Na quarentena, Panmela Castro cria ‘Penumbra’, série de fotos sobre racismo


A artista plástica carioca que acaba de lançar uma série experimental fotográfica conversou sobre a importância da arte na construção da nossa sociedade, sobre a Rede Nami e o racismo. “Penumbra fala sobre racismo, a solidão da mulher negra. Ana Claudia Lemos Pacheco realizou uma pesquisa chamada “Branca pra Casar, mulata para F…, negra para trabalhar” que fala sobre essa solidão. Um racismo velado. Mulheres negras acabam no celibato compulsório por serem preteridas pelas brancas. Ainda as mestiças são tratadas como objetos sexual”, pontua ela que criou também o projeto NAMI que inclui um circuito de um quilômetro de murais à céu aberto na comunidade da Tavares Bastos

*Por Rafael Moura

Com o decreto de quarentena, a artista Panmela Castro teve sua exposição #RetratosRelatos fechada no Museu da República, no Catete, Rio de Janeiro, com apenas duas semanas de inauguração. Durante esse período de isolamento social, a grafiteira e experimentalista produziu a série ‘Penumbra’ a partir de experimentações de dupla e longa exposição fotográfica durante a solitária estadia em seu atelier. “São seis obras, impressões a jato de tinta sobre papel fotográfico semi brilho”, revela. A criadora, que tem a rua como inspiração, é carioca, mestre em processos artísticos contemporâneos pelo Instituto de Arte da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e bacharel em pintura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cuja origem marginalizada foi a inflamação de sua prática. Com um interesse especial na performance, ela se dedica a criar obras de arte confessionais relacionadas a experiências pessoais de violência e a prisão do pensamento binário e heteronormativo. Além de suas performances, que são seu principal objeto, sua produção vai além da fotografia, vídeo, objetos, esculturas e instalações participativas, além de seus murais mundialmente famosos.

A artista Panmela Castro conversou com o site HT, sobre a importância da arte em nossas vidas (Foto: Mandy Brander)

Confira abaixo a nossa conversa com a artista:

Heloisa Tolipan – A Rede NAMI é uma rede de mulheres que usa as artes urbanas para promover os nossos direitos. Como esse mergulho nas artes pode mudar essa realidade?

Panmela Castro – A Rede NAMI é um projeto para mudança efetiva da sociedade. Eu desenvolvi uma metodologia internacionalmente premiada sobre uso do grafiti para promoção dos nossos direitos e assim conseguimos dialogar sobre temas complexos como a violência doméstica de forma natural e lúdica alcançando um público vasto. Na Rede NAMI encontramos projetos para diversos públicos onde as mulheres são protagonistas e lideram ações nas quais buscam uma mudança na sociedade para a equidade entre homens e mulheres.

HT – O poeta Ferreira Gullar costumava dizer que ‘A arte só existe porque a realidade não basta’. Como você enxerga essa afirmação do autor?

PC – Eu acredito que a arte é a válvula de escape do povo. É onde vivemos nossos sonhos que na vida real são controlados.

HT – O Anuário Brasileiro de Segurança Pública afirma que sete a cada dez vítimas de feminicídio são mortas dentro de casa. Levando em consideração esse período de isolamento social, por conta do novo Coronavírus, o próprio lar não representa total segurança às mulheres. Afinal, as ligações para a Central de Atendimento à Mulher (180) subiram 9% no mês de março. Em 2019 foram 3.739 homicídios dolosos de mulheres, uma queda de 14,1% em relação a 2018. Apesar dessa redução, houve um aumento de 7,3% nos casos de feminicídios – crimes de ódio motivados pela condição de gênero. “O homem ficou na posição ‘suprema’ de rei durante séculos e, agora, por ignorância, por preguiça e por medo não aceita dividir o posto com uma rainha”. Como a você enxerga e trabalha, dentro da Nami esse apoderamento dos espaços pelas mulheres?

PC – Desde o surgimento da Lei Maria da Penha, em 2006, nós mulheres, tivemos muitos ganhos relacionados à mudança da sociedade em relação a aceitação da violência doméstica. Hoje todos entendem que é um crime digno de punição, diferente do passado onde não era levado a sério. Essa foi uma conquista criada a partir de muitos esforços da sociedade civil e políticas públicas direcionadas às mulheres. Porém, nos últimos quatro anos sofremos um período de sucateamento e desmonte dos aparatos de proteção à mulher como centros de atenção e delegacias da mulher. Com o pouco investimento em estrutura e a legitimação que o pensamento machista vem ganhando está muito difícil fazer valer as leis que nos protegem, e é por isso que precisamos nos dedicar a eleger bons governantes que tenham compromisso com as políticas públicas para com as mulheres nas próximas eleições. Precisamos de investimento público e comprometimento com a diminuição dos casos de violência contra a mulher e feminicídio.

HT – A série Penumbra foi produzida a partir de experimentações de dupla e longa exposição fotográfica durante a solitária estadia da quarentena de 2020 no seu ateliê. Como surgiu esse trabalho e como foi o processo de criação?

