Maria Callas: Muito antes da body modification, a estrela já era expert na arte de iludir as massas!


No jogo da vida, era tudo ou nada! Aproveitando a peça sobre a diva dirigida por Marília Pêra e estrelada por Silvia Pfeiffer, em cartaz no Rio, Flávio Di Cola relata sua preocupação com a silhueta e os esforços para manipular o público!

* Por Flávio Di Cola

Feia, divina, antipática, suprema, “pé-de-boi”, romântica, avarenta, fascinante, chata – os mais díspares adjetivos se atropelam na tentativa vã de dar conta dessa personalidade contraditória, “oceânica” e definidora das artes do século XX que um exército de fãs incondicionais chama simplesmente de La Callas – uma lenda que sobreviveu às críticas mais demolidoras de gente da estatura de um Arturo Toscanini (“Sua voz tem vinagre”) ou de um Herbert von Karajan (“Sua voz parece uma faca arranhando um prato”). Os que a conheceram de perto, relatam que a primeira impressão que ela passava nem sempre era das mais deleitosas. O cineasta e diretor de teatro Franco Zeffirelli, com quem Callas desenvolveria um estreito relacionamento profissional e de amizade por décadas a fio, assim descreveu o seu encontro inaugural com ela, em Roma, 1948, um pouco antes do início da sua consagração: “Fomos apresentados àquela reconchuda moça greco-americana que aliava a um intenso sotaque anasalado novaiorquino um jeito empertigado e matronal. Tinha uma voz irritante e aspecto pior ainda. Usava um tailleur preto, muito justo, que lhe destacava os fartos quadris e o busto. (…) Tudo nela parecia grande demais – os olhos, o nariz a boca; e para completar o quadro, tinha pernas cabeludas”*. Seis anos depois, no Teatro alla Scala, em Milão, durante a preparação da ópera La vestale de Gaspare Spontini, o próprio Zeffirelli a reencontraria completamente metamorfoseada: “Qualquer pessoa que tivesse 15 minutos de folga corria para ver Maria ensaiar. Um espetáculo por ela mesma, Maria tinha acabado de realizar – através de dietas extenuantes – a incrível façanha de transformar a matrona grega numa esguia beldade morena. Em todos os sentidos, Maria Callas criava-se a si própria”.

Sob o ponto da vista da criação artística, o legado de Maria Callas é indiscutível ao expandir o bel canto – a partir da luxuosa direção de Luchino Visconti, é preciso lembrar – para muito além das dimensões musical e narrativa. Ela dotou o espetáculo operístico com uma teatralidade e com uma dramaticidade esmagadoras, jamais atingidas antes e que – segundo os experts – ainda não foram superadas. Mas sua posição de prima donna assoluta na cena operística mundial durante os anos 1950 foi alcançada de forma árdua e sofrida. Para começar – e, hoje, esta façanha pode parecer ridícula – Maria Callas foi a primeira artista a desprezar e a desbaratar a famosa e temida claque do La Scala. As galerias do templo máximo do canto lírico eram, então, o feudo de ruidosos grupelhos – formados majoritariamente por estudantes – que orquestravam violentos apupos a fim de constranger e abater em cena os grandes artistas caso não fossem subornados. As negociações para se comprar os aplausos e evitar as vaias eram agenciadas pelos líderes dessa galera odiosa junto aos empresários dos cantores e aos administradores do teatro. Dependendo do que era tratado, verdadeiras guerras de torcidas eram organizadas. A suposta “rivalidade” entre Maria Callas e Renata Tebaldi, por exemplo, foi – em grande parte – alimentada pelas galerias e pela porção menos cultivada do público. Callas as enfrentou de peito aberto: primeiro, porque gostava de uma boa briga; segundo, porque era sovina e jamais abriria a sua bolsa para esse tipo de aliciamento; e por fim, porque – no final das contas – ela arrasava mesmo no palco.

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Na verdade, a potência e a realeza tremendas com as quais ela engolfava de forma irresistível cena, orquestra e platéia eram ritualizadas através de hábitos e manias tão engraçados quanto reveladores da fragilidade e das carências mais profundas de Callas. Para espantar o terror avassalador que a tomava de assalto nos segundos que antecediam a sua entrada em cena, após a subida solene da gigantesca cortina, Maria Callas se punha a discutir com as suas assistentes os mais triviais assuntos caseiros como o preço dos gêneros alimentícios ou as vantagens desta ou daquela lavanderia. Permanentemente angustiada com as flutuações da sua silhueta, Callas não hesitava em intimidar as costureiras incumbidas dos seus figurinos para que ora disfarçassem o arredondamento da sua cintura ora ressaltassem o seu eventual afinamento após um severo regime, mesmo que essas exigências subvertessem a criação dos figurinistas ou a fidelidade da indumentária em relação à época histórica que representava. Um comportamento sintomático dessa mescla de radicalismo com irrealismo que permeou quase toda a vida de Callas foi, por exemplo, ter elegido como ideal de beleza a ser atingido nada mais nada menos do que Audrey Hepburn! Ela sempre manteve uma foto da estrela de “Cinderela em Paris” nos seus camarins.

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Sobre essa problemática passagem das coxias para a ribalta, Zeffirelli ainda relata esta surpreendente confidência de Maria Callas, em 1955, em pleno auge da temporada triunfal de La Traviata: “Quando a cortina subir, vou sentir aquele ar tépido, o suor e a respiração de todas aquelas pessoas. Sempre sinto isso. Não posso vê-los, mas sei que estão ali: 2.500 monstros de hálito quente, ofegando por minha causa. (…) Eu os sinto como se fossem uma onda de ódio, como se me desejassem morta.” Mas uma vez no palco, Maria Callas acionava todo o seu arsenal de efeitos devastadores para aniquilar “o monstro”, revertendo completamente as expectativas, transformando um iminente fracasso num retumbante êxito. Mesmo assim, cessados os aplausos frenéticos, ela deixava-se infiltrar por um vazio infinito, suspirando: “Quando recebo algo de bom, a primeira coisa que me passa pela cabeça é que vou perdê-lo.”

E, no final, perderia tudo mesmo: em 1959, na crista da fama e do prestígio, liga-se ao magnata grego Aristóteles Onassis para transformar-se numa das figuras de proa de uma nova categoria de celebridades que emerge no início dos anos 1960: os jet-setters. O idílio dos primeiros anos de relação não resistirá ao carrossel de festas, cruzeiros e extravagâncias pilotado pelo insaciável armador. Em 1968, Callas é sumariamente descartada para ceder seu lugar a outro troféu mais vistoso na galeria de aquisições de Onassis: Jackie Kennedy. A diva afunda numa tremenda depressão que é acentuada pelo acúmulo de tentativas fracassadas de retorno aos palcos de Londres, Paris e Nova York, além da aventura no cinema com a versão de “Medeia” de Pier-Paolo Pasolini. Recolhida em seu apartamento de Paris, ela afirma: “Estou acabada.” Na manhã de 16 de setembro de 1977, ao se preparar para ler a sua correspondência, cai ao chão. O médico chega para constatar a sua morte. Encontra-a vestida com um robe de chambre de musselina cinza e deitada sobre um leito de estilo veneziano em madeira patinada.

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[*Todos os depoimentos de Franco Zeffirelli foram extraídos do seu livro autobiográfico publicado no Brasil pela Editora Guanabara em 1987 e com tradução de Donaldson M. Garschagen.]

* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Amante judiado e teimoso da Sétima Arte, suporta todos os contrangimentos na sua fidelidade às salas de cinema.