Fabiane Pereira entrevista a psicanalista Maria Rita Kehl: “A luta pela igualdade de direitos entre os sexos não é das mulheres. É de todos.”


No papo, Maria Rita fala sobre o movimento feminista contemporâneo, a presidenta Dilma Rousseff, a importância da psicanálise e muito mais. Vem que o papo é dos melhores!

Hoje, por causa desta entrevista, dou mais um check na minha lista de “desejos” de 2016. Desde que conheci o trabalho da psicanalista Maria Rita Kehl tinha vontade de entrevistá-la. Após “devorar” seu livro “Deslocamentos do Feminino” (Editora Boitempo) em menos de 48 horas, passei a admirá-la ainda mais. Nascida em Campinhas, em 1951 (no próximo sábado, 10, ela celebra nova idade!), Maria Rita também é jornalista, ensaísta, poetisa, cronista e crítica literária. Em 2010, venceu o Prêmio Jabuti de Literatura na categoria “Educação, Psicologia e Psicanálise” com o livro “O tempo e o cão – atualidade das depressões“. Com a polarização política instalada no Brasil desde as últimas eleições presidenciais, alguns nomes (pseudo) midiáticos passaram a chamá-la de “psicanalista petista” e ela assume que apesar de não compactuar com os erros do PT é, sim, uma psicanalista de esquerda. “O fato é que, evidentemente, atendo poucas pessoas que poderiam se dizer de direita“, explica.

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“Deslocamentos do Feminino” é um livro que questiona as relações que se estabelecem, na clínica psicanalítica, entre a mulher, a posição feminina e a feminilidade. Com apresentação de Marilena Chaui, o livro trata dos primórdios do modo de vida burguês e, a partir do romance “Madame Bovary, de Flaubert, entra na discussão sobre o descompasso entre as fantasias romanescas das mulheres no século XIX e a estreiteza do destino que o casamento lhes reservava. Por fim, Maria Rita Kehl ainda examina a teoria freudiana sobre sexualidade feminina.

Aqui, Maria Rita fala sobre o movimento feminista contemporâneo, a presidenta Dilma Rousseff, a importância da psicanálise e muito mais. Divido esta “conquista” com vocês!

FP: Quando a psicanálise entrou na sua vida?
MRK: Exatamente no ano de 1977, quando comecei a fazer minha análise pessoal. Estudei psicologia na USP num período em que a faculdade estava dominada pelo behaviorismo. Cansei de “condicionar” ratinhos de laboratório. Para você ter uma ideia, nossa turma só leu Freud a partir do 3º ano de faculdade – mesmo assim, em cursos esparsos. Foi só depois que me formei, quando procurei terapia por problemas pessoais, é que um amigo (o José Miguel Wisnik) me indicou um analista. Foi uma descoberta incrível. Mesmo assim continuei a trabalhar só como jornalista até 1981, quando finalmente decidi começar a atender como analista.

FP: Por que relançar o livro “deslocamentos do feminino” quase 20 anos após a 1ª edição?
MRK: Eu nunca decidi abandonar este livro; foi a Imago (primeira editora de “Deslocamentos”…) que, depois de duas edições, deixou de lado por razões que ignoro. A partir de 2009, quando publiquei pela Boitempo a primeira edição de “O tempo e o cão – atualidade das depressões” decidi publicar meus livros seguintes pela mesma editora. Gosto da linha editorial e do cuidado com os livros. Tenho liberdade de escolher o capista, que por sinal é meu irmão, o artista gráfico Antonio Kehl. Na nova edição de Deslocamentos… até a capa é feita a partir de uma foto dele.  Além de tudo isso  a Ivana Jinkins é uma editora muito correta com o pagamento dos direitos autorais.

