* Por Flávio Di Cola, direto de Veneza
A competição pelos olhares do público mundial no Festival de Cinema de Veneza tem sido particularmente dura nesta edição. Uma cascata de mega acontecimentos perturba desagradavelmente a primazia do mundo do cinema concentrado na praia do Lido: o barril de pólvora ucraniano prestes a explodir a qualquer momento nas barbas da Europa ocidental que – no seu flanco mediterrâneo – também se vê atacada pelos tenebrosos “barcos da morte” com pencas de migrantes em fuga da miséria africana e a Itália se ressentindo de ser a única potência européia a enfrentar o problema de frente. Com tanta má notícia, por que não celebrar o casamento oficial de Brad Pitt com Angelina Jolie num castelo de sonhos no sul da França? O casal Brangelina, o mais célebre do planeta – depois da lendária dupla Liz Taylor-Richard Burton dos anos 1960 –, pode ser “politicamente correto”, mas também sabe apreciar a deliciosa privacidade que só a Provença garante para essa cerimônia de reafirmação dos votos de nove anos de companheirismo e seis filhos.
Mas o povo do cinema instalado em Veneza não precisa olhar para longe a fim de perceber os sinais de uma grande tormenta, pois estes já chegaram e atingiram a própria Mostra de duas formas contraditórias. De um lado, o Festival de Cinema é celebrado como um dos poucos eventos positivos da vida pública da região vêneta, mergulhada em gravíssima crise político-governamental devido a escândalos recentes de corrupção envolvendo importantes parcelas da sua classe dirigente, a ponto dessa festa cinematográfica ter sido elevada à categoria de “pilar institucional” e de representante das qualidades que ainda projetam positivamente a Itália no mundo, segundo palavras do próprio presidente da nação Giorgio Napolitano na noite de abertura da mostra. O importante jornal romano “La Repubblica” chegou a sondar o presidente da Bienal de Cinema de Veneza, Paolo Baratta, para extrair a confirmação de que por trás do comentário de Napolitano haveria a insinuação de que ele tentaria a carreira política a fim de ajudar a desatar o imbroglio institucional veneziano, o que foi terminantemente desmentido por Baratta. Pois é: cinema e política estão se misturando inesperadamente nas areias quentes da praia do Lido!
Por outro lado, conforme as jornadas cinematográficas vão se sucedendo, fica cada vez mais claro que a Mostra de Veneza está se ressentindo da concorrência de duas outras vitrines do cinema mundial: o Toronto International Film Festival – TIFF para os íntimos – que começa no próximo dia 4 de setembro, e o fenômeno exótico do Telluride Film Festival Show, que ocorreu entre sexta (29/8) e segunda-feira (1/9) passadas num quase vilarejo perdido entre as montanhas do estado do Colorado, Estados Unidos. São para esses palcos que a indústria audiovisual norte-americana reservou a exposição inicial das suas principais e mais recentes apostas: as esperadíssimas obras de David Fincher, Paul Thomas Anderson e Mike Leigh, além dos lançamentos da super poderosa produtora Weinstein Co. O engraçado – ou o terrível – disso tudo é que Telluride e Toronto também se rivalizam ferozmente. Realmente, a indústria dos festivais de cinema não é para amadores ou para gente muito sensível!
E claro que a imprensa especializada norte-americana presente em Veneza é a que mais gosta de lembrar aos italianos que os grandes dias do mais antigo festival mundial de cinema já se foram. Por exemplo, a bíblia do mundo do espetáculo “Variety” teve a audácia de fazer circular aqui um material promocional em que publica uma foto de Federico Fellini chegando numa lancha ao Festival de Veneza de 1983, mencionando que nessa mesma edição da mostra estavam presentes Michelangelo Antonioni, Robert Altman, Costa-Gravas, Andzrej Wajda e Alain Resnais. Bem, eis aí um elenco de gênios que não só Veneza como nenhum outro festival do mundo vai conseguir reunir de novo, até por que estão quase “tutti morti” e a concepção de cinema como “grande arte” autoral está passando por um sério questionamento nesta era do digital e da supremacia dos efeitos especiais essencialmente tecnológicos. Portanto, é um tanto ridículo outro importante veículo americano, como “The Hollywood Reporter”, publicar a opinião deslumbrada de uma frequentadora do festival de Telluride de que lá é possível se deparar com a “filha de Candice Bergen tomando uma limonada enquanto espera o início de uma seção”. Francamente…
Enquanto a isso, a mostra veneziana se destaca pelo predomínio dos filmes de arte e pelas estrelas que não deixam de prestigiá-la por razões sentimentais ou de reconhecimento, até por que muitas delas têm um histórico de belos triunfos por aqui. Al Pacino, por exemplo, abusou da hospitalidade italiana ao comparecer ao red carpet com a namorada a tiracolo para apresentar duas produções que protagoniza: a primeira é “Manglehorn“, dirigida pelo ainda jovem David Gordon Green, em competição pelo Leão de Ouro, e a outra – fora da corrida por prêmios – intitula-se “The Humbling” de autoria de Barry Levinson, cujos maiores sucessos são ainda os dos anos 1980, como “Bom dia, Vietnam” (Good morning, Vietnam, 1987) e “Rain Man” (Idem, 1988).
