*Por João Ker
Depois de ser aclamado na Bolívia e em Berlim, “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” finalmente chega aos cinemas brasileiros neste final de semana. O filme – desdobramento do curta-metragem “Eu não quero voltar sozinho”, sucesso retumbante na internet – trata de diversos assuntos: homossexualidade na adolescência, auto-conhecimento, inclusão de deficientes e relações familiares. Mas, antes de mais nada, é um filme que fala sobre a descoberta do primeiro amor. Léo (Guilherme Lobo) é um adolescente cego que está no ensino médio e praticamente tem apenas uma amiga: Geovana (Tess Amorim). Ambos são socialmente travados e compartilham um mundinho próprio cheio de confiança mútua e carinho em excesso. Tanto que, por vezes, o público se pergunta se não há um romance entre os dois, pelo menos por vontade dela. Mas não é esse o caso. Como jovens tímidos que são, eles sofrem bullying dos colegas de classe que, na frente de todos, colocam apelidos e fazem gracejos com os dois. E é aqui que entra a primeira vitória de Daniel Ribeiro, diretor do filme: ao invés de focar nas dificuldades sociais e na guerra interna que ambos sofrem (principalmente Léo, por sua deficiência visual), o cineasta mostra que piadas colegiais fazem parte do processo de crescimento e que, na verdade, elas não passam disso: blagues maldosas. Claro, a cena em que Léo é derrubado no chão – assim com aquela na qual é chamado de “inválido” pelo bad boy da turma – é emocionalmente pesada e cria aquele desconforto na boca do estômago. Mas, ainda assim, essas imagens são apenas recortes dentro de um quadro maior. E esse assume forma muito mais interessante com a chegada de Gabriel (Fábio Audi).
O clichê do aluno novo que aparece no meio do ano é tão óbvio que chega a ser repetido dentro do próprio filme. Mas Gabriel, com suas complexidades próprias, sua bondade genuína e seus cachinhos arrumados, foge do óbvio e, assim como seus co-protagonistas, ganha quase que imediatamente a empatia do espectador. O rebuliço causado pela sua chegada atinge principalmente Léo: de repente, ele conhece um ser humano que não zomba da sua cegueira, lhe trata bem e o considera como uma pessoa normal, sem o superprotecionismo que ele está acostumado a receber tanto dos pais quanto de Geovana. Gabriel e Léo até dividem um senso de humor apurado e gosto musical peculiar – apesar de um ser fã de Beethoven e o outro de Belle and Sebastian. E, além disso, o novato é um partido tão bom, que desperta ao mesmo tempo o interesse de Karina (Isabela Guasco), a menina mais popular da turma (e, obviamente, a antagonista involuntária da dupla principal), Geovana e Léo. Pronto: o quadrado amoroso está formado e os dramas individuais estão estabelecidos.
A chegada de Gabriel marca a segunda vitória da direção: quando Léo se vê apaixonado pelo colega, não há nenhum estardalhaço sobre sua recém-descoberta homossexualidade, nem por parte do próprio, nem por parte de Geovana. O máximo que acontece é a amiga se sentir confusa, mas já no dia seguinte voltar atrás com sua estupefação. Ninguém – nem público, nem personagens – sabia até então que Léo era gay e, com esse tratamento, a impressão que fica é como se o diretor dissesse: sair do armário é como uma injeção, não dá nem tempo de sentir dor. Óbvio que esse roteiro nem sempre se repete exatamente assim no mundo real, mas, pelo menos, a cena serve como um bom exemplo de como a vida deveria ser: natural e entendível. Pauta da homossexualidade esclarecida, é hora de mover adiante e torcer para a realidade imitar a arte.
