Monica Benicio para além do título de viúva de Marielle Franco: “O Estado não deve uma resposta apenas à sociedade brasileira, mas ao mundo”


Em conversa exclusiva com o site HT, a arquiteta e militante dos Direitos Humanos falou ainda sobre a homenagem da Mangueira à Marielle Franco: “É super atual. A escola conseguiu captar a conjuntura política e o momento social, inserindo-os para dentro do carnaval. Isso nos lembra que, por mais que seja um momento de festa, não vamos mascarar as nossas dores com fantasias e vícios. É momento de luta e resistência também”

Ontem, 14 de fevereiro de 2019, mais um mês sem respostas sobre quem mandou matar e quem matou a vereadora Marielle Franco. Os ponteiros do relógio, de qualquer forma, continuam a girar e o Estado perpetua um silêncio ensurdecedor. Tentando preservar a memória da ativista e manter vivo o seu legado, pessoas de todos os cantos do país se manifestam diariamente exigindo respostas e justiça. O que, ainda assim, não chega nem perto da vivência e luta da arquiteta, militante dos Direitos Humanos e viúva de Marielle, Monica Benicio, que conversou com exclusividade com o site HT. Ela comentou sobre a homenagem da Estação Primeira da Mangueira, o exílio do ex-deputado federal Jean Wyllys e o silêncio dos governantes a respeito do crime ocorrido em 14 de março de 2018.

Os ecos no exterior: Monica em ação em Londres (Foto: Camila Fontenele)

HT: A Mangueira escolheu, para o carnaval 2019, um enredo que homenageia a vereadora Marielle Franco. Enquanto preservadora desse legado e companheira da ativista, o que tem a comentar?

MB: Durante o processo de escolha do samba, eu soube que um dos concorrentes trazia essa homenagem e fiquei realmente muito feliz. Antes, eu já tinha conhecimento do enredo e havia achado lindo e pertinente por toda a conjuntura política que vivemos. O carnaval, enquanto espaço popular, é hoje urgente e necessário para o debate dessas pautas contemporâneas. E para além do reconhecimento pela Marielle, que está inserido na letra, a composição é fortíssima. Costumo brincar dizendo que não tenho time de futebol, mas que sou mangueirense de coração desde criança. Então, são alegrias somadas, mesmo com a condição de tragédia e dor que é o que leva essa homenagem a existir. De qualquer forma, acho que é uma lembrança para que todos saibamos que a vida dela não foi em vão e a morte também não será. Estamos ressignificando essa dor e essa luta com muita alegria.

HT: Como será essa homenagem durante o desfile?

MB: Eu vou abrir a última ala da escola, que é muito importante por representar a comunidade. É uma ala que fará um tributo às pessoas de origem da comunidade que romperam as barreiras sociais com os seus feitos e notoriedades. Eu conversei com o Leandro [Vieira], que é o carnavalesco da Mangueira, e posso dizer que o admiro e respeito profundamente. Ele fez questão de me explicar cada carro, como aquilo está conectado com o enredo proposto e de que forma também alimenta o samba escolhido. Foi muito bonito ver a preocupação e o cuidado dele e da equipe com a memória da Marielle, mas além disso, ver tantas pessoas que serão homenageadas e representadas. A Mangueira está trazendo, nesse enredo, as narrativas ausentes nas páginas dos nossos livros de história, homenageando os nossos heróis que nunca foram reconhecidos pela sociedade. É super atual, eles conseguiram captar a conjuntura política e o momento social, inserindo-os para dentro do carnaval. Isso nos lembra que por mais que seja um momento de festa, não vamos mascarar as nossas dores com fantasias e vícios. É momento de luta e resistência também.

HT: Levando em consideração o enredo da Mangueira, que busca apresentar uma outra narrativa sobre os acontecimentos históricos do país, o que você mudaria, se fosse possível?

