Elisa Lucinda dá uma banana para o racismo, fala sobre o novo livro e comenta o episódio com Daniel Alves!


Após a noite de autógrafos que contou com a participação de amigos como Glória Pires, Miguel Falabella e Paulinho Moska, a artista comenta com exclusividade sobre como foi encarnar Fernando Pessoa e afirma apoiar a história da selfie da banana!

*Por João Ker

Elisa Lucinda é atriz, professora, jornalista, cantora, escritora e poetisa que fala com a alma e se faz entender. “Minha poesia é direta”, comenta ela em entrevista exclusiva para o HT no dia seguinte ao lançamento do seu livro “Fernando Pessoa – O Cavaleiro de Nada”, que lotou a Livraria da Travessa do Shopping Leblon até a meia-noite desta última terça-feira (29/04). Na obra, a capixaba encarna o poeta português, entrando de maneira humana e delicada no corpo e na mente do lusitano que, como Miguel Falabella disse, “é o mestre de todos nós”. E isso só é possível, é claro, a alguém como Elisa que, em época de pluralidade, quando todos dizer ser muitos, mas são poucos, sabe encarnar como ninguém todos esses personagens em múltiplas funções.

Na noite de autógrafos, a multidão foi se formando aos poucos, de maneira tímida, durante a cerimônia de leitura que começou às 19h. Depois de encarar uma fila que se renovava de forma incessável, Elisa, acompanhada de amigos como Paulo Moska, Glória Pires, Márcia do Valle Miguel Falabella, começou a leitura e interpretação de alguns trechos do livro. Nessas breves passagens, foi possível ver como a poetisa escreve com primor e conforto na pele do poeta. De forma emocionada, o público é convidado a viajar com Elisa pela infância conturbada de Fernando Pessoa e a entrar em seus devaneios acerca de religião e a existência de um Deus que, para ele, se materializa através da natureza.

“A Elisa se apropria brilhantemente desse personagem, e o faz com um primor emocionante. O prefácio [escrito pelo autor e intelectual sul-africano Mia Couto] é brilhante ao destacar esse aspecto”, comenta Falabella. Glória Pires, outra convidada para o happening, vai mais longe e completa: “O trabalho é lindo, emocionante! A Elisa mergulha como atriz e veste essa alma enquanto imagina toda a sua trajetória, apresentando a história com uma escrita deliciosa. É aquele tipo de livro que você não consegue parar de ler. “, elogia a atriz, contando que já estava familiarizada com o projeto há alguns anos. A eterna Ruth/Raquel/Maria De Fátima/Maria Moura foi responsável pela leitura do trecho em que um Fernando Pessoa de apenas treze anos começa a contemplar a natureza e percebe que aquele é o tipo de Deus em que acredita existir, um que se manifesta através da energia das árvores e nuvens ao seu redor (talvez a criança estivesse descobrindo Alberto Caeiro, quem sabe). A própria Glória é, por sinal, quem escolhe a passagem: “Foi difícil pegar um só, mas em muitas horas ele [o Fernando Pessoa de Elisa] toca nesse assunto de religião, falando de coisas como ocultismo, do tarô etc. E eu me identifico com esse tipo de pensamento, dessa relação entre Deus e os seres naturais”.

Emocionada com a densidade do evento e às voltas com o público presente na noite de autógrafos, a escritora é quem pede para a entrevista rolar no dia seguinte, com mais calma. Assim, com a voz um pouco cansada, mas feliz, Elisa Lucinda conta que o primeiro contato com Fernando Pessoa foi durante o ensino fundamental, quando ainda morava em Vitória: “Eu tinha uma professora, a Maria Filina, que sempre me dava essas leituras mais intensas, porque ela sabia que eu estudava declamação e gostava. Foi ela que me apresentou à poesia, com o José Régio, e eu fiquei louca. Pensei: ‘gente, que beleza!’. Então eu conheci o ‘Poema  Em Linha Reta'”. A veia dramática de Elisa pulsa subitamente e ela declama os versos iniciais deste poema, com uma entonação tão crível que era como se estivesse encarnando o autor naquele minuto pelo telefone e soubesse exatamente o que ele estava sentindo quando escreveu: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada./Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”. Rapidamente, Elisa volta para o seu corpo e completa, com a voz mais branda e excitada: “E também a minha primeira peça no teatro foi O Marinheiro“.