PC – Penumbra é uma série fotográfica de longa e dupla exposição criada na solidão do ateliê durante a quarentena e está exposta agora na online viewing room do meu site www.panmelacastro.com . Penumbra fala sobre racismo: a solidão da mulher negra. Ana Claudia Lemos Pacheco realizou uma pesquisa chamada “Branca pra Casar, mulata para F…, negra para trabalhar” que fala sobre essa solidão. Um racismo velado e que nem todos dão importância porque não está nos protestos da TV nem nos trends topics do twitter. Mulheres negras acabam no celibato compulsório por serem preteridas pelas brancas, já que estão longe do padrão de beleza. Ainda as mestiças são tratadas como objetos sexual. Parece superficial, mas o impacto na nossa sociedade são mulheres, negras, que por não conseguirem desenvolver relacionamentos românticos duradouros, acabam liderando suas casas sozinhas sem qualquer tipo de ajuda de algum companheiro, ampliando dessa forma as dificuldades e pobreza. Além de serem as provedoras financeiras da casa, ainda tem que educar os filhos e cuidar da casa sozinhas.

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HT – Você possui um interesse especial pela performance, mas suas criações passam, também pela fotografia, vídeo, objetos, esculturas e instalações participativas, além de murais mundialmente famosos. Durante o seu processo de inspiração e criatividade ‘a base’ acaba interferindo no resultado?

PC – A essência do meu trabalho funciona no mundo das ideias, então o suporte escolhido é resultado do meu processo de trabalho e por isso pode variar. Há pesquisas que levam para pintura e outras para fotografia. Não me deixo limitar pela base, deixo que ela trabalhe em favor da pesquisa e a melhor forma de expô-la.

HT – Você já exibiu suas criações em diferentes partes do mundo. Qual a diferença de apresentar sua arte no Brasil e no exterior?

PC – A minha percepção é que fora do Brasil as pessoas ainda dão muito mais credibilidade para o trabalho que desenvolvo do que aqui, sendo considerado relevante e estando em matérias e trabalhos acadêmicos em uma vasta quantidade de idiomas. Sinto-me um pouco marginal ainda aqui, em meu país, em relação às instituições.

HT –  Você acredita que os artistas brasileiros ainda precisam dessa ‘chancela’ internacional para serem valorizados?

PC – Os artistas precisam de chancela para tudo, o sistema da arte mundial ainda é muito opressor e exclui muito as pessoas. É bem difícil.

HT – Na sua visão, qual a importância da arte na construção de uma sociedade?

PC – A arte é uma fuga do mundo do trabalho. Se não temos este momento de respiro, lúdico, de reflexão, nós não aguentamos levar adiante os compromissos da realidade. Também é na arte que o pensamento se expande, que pensamos nossa sociedade e as questões pertinentes à nossa vida.

HT – Desde 2013 você vem ‘criando’ o Museu Nami. Qual a dificuldade ou facilidade de se ter um museu à céu aberto, na comunidade da Tavares Bastos?

PC – O projeto do Museu NAMI inclui um circuito de um quilômetro de murais à céu aberto na comunidade da Tavares Bastos. Agora durante a quarentena abrimos um edital de apoio de emergência para artistas mulheres, onde elas recebem o cachê agora para pintar murais depois da quarentena. Esses novos murais formam um circuito sobre a luta contra a violência doméstica para que possamos tratar do assunto com grupos de visitantes e alunos. Apesar de ser um projeto de sucesso e ter sido visitado até pela Malala em 2018, esse projeto tem praticamente financiamento nulo o que dificulta o seu desenvolvimento, principalmente da melhor forma. Tratando-se de murais à céu aberto, o tempo os detona rapidamente, dependendo de constante restauração.

A ativista Paquistanesa Malala e artista plástica Panmela Castro em uma oficina de grafiti da Rede Nani

HT – O que podemos esperar de Panmela Castro e da Rede Nami no segundo semestre de 2020?

PC – Eu como artista estou apreensiva para a reabertura da minha exposição #RetratosRelatos que foi fechada no Museu da República com apenas duas semanas de inaugurada. A Exposição é composta de relatos enviados por mulheres e seus retratos pintados por mim, muitas delas falando sobre abusos. O museu deve abrir suas portas de forma restrita depois que isso tudo passar. É um momento muito difícil para todos e que muitas pessoas estão morrendo, então a exposição ficará fechada o tempo necessário para controlarmos a pandemia e salvarmos vidas. Já para a Rede NAMI vai rolar uma surpresa maravilhosa, eu e minha equipe estamos usando a quarentena para escrever um livro com toda a nossa experiência acumulada nesses anos de organização, além da distribuição de ibooks gratuitas, o livro será vendido nas livrarias editado pela Bom Tempo e se chamará Hackeando o Poder – Táticas de Guerrilhas Para Artistas Do Sul Global.

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