“Podemos utilizar o momento de reclusão para sermos mais empáticos e solidários”, diz o escritor Carlos Cardoso


O poeta, ganhador do APCA na categoria ano passado, fala da importância do prêmio, de poesia e de sentimentos em tempos de Covid-19, e também do processo de escrita: “Acredito que não há fórmula para escrever um bom poema. Não consigo acreditar na poesia planejada. O poema raramente nasce pronto. Ele vai se transformando e sendo lapidado aos poucos. Você vai encaixando, mudando e usando critérios instintivos e intuitivos durante o processo criativo. As minhas inspirações são as mais diversas e inesperadas. Não acredito que seja possível fazer boa poesia sem que haja, no mínimo, um estranhamento, como diria Ferreira Gullar”

*Por Brunna Condini

Ver poesia em nossos dias não tem sido fácil. A pandemia do Coronavírus tem isolado a população mundo afora, no intuito de minimizar o contato com a doença. É preciso reinventar hábitos ou resgatá-los, em uma rotina mais desacelerada. A leitura é essencial em qualquer cenário, mas, no atual, ela se destaca: lendo podemos ir a vários lugares só com nossa imaginação.

Considerado o representante da nova poética no país, por nomes como Antônio Cícero e Silviano Santiago, o escritor Carlos Cardoso tem dado sua contribuição, com poesia da melhor qualidade, para fazer companhia, e também dar voz a sentimentos e emoções que nos habitam. Sua mais recente obra, “Melancolia”, foi eleita pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) como a melhor na categoria no ano passado, e traz para as páginas seu constante diálogo com as artes plásticas estampado já na capa, criada pelo pintor e escultor Carlos Vergara. Seu livro aborda a melancolia sem preconceitos e com “vigor poético”. O que quer dizer para o leitor com isso? “Ao contrário do que o título do livro sugere, a melancolia não torna meus versos tristes ou esmaecidos. Não há um mergulho sem volta ao universo das tristezas profundas e resistentes na obra. A melancolia está dentro de mim, sem dúvida, de forma muito forte e, através da poesia, consigo transpassá-la criando um túnel imaginário. Apresento meu mundo ao leitor utilizando uma melancolia que, além de ser frutífera, se encanta e contempla tudo à sua volta”, detalha Carlos, que também é engenheiro.

Carlos Cardoso: “A melancolia não torna meus versos tristes ou esmaecidos. Não há um mergulho sem volta ao universo das tristezas profundas e resistentes na obra.” (Foto: Nana Moraes)

Acha que em tempos de quarentena a melancolia tende a estar mais presente? “A melancolia é um sentimento comum a todos. Ela está presente em várias fases da vida de todos nós, com ou sem quarentena. Minha relação com os estados que ela traz é a mesma que tenho com qualquer outro sentimento”.

E por que muitos temem tanto esse tipo de sentimentos? “Isso é um tema delicado não só para mim, mas para várias pessoas. A reflexão pode nos levar à tristeza como a qualquer outro sentimento. Creio que a tristeza não impõe tanta reflexão quanto o silêncio, que permite com que cada um de nós se conecte ao seu interior. Lembro que a poeta polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012) escreveu em um dos seus poemas que o silêncio se agita por toda a página”.

Carlos Cardoso no lançamento de “Melancolia”, que ganhou o APCA ano passado (Divulgação)

O poeta também observa que o momento pode trazer ganhos. “Além de estarmos mais silenciosos e concentrados em nossas atitudes e nas dos demais à nossa volta, podemos utilizar este momento de reclusão física e psicológica para sermos mais empáticos e solidários uns com os outros. A partir do momento em que o ser humano volta a olhar para dentro de si em busca de sua melhor versão e se permite recriar é possível que ele comece a olhar para o próximo de outra forma e achar também o que há de melhor no outro”, pontua.

Antonio Cícero e Carlos Cardoso no lançamento do livro premiado e reconhecido pelos críticos especializados (Divulgação)

O carioca se lançou na literatura, em 2004, com “Sol Descalço”. De lá para cá, foram quatro livros de poemas publicados e o reconhecimento de alguns dos principais críticos literários e jornalistas especializados, por ser considerado um escritor com poética original. Seu livro “Melancolia”, que lhe rendeu o APCA em 2019, um dos prêmios de reconhecimento nas artes mais importantes do país, também conta com textos de Heloisa Buarque de Hollanda, que assina a orelha, e Antônio Carlos Secchin, autor do posfácio.