MB: Se eu pudesse voltar para reconstruir algo, seria muito egoísta em dizer que mudaria a noite do dia 14 de março. Embora eu saiba que isso seria um individualismo enorme já que a Marielle consegue salvar ainda vidas depois da sua ausência física nesse mundo. Dentro de um contexto social mais amplo, porém, acho que teríamos que fazer aquilo nunca antes realizado: uma reparação histórica referente à escravidão e à ditadura militar. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão e nunca fez isso de forma correta. Além da ditadura militar, que foi umas das mais sangrentas da América Latina. Por que não falamos sobre isso? A gente construiu uma história viva feita de sangue derramado e precisamos ter essa consciência para que não haja repetição. Acho, inclusive, que essa é a tentativa da Mangueira com o enredo 2019, que joga luz na nossa história camuflada do passado. Nós, brasileiros, por não termos domínio desses acontecimentos, acabamos os repetindo de muitas outras formas. Ainda somos um país muito racista, LGBTfóbico e machista. Se eu pudesse mudar alguma coisa, então, para além do meu egoísmo, seria a forma como contamos a nossa história. Precisamos ter a sensibilidade de olhar para o passado, observando e entendendo tudo que já foi feito, para conseguirmos modificar o nosso presente e acabar com isso de ‘Brasil do futuro’, pois é um amanhã que nunca chega.

HT: Ainda que o clima seja de homenagens, seguimos a mais de 300 dias sem resoluções para o caso Marielle e Anderson. Nesse sentido, também sabemos que você é uma das pessoas que mais cobra respostas incansavelmente à Justiça. Como têm sido essa cobrança?

MB: O assassinato da Marielle foi tão bárbaro que transbordou as fronteiras do nosso país. Então, o Brasil não deve essa resposta apenas à sociedade brasileira, mas ao mundo. Deveriam ter o mínimo de responsabilidade com esse crime político, demonstrando comprometimento por parte do Estado em descobrir quem mandou matar e quem matou a minha companheira. Eu continuarei a cobrar justiça por todos os dias, se assim for necessário.

HT: O presidente Jair Bolsonaro chegou a conversar com você ou com a família sobre a resolução do caso?  

MB: Eu nunca tive a pretensão de que ele faria alguma nota a mim ou à família da Mari. O que venho cobrando é uma manifestação dele, não enquanto pessoa física, mas como o chefe de Estado, presidente eleito e pessoa que senta na principal cadeira de poder do nosso país. Por ser um crime político, o presidente precisa, sim, sim posicionar, inclusive, a respeito do comprometimento do Estado brasileiro em dizer quem mandou matar e quem matou a Marielle. Espero uma postura correta da pessoa com o maior cargo de poder do Brasil. Isso não é desrespeitoso apenas com os meus sentimentos, mas com a sociedade brasileira e com o mundo, porque o planeta hoje cobra a resolução desse caso.

Desde o crime ocorrido em 14 de março, Monica vem cumprindo uma corrida agenda internacional e nacional para pedir justiça por Marielle e Anderson (Foto: Mídia Ninja)

HT: Por outro lado, você teve o apoio de instituições com muito poder e influência, como a Anistia Internacional. Poderia contar um pouco da sua relação com essa organização não governamental?

MB: A Anistia, desde o primeiro momento, foi a principal instituição com fôlego e coragem para ficar em cima da pauta do assassinato da Marielle, cobrando justiça incansavelmente. Nos primeiros meses, principalmente, foi uma parceria incrível e, hoje, ela continua com esse trabalho de cobrança, até que seja respondida a nossa pergunta. Essa pressão internacional que a Anistia exerce com certeza nos ajuda a dar continuidade a essa luta, o que é realmente muito importante para que não caia no esquecimento. Nós vamos continuar cobrando para termos, além de justiça para Marielle e Anderson, uma sociedade mais justa e igualitária para todos. Deixo claro que não será esquecido, porque isso é também para salvar outros militantes e para escancarar que estamos olhando de frente para esse Estado sanguinário.

HT: Nesse contexto, observamos recentemente uma outra situação de ameaça à vida de um parlamentar brasileiro. Você, que acompanhou a trajetória do Jean Wyllys, acha que ele fez certo em sair do país?

MB: O Jean esteve, por quase uma década, sofrendo pressão e ameaças. Inclusive, nós, sociedade brasileira, temos responsabilidade nesse exílio, porque ele declarou inúmeras vezes que estava sendo ameaçado por representar a democracia do nosso país e nós nunca fizemos nada para evitar que chegasse a esse ponto. O Jean não escolheu o exílio pois, nessa conjuntura, isso não se escolhe. Ele está zelando pela própria vida e isso é uma forma de resistir. A Benedita da Silva diz muito sabiamente que a preservação da nossa existência física é uma forma de seguir lutando. Então, não tinha outra opção senão essa, já que o queremos vivo. Ele tem toda a minha solidariedade e respeito. Eu espero que consigamos construir uma sociedade na qual pessoas como o Jean estejam seguras para aqui permanecerem.