Mas o atual projeto nem sempre foi idealizado para ser assim. “Na verdade, o [editor] Pedro Almeida tinha sugerido fazer essa série mais infantil com o intuito de apresentar os grandes mestres da literatura para essa geração mais nova, focando no pessoal de 12 e 13 anos. Eu comecei a escrever o primeiro capítulo como se fosse feito para o público adulto e eu não precisasse me censurar. Depois eu daria uma olhada e editaria o resultado. Mas então o Pedro viu esse capítulo e achou tão bom que disse ‘muda tudo e escreve assim'”. Começou então o processo de pesquisa sobre a vida do autor, desconhecida até por grande parte de seus fãs: “Nós conhecemos a obra, mas não conhecemos o autor e sempre me interessou o homem que existe ali embaixo”, explica Elisa. “Usar primeira pessoa foi muito facilitador porque me ajudou a escrever de dentro dele. Quando eu abria o livro, eu pesquisava e entrava naturalmente naquele personagem, caindo dentro de tudo o que ele tem. Para isso, vasculhei até por livro de sobrinha-neta dele, por fotobiografia, álbum da família e um monte de coisas. Fui fazendo uma costura disso com os poemas e misturei como se fosse prosa.”

O título “Cavaleiro do Nada” foi escolhido já nesse momento de pesquisa da escritora. “Eu descobri esse que, para mim, foi o heterônimo mais pessoal de Fernando Pessoa e então levei um susto. Nunca tinha prestado muita atenção nele, daí percebi que o Cavaleiro do Nada simbolizava essa infância conturbada e carente que ele perdeu e sempre chorou em suas obras. Foi o primeiro amigo invisível dele que escrevia poesia e que ele criou quando ainda criança. Ele tem saudade desse menino, e os dois caminham juntos até o seu delírio de morte, quando ele pergunta ‘Cavaleiro do Nada, não vais me acompanhar dessa vez?’ e a criança responde ‘dessa vez não; eu tenho que ficar e contar essa história toda'”. No mais, a autora também admite a influência que o lusitano tem em sua escrita e produção autoral desde que o conheceu: “Ele tem um texto livre que é muito semelhante à minha poesia sem comportamento, sem medo”.

Essa poesia à que ela se refere, sem o tal comportamento, nem medo, pode ser exemplificada com o poema-canção “Só De Sacanagem”. Nos versos enraivecidos, ela brada: “Pois bem, se mexeram comigo, com a velha e fiel fé do meu povo sofrido, então agora eu vou sacanear: mais honesta ainda vou ficar. Só de sacanagem! […] Dirão: ‘É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde o primeiro homem que veio de Portugal’. Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal”. Essa esperança em um mundo melhor é exercida pela poetisa de diversas maneiras. 

 

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Fotos: Kiko Cabral

Como artista múltipla, Elisa exerce um sem-número de atividades que, sem dúvida, devem permitir-lhe uma vida um tanto agitada. No Solar de Botafogo, Rio, ela dá aulas para professores, médicos e outros adultos, lhes ensinando a falar poesia de um modo mais coloquial. Há também o projeto  “Palavra de Polícia e Outras Armas”, que vai ao terceiro setor como uma maneira de humanizar mais as pessoas, alinhando poesia com direitos humanos. E, na Bahia, ela educa menores de idade que estão passando por processos normativos, tendo acabado de lançar a campanha online “Eu Também Quero Ler”. “Tem essa coisa sobre o livro com a qual eu estou apaixonada. Ele forma leitores através dessa campanha, que serve para o internauta mandar fotos e sugestões de livros. As pessoas já colocam selfie de tudo, faz até foto trepando, então por que não incentivar uma coisa boa como um livro? É pra ir lá e indicar uma viagem. Afinal, a leitura é a passagem mais barata que existe”, convida.

Inclusive, provando que está atenta ao que acontece na rede, Elisa  Lucinda também afirma que apoia a melhor campanha de todos os tempos da última semana, “Somos Todos Macacos”, em solidariedade ao jogador de futebol Daniel Alves, que foi vítima de racismo em um jogo entre Villareal e  Barcelona. “Tô adorando essa história da campanha com a banana e esse assunto estar sendo discutido. Porque mostra que não é só um preconceito econômico, é o preconceito de raça que ainda existe. Como é que você tem coragem de jogar no campo uma banana para um jogador que ganha milhões de reais por ano? É o mesmo tipo de coisas inimagináveis que uma criança negra é obrigada a ouvir durante o seu crescimento”.

Fechando o bate-papo, ela comenta sobre o frio na barriga de “soltar um filho no mundo”. Bem verdade que está acostumadíssima com essa sensação (essa é sua 16ª obra), mas, ainda assim, alega ficar um pouco apreensiva. Dessa vez, entretanto, conseguiu escapar da insegurança que atinge a maioria dos artistas e afirma ao final da entrevista: “Eu tenho a consciência que esse trabalho ficou bom”.