carolina recorda ainda a situação ocorrida com a Federação Norueguesa de Handebol de Praia, que optou por não jogar com o uniforme ‘pré-estabelecido pelo torneio’ – o biquíni – e, por conta disso, ter sido multada. A Federação de Handebol do país foi notificada que teria que pagar 150 euros, cerca de R$ 900 por jogadora que não cumpriu as regras de uniforme de torneio. “Isso deveria ser uma escolha, por exemplo. Além disso, têm os comentários chamando a atenção para a beleza de algumas atletas, ao invés da sua atuação no esporte. Então, é para pensarmos que colocam as mulheres quase em número páreo, mas sem as mesmas possibilidades. E isso, na minha avaliação, é fruto de um processo histórico, que é esse lugar do esporte, que não é o da mulher. Historicamente, o lugar da mulher não é o do espaço público, então elas precisam estar o tempo todo comprovando a sua feminilidade, porque o esporte, via de regra, masculinizaria. Aí pergunto: ‘isso é mesmo estar em pé de igualdade?'”, provoca.

A seleção norueguesa de handebol de praia que se recusou a jogar de biquíni em Tóquio (Reprodução/ Twitter)

A seleção norueguesa de handebol de praia que se recusou a jogar de biquíni em Tóquio (Reprodução/ Twitter)

A atriz e apresentadora Letícia Birkheuer, no ar atualmente na reprise da novela ‘Império’, no horário das 21h, também é ex-atleta e foi descoberta jogando vôlei, no final dos anos 1990, e seguiu uma carreira como modelo. Ela reconhece que o machismo sempre foi uma questão a ser combatida dentro do esporte. “Não sofri episódios deliberados de machismo, porque quando joguei era uma criança. Eu tinha 14 anos. Mas acho que a condição do machismo no esporte não mudou muito. As mulheres continuam sendo depreciadas, tolidas, discriminadas, não valorizadas, dentro e fora do esporte”, constata Letícia. “Tenho assistido os jogos de vôlei. Adorei as meninas na praia e os da seleção brasileira masculina de vôlei também. Assisti com meu filho João, que ama o esporte”. E  acrescenta: “Incentivo muito o João em relação ao esporte, pois além de ser saudável, estimula a competitividade, o espírito de equipe, a liderança, os hábitos saudáveis e, principalmente, ensina os valores bons de um ser humano, como o respeito às mulheres”.

Letícia Birkheur: "Não sofri episódios deliberados de machismo porque quando joguei era uma criança, tinha 14 anos. Mas acho que a condição do machismo não esporte não mudou muito" (Reprodução)

Letícia Birkheuer: “Era uma criança quando joguei vôlei e acho que a condição do machismo não esporte não mudou muito” (Reprodução)

O exemplo na sede

O Japão, sede dos jogos, é pioneiro em áreas como tecnologia e educação. Mas, quando se fala do tratamento dado às mulheres, o país asiático ainda tem muito que aprender. Segundo o ranking global de igualdade de gênero divulgado em março pelo Fórum Econômico Mundial (WEF), os japoneses ocupam a posição 120 de um total de 156 países analisados. Apesar de ser a terceira maior economia mundial, a presença limitada de mulheres em cargos de poder e cultura machista ainda prejudicam desenvolvimento do país. Além disso, a própria organização japonesa dos Jogos de Tóquio foi destaque por polêmicas envolvendo o machismo, não dando ‘bom exemplo’ em relação a questão de gênero e igualdade, quando em fevereiro, o então chefe das Olimpíadas e ex-primeiro-ministro do Japão Yoshiro Mori renunciou ao cargo após fazer comentários sexistas.

“A maior participação das mulheres nas Olimpíadas sem dúvida vem pontuar uma luta constante e historicamente construída por maior participação feminina na sociedade. Seja em postos de trabalho, seja em participação governamental, seja por direitos reconhecidos na lei ou pelo próprio combate ao feminicídio, às violências domésticas e a todo tipo de agressão contra a mulher. A gente precisa olhar com ‘bons olhos’ o que está acontecendo em Tóquio, não só em relação à discussão de maior participação feminina nos Jogos, mas de maior participação em debates em relação a gênero. As discussões sobre atletas não-binários, sobre homossexuais, sobre a inserção inédita de atletas transgêneros disputando espaço dentro de um ambiente olímpico, tudo isso reflete anseios novos, construídos neste momento na contemporaneidade”, reflete Valmir Moratelli, pesquisador, jornalista e autor do livro ‘Armários Abertos – depoimentos sobre a diversidade sexual‘.