Com esses dois desempenhos, Al Pacino trouxe a Veneza a sensação de ter tido o privilégio de acolher um verdadeiro “monstro sagrado da interpretação”. Em “Manglehorn” ele recria a vidinha reclusa de um chaveiro viúvo de uma pequena cidade texana, imerso em profunda solidão e atravessado por uma misteriosa e irremovível mágoa. É uma história de gente comum que um dia perdeu um grande amor e que secretamente nutre a possibilidade de reencontrá-lo nas brechas do cotidiano mais rigoroso e sem graça, mas onde ainda reside a possibilidade de renascimento. Um papel perfeito para o tipo de trabalho minucioso e concentrado de Pacino. Já em “The Humbling” – adaptação livre da penúltima novela de Philip Roth – voltamos às agruras dos bastidores do mundo do teatro que foi tão exuberantemente aproveitado pelo filme que abriu de forma bombástica o festival – “Birdman” de Alejandro Iñárritu. Pacino é um velho ator em crise no meio da carreira de uma peça de Shakespeare (sempre ele!), enquanto se envolve com uma garota lésbica, filha de um ator amigo. É mais um estudo sobre o complicado e sofrido ofício de atuar, quase sempre tomado por ondas de insegurança, namoros com o suicídio e incursões na loucura.
As atuações de Al Pacino nessas duas películas têm sido avaliadas pelos críticos presentes em Veneza como uma espécie de súmula e de composto de todas as suas grandes criações do passado, desde Serpico até Scarface, ou até mesmo antes, como o seu papel de outsider no pouquíssimo lembrado “O espantalho” (The Scarecrow), dirigido por Jerry Schatzberg no longínquo ano de 1973 e que – de fato – inaugurou para o mundo a carreira de Pacino. Essa fixação pode não ter agradado a um ator inquieto como ele e que disse que não vai se aposentar tão cedo já nas entrevistas que concedeu em Veneza, mas é compreensível, considerando a força do seu carisma e dos personagens que deixou imortalizado até recentemente, como o detetive que viveu em “Insônia” (Insomnia, 2002) de Christopher Nolan, o seu melhor trabalho nos últimos anos até o aparecimento desta safra dupla.
O campo feminino não pode se queixar de não ter uma representante à altura de Al Pacino em Veneza. Afinal, Catherine Deneuve veio pessoalmente ajudar na promoção de “3 Coeurs” – dirigido pelo veterano e aclamado diretor de “O intocável” (L’intouchable, 2006) Benôit Jacquot – em que atua ao lado da filha Chiara Mastroianni e Charlotte Gainsbourg, a diva de Lars von Trier em “Nymphomaniac”, volumes I e II, cujas versões alongadas e sem cortes do diretor estão sendo exibidas aqui como evento especial. O título, que faz parte da mostra competiva, já entrega o fato de que se trata de mais um melodrama contemporâneo centrado no universo feminino e que tem sido uma tendência do cinema francês dos últimos tempos, o que não surpreende já que é na cinematografia da França em que mais se despontam diretoras. Com esse trio de intérpretes, o objetivo de Jacquot é mesmo o público europeu e seu marcado gosto por complicados triângulos amorosos em que – neste caso – duas irmãs da província francesa disputam o mesmo parisiense (Benôit Poelvoorde). La Deneuve faz a mãe das rivais, em mais um papel em que transborda charme e prova como a idade pode não ser especialmente cruel para algumas mulheres.
Para encerrar ainda no universo feminino – mas detestado pelas feministas –, não deixa de ter a sua importância um fato que colabora na manutenção desta sensação difusa e meio generalizada de crise que se abate sobre os venezianos: apenas três jovens da região vêneta conseguiram chegar à semifinal do concurso de Miss Itália, no próximo dia 12 de setembro. Assim, não há coração e orgulho que resistam.
Marketing de guerrilha & body painting: o vale-tudo para aparecer desestabilizou até o repórter! (Vídeo: Flávio Di Cola)
* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul -, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria
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