FP: Quanto tempo durou e como foi o processo de escrita do livro “deslocamentos do feminino”?
MRK: Eu sou bem rápida para escrever; deve ser por conta da prática com a escrita jornalística. Deslocamentos…foi minha tese de doutoramento, defendida em 1997. Escrevi a tese em dois anos, mais ou menos. Estava interessada em discutir as teorias pós-freudianas a respeito da feminilidade e a sexualidade feminina, sob o pano de fundo (crítico) da realidade vivida pelas mulheres na era vitoriana. Imediatamente depois da defesa decidi publicá-la, e meu amigo Artur Nestroviski, que na época era editor da Imago, me convidou para publicar lá. Melhorei um pouco o texto, acrescentei alguma nova bibliografia e publicamos um ano depois, em 98.

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FP: Você já foi chamada de “psicanalista petista” por alguns nomes (pseudo) midiáticos. Até que ponto esses “rótulos” ajudam ou prejudicam sua carreira como psicanalista e pensadora contemporânea? 
MRK: A pergunta é boa, mas difícil de responder, porque não sei o que seria minha carreira se eu não fosse uma “psicanalista petista”. Ou melhor, uma psicanalista de esquerda, pois não compactuo com os erros do PT. O fato é que, evidentemente, atendo poucas pessoas que poderiam se dizer “de direita”. E muita moçada da USP, muita gente da FFLCH, alguns militantes de PT e PSOL… ou seja, talvez precise trabalhar o dobro ou o triplo de  alguns colegas que atendem a clientela dos Jardins ou do Morumbi. Mas não considero esse fato um “prejuízo” à minha carreira. Na verdade, não penso em minha vida como uma carreira, entende? Ela é a vida que escolhi, com os ganhos e as perdas que eu assumo, na boa.

FP: Em “Deslocamentos do Feminino” você questiona as relações que se estabelecem entre a mulher, o feminimo e a feminilidade. Resumidamente, como estes três conceitos se associam e se desassociam? 
MRK: Vou tentar responder sem muita teoria, pois os leitores da coluna ARTE & LITERATURA não precisam ser psicanalistas para ler essa entrevista. “Mulher” é o substantivo que designa, grosso modo, pessoas que nasceram com vagina e não com pênis. É a primeira pergunta que se faz, no parto (antigamente) ou hoje em dia, já no ultrassom: “menino ou menina”?

Já “Feminilidade” é a estilística que compõe o modo como uma mulher se assume perante os homens, perante outras mulheres e também perante ela mesma. Há mulheres mais, outras menos, femininas, neste sentido do modo de compor a aparência. Esta “fachada” (que os lacanianos chamam com a palavra francesa semblant) independe da orientação sexual e da posição subjetiva dessa mulher. Uma moça homossexual pode se apresentar como muito feminina e escolher como parceira outra moça, que adote o estereótipo mais masculinizado.

E a palavra “feminino” na psicanálise, se aplica antes de mais nada ao sexo das mulheres. E a partir daí, designa a diferença sexual, que em um ensaio anterior ao Deslocamentos… eu chamei de “mínima diferença”. Se uma menininha, a partir da mínima diferença inscrita em seu corpo (em comparação com um menino) se identifica com o fato de ser mulher, ela assumirá os avatares femininos da sexualidade.

FP: A nova geração do movimento feminista (da qual faço parte), muito na esteira de campanhas bem sucedidas nas redes sociais (diversas hashtags), ganhou as ruas e, acho, dificilmente sairá delas até que todos os direitos conquistados não corram riscos de retrocesso. No Rio, muito influenciado pelo movimento feminista, um partido não se reelegeu depois de mais de uma década no poder. Como você analisa este momento atual? (a mulher como sujeito social e político).
MRK: Acho maravilhoso o protagonismo assumido pelas mulheres, ou melhor, pelas meninas – bravas ragazzas! – na linha de frente de várias manifestações progressistas do nosso milênio. Principalmente no que tange às bandeiras ideológicas e comportamentais: a dignidade do corpo das mulheres, a questão do aborto, a guerra contra estupradores e abusadores, a liberdade de cada uma compor a própria aparência sem prestar conta à moda ou aos preconceitos dos meninos e homens, etc. Também admirei a liderança das meninas na ocupação das escolas secundárias  em São Paulo, contra a decisão do governo do PSDB de fechar várias delas para “economizar”. Mas ainda acho que o divisor de águas na política é a luta de classes. Veja só: no Rio o PMDB perdeu e foi ótimo. Mas quem se elegeu? Um evangélico! Contrário ao aborto e a muitas liberdades sexuais que as meninas já conquistaram há tempos. Não que, como prefeito, ele possa proibir nada; mas não dá pra considerar a vitória do Crivella uma conquista das feministas, concorda?

