Fabiane Pereira entrevista Maria Rezende: “Poesia é uma coisa imensa para mim e morro de orgulho de dizer que sou poeta”


Maria não é “só” poeta. Ela é performer, montadora de cinema e televisão e, pasmem, celebrante de casamentos. Com três livros lançados, “Substantivo Feminino” (2003), “Bendita Palavra” (2008) e “Carne do Umbigo” (2015), Maria já recebeu elogios de Manoel de Barros, Eduardo Galeano e Ferreira Gullar

*Por Fabiane Pereira

Conheci, mais profundamente, Maria Rezende num curso de astrologia para iniciantes. Conhecer o mapa astral de uma pessoa nos faz a compreender muito mais e foi nestas aulas que a poeta carioca ganhou minha admiração. Anos se passaram e nossos caminhos sempre se cruzaram, talvez porque nossos olhares mirem nas mesmas conquistas coletivas.

editMaria Rezende por Ana Alexandrino - 2013-1

Maria Rezende (Foto: Ana Alexandrino)

Mas Maria não é “só” poeta. Ela é performer, montadora de cinema e televisão e, pasmem, celebrante de casamentos. Com três livros lançados, “Substantivo Feminino” (2003), “Bendita Palavra” (2008) e “Carne do Umbigo” (2015), Maria já recebeu elogios de Manoel de Barros, Eduardo Galeano e Ferreira Gullar (um arraso!!).

Sobre sua poesia, o mestre Manoel de Barros afirmou: “É poesia substantiva mesmo. A mulher inteira dentro das palavras. Poesia é fenômeno de linguagem do que de idéias. Isso você sabe. Sendo assim, você é poeta”, já em seu livro de estreia.

O que poderia ter deixado-a envaidecida e deitada em berço esplêndido a motivou e anos depois de sua estreia no mercado literário, Maria está cada vez mais inteira dentro das palavras.

Na próxima terça (20 de setembro), a partir das 20h30, Maria Rezende traz finalmente para o Rio de Janeiro seu novo “espetaclinho” – como ela carinhosamente o chama – Carne do Umbigo, que mistura performance ao vivo e videopoemas. Como cenário, as fotos de Ana Alexandrino são projetadas. O local escolhido foi o ótimo espaço “Olho da Rua“, uma mistura charmosa de galeria de arte e design, ateliê e café, localizado na rua Bambina, em Botafogo.

Aqui, Maria se abre e mostra que arte e política não são (na verdade, não podem ser) dissociáveis e que há esperança.

FP: Como a poesia entrou na sua vida, pessoal e profissionalmente?
MR: Minha casa sempre foi uma casa de leitores. Meus pais liam muito e eu também, desde cedo, e daí no meu aniversário de treze anos ganhei de presente deles uns sete livros. Um deles era uma antologia do Vinicius de Moraes. Eu grudei naquele livro e ali se abriu um mundo novo pra mim. Nessa época eu rabiscava versinhos em cadernos e diários, mas ler os grandes poetas foi me dando a sensação de que não tinha mais o que dizer depois deles, e a faculdade de Letras curiosamente travou ainda mais a minha escrita. O que me libertou foram as aulas de poesia falada da Elisa Lucinda, que eu fui fazer com uns 19 anos. Eu aprendi a dizer poemas dos grandes poetas da língua portuguesa e foi através desse aprendizado que comecei a escrever. Quando eu escrevo um poema imediatamente leio ele em voz alta pra sentir o ritmo, mudo palavras por conta disso, acrescento ou elimino versos, escrever e dizer são processos inseparáveis pra mim. Um dia, quando já era professora assistente da Elisa, mostrei pra ela uns poemas e quando ela gostou me senti autorizada a dizer que escrevia poesia. Daí pra passar a dizer que era poeta ainda demorou um bocado, porque a palavra tem muita força, e ser poeta era uma coisa imensa pra mim. Ainda é, na verdade, e morro de orgulho de dizer: sou poeta.