Ao lado de Marielle e Jean Wyllys (Foto: Arquivo Pessoal)

HT: Para ocupar a cadeira do Jean, foi indicado o ex-vereador David Miranda que, inclusive, é seu amigo pessoal. Você acha que ele tem o que é necessário para assumir esse lugar de resistência?

MB: O David é um amigo muito querido, um irmão que a vida me deu. Foi uma das melhores parcerias que eu fiz ao longo desses meses de muita dor. Antes disso, nós já possuíamos uma relação boa, pois ele era um amigo pessoal da Marielle. Acho que o David tem uma capacidade grande para tocar esse trabalho iniciado pelo Jean. E, como vereador, já tem uma caminhada linda. Que bom que saiu um LGBT e entrou outro, porque agora conseguimos responder de forma clara que vamos continuar ocupando esses espaços com os nossos corpos. Ele tem muita competência técnica e coragem. É um homem de muita ousadia. Será com certeza uma grande contribuição.

HT: Retomando a preocupante questão das ameaças, assim como o Jean, você também as recebeu durante algum tempo. Como está essa situação agora e como você lida com isso?

MB: No período eleitoral, as ameaças aumentaram e depois do presidente empossado, cresceram mais ainda. As pessoas cometem barbaridades e atrocidades pelas ruas, seja xingando, agredindo ou matando, como foi com o Mestre Moa. Estamos falando de vida e qualidade e é claro que essa situação alterou a minha, pois é arriscado andar sozinha sem saber se serei xingada ou agredida. Hoje, estou dentro do programa de proteção aos defensores dos Direitos Humanos e tenho a medida cautelar da OEA, mas não mudo a minha rotina, o que eu visto e o meu discurso. Eu me recuso a permitir que eles façam qualquer tipo de mudança no que sou hoje. É claro que preciso ter cuidado, pois a minha vida não pertence mais só a mim, mas também ao movimento social que represento. Só que esse respaldo não impede que a ousadia ande do meu lado. Na noite do 14 de março, me tiraram todos os motivos que eu tinha para temer, então, tenho ainda muita luta e resistência pela frente.

Retrato de Marielle no ELLA 2018- Encontro Latino Americano de Mulheres, onde ela foi amplamente lembrada (Foto: Letícia Sabbatini)

HT: O que pensa sobre o futuro?

MB: Depois de muitas colocações, falas e viagens, é como se eu tivesse acordado de um transe e me percebido figura pública. Eu me vi em um lugar de responsabilidade enorme e isso me assustou, ainda mais pelo fato de chegar a essa posição por uma situação de muita dor. Enquanto representante dos Direitos Humanos com projeção internacional, a minha principal luta continua sendo a justiça pela Marielle. O que não é só dizer quem matou e quem mandou matar a minha companheira, mas também batalhar para construir uma sociedade igualitária, pela qual ela perdeu a vida. Essa caminhada não tem mais um fim, porque se antes parecia que nós poderíamos parar depois de encontrar os responsáveis pelo crime, hoje eu vejo que existe muito mais. Venho buscando, então, estudar para entender a melhor forma possível de seguir, afim de contribuir. Eu vim para Brasília, inclusive, para poder trabalhar na liderança do PSOL. Junto com os deputados federais, estou atuando na Câmara Legislativa, dando uma assessoria de forma geral. O que é, de certa forma, uma ótima maneira de ir aprendendo a política institucional, que nunca fez parte da minha construção histórica. É um desafio, mas também uma construção pessoal para conseguir contribuir da melhor forma possível com a luta dessas pessoas que se vêem representadas por mim.

HT: Muitos são os boatos de que em 2020 você se candidatará a uma cargo na política. É mesmo uma possibilidade real?

MB: Isso ainda não é uma possibilidade nesse momento, mas pode ser que se torne uma, a depender da conjuntura. Afinal de contas, até 2020 nós temos muitas coisas pela frente. Desde o 14 de março não projeto mais a minha vida a longo prazo e tenho o objetivo de fazer o melhor possível no espaço de tempo que eu tenho por aqui. É isso!

Aos 33 anos, a arquiteta e militante pensa mais no hoje e não em planejar futuros muito distantes (Foto: Arquivo Pessoal)