O que ganhar o APCA representa na sua trajetória? “Ter um livro reconhecido pela crítica é algo muito bom. No fundo, todos nós queremos algum reconhecimento do nosso trabalho e claro que o prêmio que recebi foi muito especial para mim. Espero que outros prêmios venham no decorrer da minha vida”, celebra. “Quanto à trajetória, estar em uma grande editora, ter o reconhecimento de grandes críticos, leitores e da mídia, me traz o sentimento de que estou no caminho certo. Levo do meu jeito, meio tímido, meio recluso por natureza e busco produzir boa poesia em intensidade e qualidade”.

Aos 46 anos, Carlos já teve seus poemas traduzidos e publicados em revistas de artes e crítica literária de Portugal, França, Espanha, Itália, Colômbia e México, e revela que mesmo após o prêmio e o reconhecimento, não sente uma pressão maior com sua escrita. “Sempre escrevi com muito critério. Sou perfeccionista e busco sempre fazer o melhor. A poesia ainda é um gênero pouco lido, consumido e valorizado no Brasil, no entanto vivemos em um momento em que se produz muita poesia. Por outro lado, vemos nas outras expressões artísticas a busca constante pela poesia. Quando você olha uma fotografia, busca um olhar poético nela, assim como na música, no teatro. Meu sentimento é de que estou mesmo no caminho certo”.

Antonio Cícero, Carlos Cardoso e Antônio Carlos Secchin em leitura no lançamento de “Melancolia” (Divulgação)

Na sua obra, Carlos Cardoso também homenageia os escritores Silviano Santiago, Caio Fernando Abreu (1948-1996) e Vinicius de Moraes (1913-1980) com os poemas “Um sopro de ar“, “Assim como a neve” e “Poeminha”, respectivamente. Como surgiram essas criações? “Nestes três casos, cada um tem uma história. O poema para o Silviano foi verdadeiramente escrito e não apenas dedicado a ele. É uma conversa com ele. Já em “Assim como a neve”, o poema foi encomendado para uma antologia que foi publicada. O organizador da obra enviou uma frase do Caio e me pediu para escrever um poema a partir dela. Quando eu escrevi, falei muito mais de mim do que do Caio, e por isso talvez foi tão difícil escrever esses versos”, recorda. “Quanto ao poema do Vinicius, escrevi para uma mulher e quando terminei pensei: “Parece o Vinicius escrevendo”. Então dei o título de “Poeminha” em homenagem ao Vinicius”.

Como coexistem em você o poeta e o engenheiro? “Sempre tive uma ligação muito forte com as artes em geral. A poesia, em especial, me permitiu ultrapassar as dificuldades da vida. Foi uma ferramenta e não só uma válvula de escape para enfrentar as intempéries. Por “culpa” ou não da engenharia, procuro estruturar muito bem meus poemas e tenho uma forma particular de construí-los. Traço uma linha central e, a partir dela, vou distribuindo o texto na horizontal e trabalhando a sonoridade dos versos. Acredito que a boa poesia tem que ter algo que desperte, algo verdadeiramente intenso e profundo que toque as pessoas”, revela.

Carlos aproveita para compartilhar dicas de literatura nesta época de isolamento social. “Indico muito a leitura dos poemas da polonesa Wislawa Szymborska, conhecida como a “poeta da consciência do ser”. E divide sua rotina nos últimos dias: “Estou acompanhando de perto os noticiários nacionais e internacionais. E espero reler na quarentena as obras de T. S. Eliot (1888-1965), Charles Baudelaire (1821-1867) e Dylan Thomas, (1914-1953) poetas que sempre retorno à leitura”.

Ele também fala diretamente para quem deseja se dedicar à escrita: “Acredito que não há fórmula para escrever um bom poema. Não consigo acreditar na poesia planejada. O poema raramente nasce pronto. Ele vai se transformando e sendo lapidado aos poucos. Você vai encaixando, mudando e usando critérios instintivos e intuitivos durante o processo criativo. As minhas inspirações são as mais diversas e inesperadas. Não acredito que seja possível fazer boa poesia sem que haja, no mínimo, um estranhamento, como diria Ferreira Gullar (1930-2016)”.