FP: Quais são as angústias que inquietam sua alma e o que lhe provoca tão intrinsecamente ao ponto de inspirar sua poesia?
MR: A escrita para mim é puro mistério. Não tenho nenhum método nem controle sobre ela, escrevo quando alguma coisa me toca e se oferece em palavras, quando um sentimento ou sensação ou imagem ecoa. Posso passar meses sem escrever um poema e de repente escrever vários em uma mesma semana. O amor em todas as suas vertentes – o encantamento, a vida a dois, o desamor – é um catalisador poderoso de poemas. A palavra mesmo me mobiliza muito, me encanta, me faz escrever. E meu livro mais recente, “Carne do umbigo”, tem também muitos poemas sobre redescobrir-se, reinventar-se. Os tombos rendem belos poemas também…

Maria Rezende (Foto: Ana Alexandrino)

Maria Rezende (Foto: Ana Alexandrino)

FP: Seus livros têm títulos femininos/feministas. Seus versos falam sob a ótica da mulher. Sua poesia aborda, muitas vezes, temáticas femininas/feministas. Quando você se descobriu empoderada?
MR: É curioso porque eu demorei bastante pra me descobrir feminista, embora isso esteja presente na minha poesia desde sempre. Acho que porque essa palavra ganhou uma pecha desagradável ao longo do tempo, e eu mais nova seria aquela que diria o infame “não sou feminista, sou feminina”. Aliás, no meu primeiro livro, que se chama “Substantivo feminino”, tem um poema de amor que termina dizendo “sou uma mulher do tamanho que ele me faz”, que é um verso que eu abomino hoje, falo “Se liga, Maria, tá doida? Tu é uma mulher do tamanho que você quiser!”. Risos. Mas é isso, ser mulher é um processo, ser poeta e ser feminista também. O feminismo chegou pra mim poderoso e transformador num momento em que eu estava muito frágil, muito desmoronada, e em plena passeata das mulheres contra o Eduardo Cunha no ano passado eu peguei o megafone e disse meu poema “Pulso aberto”. De repente foi me subindo do chão uma força, subindo dos pés pelo meu corpo acima, e quando eu terminei de dizer eu estava trêmula e em prantos e eu pensei “Como é que eu posso não estar sabendo quem eu sou? Eu sou a mulher que foi ao Uruguai porque ama Eduardo Galeano, deixou no café que ele frequenta um livro de presente, recebeu em casa um mês depois um livro dele chamado “Mulheres” com uma dedicatória linda, leu esse livro de enfiada e escreveu esse poema, e agora tem a força de pegar um megafone e falar pra essas mulheres poderosas aqui reunidas, na rua, pra lutar pelos nossos direitos. Eu sei muito bem quem eu sou e quem eu sou é uma puta mulher bacana.” Aquele momento mudou a minha vida, de verdade, sem demagogia, de dentro pra fora.

FP: Seu poema “Pau Mole” do livro “Substantivo Feminino” ganhou as redes sociais há mais ou menos sete anos, numa época que a pauta feminista ainda não estava tão disseminada quanto hoje. Você imaginava toda a repercussão que este poema teve e ainda tem? Como você analisa, 7 anos depois, o fato de muitas mulheres ainda criticarem o movimento feminista?
MR: O “Pau mole” foi dos primeiros poemas que eu escrevi, no início dos anos 2 mil. Ele circulava em saraus e no CEP 20.000, e já causava um auê danado. É um poema sem graça em termos de forma, mas acho que ele conquista porque é singelo, e fala de um espanto genuíno, de uma descoberta. Ele me rendeu e me rende surpresas e dádivas, me espalha por aí, chega sempre antes do que eu nos lugares. De um certo modo, como me disse um ex namorado, ele “salva” o macho do seu papel tão pesado de ter que ser infalível, então é um poema anti machista por natureza, e nesse sentido é um poema feminista. Porque as pessoas confundem demais o que o feminismo é, né? O feminismo é a crença de que todas as pessoas merecem os mesmos direitos na sociedade. Não é a crença de que somos melhores, ou de que merecemos mais direitos do que os homens, e nem de que somos iguais, porque ninguém é igual, na real. E de alguma forma o poema do “Pau mole” coloca isso na prática. É claro que eu tenho muito mais poemas sobre o feminino, sobre ser mulher, mas o homem me interessa profundamente, eu sou heterossexual então eu namoro e caso com homens, além de ter um pai, um irmão, mil amigos, e quem sabe se um dia terei um filho homem. Quanto mais a minha poesia e a minha vida cotidiana puderem trazer pra luz essas questões, com afeto e cuidado, melhor.

