Buraco da Lacraia se reinventa e refaz o espetáculo “Cabaré On Ice” com o mesmo bom humor escrachado de sempre


O famoso espetáculo ganha novos números, figurinos e uma leva de cenas que zombam da cultura popular com piadas politicamente incorretas e hilárias

*Por João Ker

Há dois anos, a Lapa é palco do espetáculo “Buraco da Lacraia Dance Show”, realizado pelos atores Luís Lobianco, Letícia Guimarães, Sidnei Oliveira e Éber Inácio. Nesta noite de sexta-feira (21/06), o show debochado e escrachado, com o qual tanto o público quanto a própria equipe já estavam tão familiarizados, ganhou uma continuação com novos números, piadas, figurinos e nome: “Cabaré On Ice”. “Todo mundo que faz continuação de algum espetáculo está inserindo ‘on ice’ agora, então nós resolvemos fazer o mesmo”, explicou Lobianco no palco, pouco antes de começar a apresentação. Mais tarde, depois de terminada a sessão, Letícia Guimarães comenta no camarim: “Estava na hora de mudar já, estávamos há dois anos fazendo o mesmo show, ninguém aguentava mais”, disse com um tom de comediante como quem está fazendo piadas na maior parte do tempo.

Mas, mesmo que o show não houvesse mudado, o público não reclamaria. O Buraco da Lacraia tem seus clientes cativos, aqueles que vão religiosamente no inferninho e sabem de cor e salteado todos os diálogos, números e músicas que o karaokê oferece. Nesta noite não foi diferente. A festa começou com o tradicional pocket show da cantora poderosa Simone Mazzer, apresentando um alcance vocal que parece uma mistura de Adele com Susan Boyle, com gritos e notas potentes o suficiente para encher espaços muito maiores do que a capacidade de 150 pessoa do Buraco permite. Acompanhada pelo músico Marco Antonio Scolari (que tocava teclado, acordeon, viola, guitarra e tudo o mais que fosse necessário), Simone subiu ao palco com brilho dos pés aos cabelos e, com uma facilidade e dramaticidade surpreendentes, interpretava clássicos em português, inglês, francês e espanhol, sendo ovacionada pelo público a cada pausa que dava para tomar água. A diva do cabaré, que vem fazendo essa performance há um ano e três meses, tentou terminar a apresentação com uma rendição de “Dancing Queen” do ABBA, mas a plateia insistiu veementemente e Simone continuou no palco para um bis de “Babalu” da Ângela Maria – que foi especificamente pedido pelo público – e a canção original “Tango do Mal”. A música, uma ode de deboche e cinismo contra um homem que tem “estilo hip hop de fazenda”, estará presente no primeiro álbum de estúdio da cantora, “Cabaré Batom”, com lançamento marcado para o segundo semestre.

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Fotos: Ricardo Ferreira

Acaba o show de Simone e, com o Buraco lotado, o público tenta se reposicionar para poder ver o espetáculo “on ice”. Luzia Ribeiro, artista visual que, como toda mulher vaidosa, não entrega a idade, estava ansiosa pelo show – motivo pelo qual ela havia ido ao lugar – e que era sua “primeira vez no Buraco”. O advogado Bernardo Guerra (37) estava no cabaré pela segunda vez e diz que, além do show, o espaço underground em um dos muitos becos escondidos da Lapa tem outros atrativos: “Aqui é divertido de um jeito diferente. É um lugar bem-humorado, mas é fora do circuito. Isso que me atrai no Buraco”.

O palco começa a se encher de fumaça e, enquanto o público reclama da área VIP – que estava abrigando Fernanda Rodrigues, Fernanda Paes Leme e Marcius Melhem (“Aqui não é Vivo Rio para ter área VIP, não!!!” gritou um dos espremidos na porta do banheiro) -, começa o show. Um Jesus crucificado com uma lacraia entra ao som de um órgão fúnebre, enquanto proclama: “Sexta de paixão, entra no meu buraco”. Com um figurino meio carnavalesco profano, repleto de glitter e paetês, o elenco começa a tradicional paródia de “Faz Um Milagre Em Mim”, que tem no refrão “Entra no meu buraco/ Entra que tem bebida/ Eu recebo minhas entidades/ Minha pomba gira, gira”. O público, claro, engrossou o encoro e o clima do resto da noite já estava declarado: bom humor, piadas politicamente incorretas e críticas, zombaria e irreverência.

Elenco cantando "Entra no meu buraco" (Foto: Ricardo Ferreira)

Elenco cantando “Entra no meu buraco” (Foto: Ricardo Ferreira)

As esquetes que se seguem até o final do espetáculo satirizam praticamente todos os personagens que constroem a cultura popular, com alvos que vão da política à TV, sem a menor preocupação com algum tipo de censura. Um Jesus com túnica de seda rosa-choque, fazendo alusão ao famoso guaraná do Maranhão, entra para cantar com uma voz de taquara desafinada e distribui o pão entre seus fieis, atirando bisnaguinhas do Scooby-Doo na plateia, que gargalha histericamente. Che Guevara cantando axé, o mundo de Maysa caindo literalmente, Amy Winehouse descontrolada e bonecos de Olinda com referência a Preta Gil, Michael Jackson e a dupla Pepê e Neném vão se seguindo, num circo debochado que não deixa a plateia recuperar o fôlego entre os acessos de risos.

No Buraco, até o próprio “On Ice” debocha de si mesmo, levando o conceito ao extremo literal e, enquanto entram uma Jasmine e um Aladim desengonçados, um saco com gelo é espalhado pelo chão. Luís Lobianco aproveita uma das pausas entre os atos e diz que o Buraco é um “lugar fértil”, abrindo espaço para os solteiros se pronunciarem, o que é muito bem aceito pela maioria de gays que fazem parte do público e que levanta a mão desesperadamente, procurando alguma presa para a noite. Outra coisa presente no espetáculo é a aleatoriedade com que o humor se faz presente. Ao mesmo tempo em que há uma homenagem inusitada para Rosamaria Murtinho, há também uma Xuxa com Paquitas esquizofrênicas – que fizeram Fernanda Paes Leme chorar de rir – e a Presidente Dilma fazendo uma lap dance em Lula ao som de “Hakuna Matata”, d’O Rei Leão. Todas as performances são guiadas pelo Karaokê – que tem outro símbolo de aleatoriedade com um monte de carne moída enfeitando a estante – e é preciso destacar o humor corporal totalmente escrachado, mas infalível, de Éber Inácio que, em determinado momento, encarna uma dançarina do ventre e começa a se jogar para a plateia em busca de um pretendente.

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Éber Inácio provoca a plateia (Foto: Ricardo Ferreira)

A reinvenção do show foi possível graças ao recém-obtido patrocínio do Porta dos Fundos, grupo do qual Lobianco faz parte e que parece o perfeito casamento entre o humor do Buraco e o do canal de comédia online. Assim que termina o espetáculo, ao som de “Entra no meu buraco” mais uma vez, o público rapidamente se divide entre quem fica no primeiro andar para o karaokê e quem vai para o segundo andar, onde a pista de dança é servida por garçons com cuecas jockstrap e a bebida liberada dá o toque final de perdição. Os casais mais velhos se demoram um pouco mais e o que resta são as pessoas afim de curtir aquela balada, dançando e caçando até a noite terminar. Na próxima sexta, a rotina boêmia reiniciará seu ciclo vicioso de sempre, como acontece em muitas outras das ruelas escondidas pela Lapa. A diferença é que nenhuma delas tem o “Cabaré On Ice” para começar a noite.

 

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Fotos: Ricardo Ferreira | João Ker