Laurel Hubbard: neozelandesa faz história como primeira atleta olímpica transgênero (Divulgação)

Laurel Hubbard: neozelandesa faz história como primeira atleta olímpica transgênero (Divulgação)

E acrescenta: “É importante pontuar que a participação das mulheres em maior número nas Olimpíadas vem agregar uma discussão sobre a participação feminina na sociedade, como um todo. Os Jogos Olímpicos são um evento de entretenimento, esportivo, mas que movimenta milhões na economia de um país, empresas patrocinam esse evento, então é com ‘bons olhos’, que temos que perceber que tem uma questão publicitária, mas cultural mudando. Há países participando dos jogos, que não têm nem metade das leis de proteção às mulheres que o Brasil tem, por exemplo. É fundamental percebermos como as Olimpíadas conseguem chegar a países bem fechados, e que não conseguem entrar na discussão sobre maior participação de gênero, em outros meios que não são só os esportivos. Desde a vestimenta, a questão comportamental e a de atuação social. A participação das mulheres nesta Olimpíada celebram um novo marco decisivo sobre a questão do debate de gênero na sociedade. E isso é um caminho sem volta, não dá para regredir”.

Sem perdão: machismo e falta de incentivos 

A atleta brasileira de saltos ornamentais Ingrid Oliveira teve o seu nome entre os assuntos mais comentados nas redes sociais, sendo apontada como uma das mulheres mais belas dos Jogos em Tóquio. Os comentários evidenciam seus atributos físicos e não suas habilidades esportivas, e também relembram o episódio de machismo que a atleta de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, vivenciou nas Olimpíadas na cidade, em 2016, quando se relacionou com um atleta da canoagem. A repercussão foi tanta, que quase colocaram a sua carreira esportiva em xeque. Para Valmir Moratelli, isso é mais um lado do problema a ser combatido. “Precisamos cobrar cada vez mais participação feminina e isso deve vir junto com investimentos na área esportiva por parte dos governos e das empresas que patrocinam determinados esportes. É inadmissível que ainda hoje tenhamos um único atleta, jogador da seleção masculina de futebol ganhando mais que todo o time da seleção feminina de futebol brasileira. Há algo muito errado que ainda precisa ser feito para mexer nesse ciclo”, opina o pesquisador.

A atleta brasileira de saltos ornamentais Ingrid Oliveira teve o seu nome entre os assuntos mais comentados nas redes sociais, sendo apontada como uma das mulheres mais belas dos Jogos em Tóquio e foi vítima de machismo (Reprodução)

A atleta brasileira de saltos ornamentais Ingrid Oliveira teve o seu nome entre os assuntos mais comentados nas redes sociais, sendo apontada como uma das mulheres mais belas dos Jogos em Tóquio e foi vítima de machismo (Reprodução)

“Um dos caminhos que Tóquio nos apresenta, por exemplo, é a competição em modalidades mistas, podendo proporcionar as competições em grupo, misturando homens e mulheres na mesma modalidade esportiva. Isso proporciona uma discussão sobre a participação em conjunto, construtiva, sobre a trajetória olímpica. Até porque o debate que propomos é da maior diversidade, e ela só será possível quando todos puderem ter acesso a praticar os esportes que bem quiserem. São muitas camadas que precisam ser discutidas e estão sendo abertas em Tóquio. A construção dessa diversidade também precisa passar pelo debate da prática de melhor igualdade social. A Olimpíada reflete um pouco dos anseios que temos neste momento e no cenário em que o Brasil atravessa um ‘desgoverno’, complicado, que temos atrasos significativos em relação a todo tipo de preconceito, os Jogos vem nos ensinar que a força está em nosso povo, por mais clichê que essa frase pareça. Os nossos atletas de origem humilde, nordestinos, mulheres, negros, estão no alto do pódios e a eles que devemos reverenciar. São os nossos ‘deuses’ olímpicos, que são combatidos pelo discurso negacionista e preconceituoso que ainda vigora no país”, conclui Moratelli.