FP: Quais são, na sua opinião, as maiores limitações impostas pela sociedade brasileira a uma mulher (seja ela poeta ou não)? E de que maneira você acha que podemos mudar esta conjuntura?
MR: Eu rompi com a editora que iria publicar o “Carne do umbigo”, entre outras coisas, porque as donas, duas mulheres, queriam que o livro saísse por um selo de “literatura feminina”, seja lá o que isso queira dizer. Eu acho absurdo que sequer haja esse selo numa editora, entende? Ou então que ele exista pra livros “de mercado”, ostensivamente pensados para serem lidos por mulheres. Em literatura isso não existe, não faz sentido. A minha poesia é pra seres humanos, ela não tem limitação nem cabe em nenhuma prateleira. E se você for a um recital meu, ou entrar no meu canal do YouTube, vai encontrar homens e mulheres. Então de forma geral eu não me sinto cerceada profissionalmente por ser mulher, nem como poeta nem como montadora. As restrições são muito fortes mesmo é na vida prática, é no medo de andar na rua de noite sozinha e perder mais do que o celular e a carteira, é no medo de engravidar e não poder contar com uma forma segura de interromper a gravidez sem se tornar uma criminosa aos olhos da lei e da sociedade, é ter que pensar no tamanho da saia de acordo com o meio de transporte que vou usar, essas coisas do dia-a-dia.

FP: Você é uma das criadoras da fanpage “Meuaborto” e a idealizadora deste “projeto” (fanpage/site). Como surgiu a ideia e por que você resolveu se expor com uma temática tão polêmica?
MR: Eu nunca engravidei, portanto nunca abortei. Pelo contrário: sonho em ser mãe, em ter filho da minha barriga, engravidar e amamentar e o pacote todo. Mas nem toda mulher sonha com isso. Ou sonha, mas nem sempre a gravidez vem num momento possível na vida dela. Quando eu fiquei adulta a minha mãe me disse um  dia, numa conversa corriqueira, que entre eu e meu irmão – que temos apenas dois anos de diferença – ela engravidou e ela e meu pai decidiram não ter. Foi um choque, sabe? Não combinava aquela história: minha mãe abortou. E devagar eu fui entendendo que quem aborta são todas as mulheres, casadas e solteiras, com filhos e sem, religiosas e não religiosas, jovens e mais velhas, de todas as classes sociais. Toda mulher pode precisar tomar um dia essa decisão, que nunca é fácil porque envolve seu corpo, seu afeto, sua família, seu amor. E não faz sentido que ela seja ainda mais difícil por envolver uma contravenção, a falta de atendimento médico e psicológico adequado, uma quantia imensa de dinheiro, remédios que chegam pelo correio vindos sei lá de onde. O aborto ilegal onera o Estado porque gera problemas graves de saúde quando é mal feito, além de ser a quarta causa de morte materna no Brasil. Quando há meses atrás eu li uma matéria sobre uma clínica de abortos que foi “estourada” pela polícia e onde, além dos médicos, foi presa a mulher que estava na mesa de cirurgia, o horror virou ação e surgiu uma conversa com um grupo de mulheres que eu admiro sobre o que poderíamos fazer pra tirar esse assunto do armário. Foi assim que chegamos à campanha #meuaborto, que reúne relatos de mulheres que abortaram como forma de mostrar que esse é um assunto de saúde pública, que está mais perto do que querem nos fazer pensar, e é só falando sobre ele e nos unindo – mulheres e homens também – que poderemos garantir que ele seja desmistificado, descriminalizado e legalizado.

FP: Com tantas denúncias vindo à tona de violência contra a mulher, com tantas críticas ao movimento feminista, com um governo ilegítimo formado exclusivamente por homens que não representam a maioria da sociedade brasileira, como ter forças para “não desistir”?
MR: É como diz aquela música linda do Lenine “eu envergo, mas não quebro”. Mulher tá acostumada a resistir, e essa primavera feminista nos mostrou que juntas a gente pode muito mais do que imagina. Quando uma desanima as outras estão ali de braços estendidos, e assim seguimos.

FP: Quais são as poetas contemporâneas que lhe inspiram?
MR: Eu sou fã de muita gente da minha geração. E embora esteja fora do grande circuito de festivais, eu ando pelo circuito alternativo, feito na garra por gente cheia de afeto, e assim saio conhecendo muita gente bacana pelo país afora. A Ana Martins Marques, mineira, é musa absoluta. Aqui do Rio tem a Bruna Beber, com um olhar surpreendente, doce e afiada, e a Letícia Novaes, que é poeta de livro e de canção, e sempre me sacode toda por dentro. A Luna Vitrolira é uma pernambucana poderosa, que tem como eu essa tradição da palavra falada e quebra tudo com a sua poesia corajosa. E em Sampa recentemente eu descobri a Mel Duarte, uma poeta de slam, com uma poesia muito urbana e forte, a Michelle Navarro, que mistura potência e delicadeza, e a Aline Bei, que tá me tirando do eixo com a sua poesia prosaica e absolutamente desconcertante. Sem falar na Matilde Campilho, portuguesa maravilhosa que mistura os sotaques daqui e de lá e faz uma poesia universal e deslumbrante. E incluindo também os rapazes, tem uma leva impressionante de poetas. Everton Behenck é meu muso absoluto, um gaúcho dono de uma voz que cola na minha de tal modo que eu não consigo ler sem dizer em voz alta. Em Sampa tem o André Oviedo, o Bobby Baq e o Samuel Luis Borges, em Aracaju tem Pedro Bomba e Allan Jones, em Porto Velho tem o Elizeu Braga, em Nova Hamburgo o Nícolas Nardi, enfim, uma pá de poetas que eu leio cheia de espanto e admiração.