FP: Você acha que Dilma foi impedida de continuar exercendo seu cargo como presidenta por ser mulher – mesmo questionada por não se adequar a um modelo de feminilidade? O impeachment, do modo que ocorreu, aconteceria se ela fosse homem (mesmo se as condições política e econômica fossem as mesmas)? 
MRK: Bom, Fabiane, psicanalistas são péssimos para prever o futuro – mesmo um futuro do pretérito. Não sei responder o que teria acontecido na votação do impeachment de um presidente homem. Se fosse um petista, no contexto dessa atual crise econômica (que não foi produzida pelo PT! é uma crise do capitalismo internacional que as gestões petistas até conseguiram retardar, no Brasil). Mas concordo com você que a presidente Dilma sofreu muitos preconceitos não só por ser mulher como por não ser uma mulher de acordo com os padrões de “bela, recatada e do lar”, como se definiu uma vez a atual primeira dama Marcela Temer. Dilma foi militante, presa, torturada, tinha uma firmeza que não condiz com os clichês de feminilidade e já não era jovem quando foi eleita. Muita gente não gostava dela só por causa disso. Aí sim, o preconceito jogou pesado contra ela.

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FP: Muitas mulheres que vivem no século XXI, apesar de terem mais informações, continuam com “medos” e “preconceitos” de épocas passadas como a falta de sororidade, o julgamento diante da liberdade sexual de outras mulheres e vários outros pré-conceitos. Como tentar mudar isso a médio prazo já que não há mais restrições informacionais em relação a época atual (ou há)?
MRK: Não sei responder como mudar isso, Fabiane, a não ser fazendo o que já fazemos, desde os anos 1960: ocupando espaços públicos e espaços de discurso, mostrando com atitudes que é possível mudar para melhor. E conquistando para esta luta todos os companheiros, os homens de boa fé e de espírito aberto. A luta pela igualdade de direitos entre os sexos, pelo respeito à diferença, pela dignidade, não é das mulheres. É de todos.

FP: Quais os principais desafios da psicanálise em relação ao entendimento do papel da mulher no mundo contemporâneo? 
MRK: A psicanálise, desde 1895, deu voz às mulheres. Este continua a ser seu principal papel na vida pública: dar voz aos “oprimidos” da subjetividade: os psicóticos, os homossexuais, as crianças e sua sexualidade ignorada até pouco tempo atrás – e as mulheres. Mas a psicanálise não faz isso em oposição aos homens. Na verdade, uma boa experiência de análise vai transformar também um machista, homofóbico e misógino em uma pessoa mais aberta. Não por doutrinação do analista. Mas porque a psicanálise vai na via oposta à da rigidez moral, oposta à do narcisismo e da exaltação do ego. Estou convicta de que uma boa análise tem grandes chances de nos tornar um pouco melhores. Mas não posso dar garantias disso…

*Fabiane Pereira é jornalista, pós graduada em “Formação do Escritor”, mestranda em “Comunicação, Cultura e Tecnologia da Informação” na Universidade Nova Lisboa. Curadora do projeto literário “Som & Pausa” e ainda toca vários outros projetos pela sua empresa, a Valentina Comunicação, especializada em projetos musicais e literários. Foi apresentadora do programa Faro MPB na MPB FM por quatro anos e atualmente comanda o boletim “Faro Pelo Mundo” na emissora de rádio carioca. Aqui no site, é a representante da geração barra, essa turma de 30 e poucos anos que sabe assobiar e chupar cana como ninguém.