No resto do filme, o que toma conta da trama é a autodescoberta sexual de Léo e o avanço de seu romance com Gabriel. Vemos o menino se masturbando enquanto cheira o moletom do amigo e praticando o seu primeiro beijo no vidro do banheiro: situações que fizeram parte da puberdade de todos e que passam longe de ter algum apelo que não seja o romântico. Assim como na única cena de nudez do filme, onde os amigos estão tomando banho em um banheiro compartilhado e, a cada hora, um se sente mais desconfortável do que o outro. Outro momento natural, já que, como qualquer adolescente que enxerga ou não, seja gay ou hétero, eles são inseguros com o próprio corpo e com sua personalidade. Principalmente quando estão próximos: Gabriel sempre esquece o fato de Léo ser cego e vive dizendo coisas do tipo “você tem que ver esse vídeo” ou “vamos ao cinema?”; o outro ri abobado quando escuta a voz do amigo e sente ciúmes raivosos quando o escuta conversando com Karina. O primeiro beijo que, ao contrário do curta-metragem original, parte da iniciativa de Gabriel, demora metade do filme para acontecer e é recebido de forma confusa por ambos. Gabriel chega até a dar a clássica desculpa do “bebi tanto ontem que não lembro de nada”, constrangido pelo incidente e se protegendo de uma possível renúncia por parte de Léo. Depois de idas e vindas, o importante é que, juntos, eles descobrem um novo mundo de possibilidades enquanto aumentam suas próprias autodefinições pessoais. Com Gabriel, Léo vai ao cinema , sai escondido dos pais, fica até tarde na rua, bebe, vai a festas, aprende a dançar e até a andar de bicicleta. Aprende a ser corajoso, a aceitar a própria felicidade e a lidar com as inseguranças pessoais e as extras que aparecem quando se está apaixonado por alguém.
Em uma entrevista exclusiva para HT, Daniel Ribeiro explica que não pretendeu repetir a história do curta e nem continuá-la, mas sim basear-se nela para ir adiante dramaturgicamente. “Poxa, pegar o curta e esticar a história não é interessante. Então, a intenção era surpreender quem já tinha visto, para não chegar na sala de cinema e ter mais do mesmo. A mudança do primeiro beijo, por exemplo, foi algo que precisei adaptar para a história ter vários momentos altos e não ficar maçante.” Apesar de abordar um tema delicado, o diretor não se viu pressionado nem antes, durante ou depois da produção: “Todos os atores são maiores de idade, apesar de interpretarem adolescentes. E homofobia no Brasil sempre vai existir, mas a gente não tem que fugir do assunto. É melhor trazer à tona e discutir do que ignorar e varrer para debaixo do tapete”. Confira abaixo o curta original “Eu Não Quero Voltar Sozinho”.
De maneira geral, “Hoje Eu Não Quero Voltar Sozinho” é o drama juvenil não-ficcional do século XXI, feito para um público que já aceita – mesmo que com um pé atrás – a discussão aberta sobre homossexualidade. Um público que aos poucos, com a inserção do tema como assunto relevante em produções ficcionais corajosas – “Tatuagem” foi um bom exemplo disso – vai se acostumando com o que vê. Além do quê, todos os ingredientes para que o curta seja uma produção bem-sucedida entre o público jovem estão ali: arquétipos de personagens cultuados por adolescentes (a popular, o doidão da turma, o babaca, o novato etc.), cenas de festas caseiras, humor irônico, gírias do momento e por aí vai. É quase uma versão brasileira e retrabalhada de “As Vantagens de Ser Invisível” (The Perks Of Being a Wallflower, de Stephen Chbosky, 2012), com direito a trilha sonora hipster (Los Hermanos, Cícero e Belle and Sebastian marcam presença forte e definem o tipo de adolescentes que o filme quer retratar) e até a uma cena semelhante à clássica sequência do túnel ao som de “Heroes”. Mas isso não apaga o seu valor, apenas o enaltece. O longa tinha motivos de sobra para criar buzz pelas razões erradas: uma historia sobre dois adolescentes gays no ensino médio que ousam tomar banho juntos no vestiário faria o público conservador urrar de revolta alguns anos atrás. Mas, felizmente, ele ganhou atenção pelas razões certas e conseguiu enternecer até a galera que vira o rosto quando vê dois homens se beijando. “Hoje Eu Não Quero Voltar Sozinho” é tudo o que essa nova geração recém-adolescente precisava e não sabia.
“Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” estreia nesta sexta-feira (10/04) em cinemas de todo o Brasil. Assista ao trailer oficial abaixo:
Trailer oficial
Artigos relacionados