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FP: O público que for ao seu espetáculo amanhã no Olho da Rua (RJ) vai assistir ao que exatamente? Conte pra gente (sem spoiler) como é seu espetáculo de poesia?
MR: Eu chamo ele de “espetaclinho” porque ele é mais do que um recital de poemas mas ainda não é o espetáculo que eu desejo fazer, com que eu sonho há uns anos já. Eu estou no palco ao vivo, com um figurino lindo criado pela Mel Akerman, e o cenário são fotos incríveis da Ana Alexandrino de recortes de corpo, formas nada óbvias, que são projetadas enquanto eu falo. Costurando os poemas ao vivo tem videopoemas que eu venho fazendo há seis anos e que nasceram pra ser postados meu canal do YouTube, mas ao longo do tempo foram ganhando peso e quase que pedindo pra ir parar no palco. E entremeando tudo tem papos sobre o nascimento dos poemas, reflexões sobre a vida e o meu processo de criação. É um espetaclinho íntimo, amoroso, talvez minha maior nudez em público até hoje porque reúne tudo que eu sei fazer de melhor de uma só vez ali, diante das pessoas.

FP: Você tem três livros lançados. Você consegue viver só da sua arte? Se não, quais são as outras profissões que você exerce?
MR: Eu desde cedo soube que não queria viver de escrever, fazer da escrita meu ganha pão, pra poder ter o luxo de só escrever quando fosse natural e orgânico, sem prazo, sem tema, sem pressão. Eu publiquei meu primeiro livro em 2003, e de lá pra cá vieram mais dois livros, dois CDs de poemas, muitos recitais e apresentações em vários lugares do Brasil e também em Portugal, além de um canal no YouTube onde eu posto vídeopoemas. Então eu vivo da poesia não no sentido prático, financeiro, mas no sentido mais profundo: é quem eu sou, o que me alimenta, o que de melhor eu tenho pra dar pro mundo. E todos os meus trabalhos têm a poesia no cerne, porque eu não existo sem ela. Minha profissão oficial, que paga as contas, é ser montadora de cinema e tv. O George Lucas, que foi montador antes de ser diretor, disse num documentário “Montagem é como poesia. Não: montagem É poesia.”. Eu sinto muito isso. Montar um filme tem a ver com ritmo, com silêncio e palavra, com a descoberta da melhor forma de dizer uma coisa, e poesia é isso também. E a novidade é ter virado celebrante de casamentos, que é uma coisa que eu faço há mais de dez anos informalmente, pros amigos que não querem nada religioso ou um juiz. Uma dessas amigas, a Manoela Cesar, criou um blog pra dar dicas de casamento e me indicou lá como celebrante, o blog dela virou uma referência nesse mercado, o Colher de Chá, e o que era um carinho entre amigos virou trabalho. Hoje eu tenho a Casar com Poesia, e vivo o privilégio de entrar na intimidade de casais que eu não conhecia antes e celebrar o amor deles, com a poesia como costura.

FP: Que conselho você daria às minas que querem, como você, viver da palavra?
MR:Antes de tudo leiam muito. Poesia. Prosa. De minas, de manos, de hoje, de ontem, daqui e de todo canto. Escrevam. E mostrem. Aproveitem a internet que é um microfone aberto e busquem também os palcos do mundo real, o sarau da sua cidade, da sua escola, da sua faculdade. O poema no mundo ganha corpo, o que é frágil derrete e o que forte se consolida, a gente bota a palavra no mundo e o mundo nos retribui com leituras inesperadas e trocas fartas. E não exijam da palavra um salário, fama, diplomas. Deixem que ela traga parceiros, espanto, leitores e admiração mútua. Daí é só se lambuzar.

*Fabiane Pereira é jornalista, pós graduada em “Formação do Escritor”, sócia da Valentina Comunicação — empresa voltada para criação, divulgação e produção de projetos musicais e literários — apresentadora, roteirista, produtora e programadora musical do programa de rádio Faro MPB, da Rádio MPB FM.