*Por João Ker
Em época de diversidade de gêneros e estilos, sempre é bom ver as mídias audiovisuais lidarem com a s minorias, mesmo que em uma história de terror. As analogias e comparações são sempre benvindas, e os números de audiência estão aí para comprovar o tiro certeiro. Graças ao advento da internet, o mundo inteiro pode conferir na noite da última quarta-feira (8/10) a 4ª e tão esperada temporada de “American Horror Story”, a série cult de terror exibida no Brasil pela Fox. Dessa vez, o diretor e roteirista Ryan Murphy (“Glee”) resolveu levar a sério o horror do título e investiu em um dos mais temerosos cenários do imaginário global: o circo de aberrações, com direito à plêiade de tipos bizarros que costumam compor o elenco de quermesses de variedades como esta. Sim, “Freak Show” é o subtítulo dado à nova fornada de episódios que vai tentar, este ano, superar a temporada anterior, “Coven”, um sucesso de ibope e de público, centrada nas bruxinhas malvadas de New Orleans. Mas há algo mais macabro sob esta assustadora lona desse picadeiro do que supõe a vã filosofia dos mestres de cerimônia e gêmeas siamesas: sussurra no ar a ambição muito maior do diretor em elevar o nível da tensão, já que é certo que a atração dirá adeus à Jessica Lange, que afirma que não só deixará o seriado após este ano como pretende se aposentar de vez, o que deverá lhe conferir mais um Emmy ou Globo de Ouro embaixo do braço.
A história se passa em uma cidadezinha chamada Júpiter, no interior da Flórida, no ano de 1953 e mostra um agonizante Circo de Horrores que está com seus dias finais contados. Além de lidarem com toda a tensão da Guerra Fria, os “freaks” também precisam encarar o preconceito da população e a sua falta de interesse no espetáculo, que precisa desesperadamente de dinheiro para se manter de pé. É quando que sua empresária Elsa Mars (Jessica Lange) se depara com sua nova atração e, possivelmente, a tábua de salvação: as irmãs-siamesas Bette e Dot Tattler, vividas por uma Sarah Paulson de duas cabeças.
Ao mesmo tempo em que a maior aberração das imediações ingressa na vida artística, uma série de assassinatos acontece pela região, provocada por um serial killer macabro que, assim como Coringa (do Batman), se veste de palhaço e mantém sorriso fixo no rosto, no caso, uma máscara de pele humana mesmo.
Parece complicado, mas o roteiro ainda traz aquelas histórias paralelas de entidades estranhíssimos, Evan Peters como o Garoto Lagosta, uma espécie de michê-dildo-humano; Kathy Bates como a devota Mulher Barbada; Angela Bassett como a Mulher de Três Peitos e todos os outros vilões que devem surgir ao longo da trama – no próximo episódio já tem Emma Roberts como uma vidente fajuta. Juntam-se ao elenco Michael Chiklis (“The Shield”, “O Quarteto Fantástico”) como o ex-marido de Bates e uma espécie de homem forte dos picadeiros e Wes Bentley, cuja cara de psicopata natural já garante a certeza de alguns sustos, além de Patti LaBelle, a lenda da música cujo maior sucesso é a icônica “Lady Marmalade”.
Além disso, a avantajada Gabourey Sidibe, que chamou atenção na última temporada como a bruxa gordinha negra que acaba arrastando sua asa para a trupe das praticsantes de vudu rivais, comparece novamente na série e a ruiva Frances Conroy, presente na atração desde o primeiro ano e sempre magnética. Balenciaaaaaga!
Fotos: Divulgação
Sim, essa é infelizmente a última temporada de Lange na série, um anúncio que já havia sido feito antes mesmo do início de “Coven”. E parece que essa é exatamente a ideia fixa na cabeça de Murphy, que deve estar tão triste quanto o público em ter que se despedir da sua maior diva inspiradora dos últimos anos (tá, ele trabalhou recentemente com Lea Michele e Julia Roberts, mas, pelos papeis e personagens oferecidos a Lange, fica meio claro certo idolatrismo mais que justificado). Depois de uma mãe negligente (como falar de Constance Lengdon, que conhecemos por tão pouco tempo, mas já considerávamos tanto?), uma freira no comando de um hospício (Sister Jude Martin) e a Suprema Bruxa Toda-Poderosa Fiona Goode, Jessica Lange agora é a atual ringleader decadente e ex-diva dos cabarés alemães Elsa Mars. Pouco se sabe sobre a personagem durante o primeiro episódio, mas o essencial está lá: é ela quem faz o que for necessário para manter o Circo de Horrores em pé, ao mesmo tempo em que é vista como mãe provedora e protetora por seus freaks.
Fotos: Divulgação
“Freaks” (“Monstros”, em português, apesar de aqui a tradução não carregar nem de perto o tom de preconceito e rejeição que a palavra original infere), por sinal, é o nome de uma das grandes referências autodeclaradas pelo diretor. O espírito de comunidade proscrita da trupe de esquisitos, os romances por trás das coxias e a aceitação da bizarrice como algo banal e cotidiano, além do picadeiro, dialogam muito bem com o clássico cinematográfico de 1932 capitaneado por Tod Browning, diretor maldito que concebeu, em 1931, a adaptação definitiva de “Drácula”, a mesma que influenciou todas as outras, com o húngaro viciado em morfina Bela Lugosi à frente do elenco.
O cineasta foi o responsável por eclodir na antiga Universal – na época um estúdio pobre, muito diferente da potência atual – a febre pelos filmes de criaturas malignas que até hoje enche a burra das produtoras de filmes e representa o ganha-pão de muito engravatado da indústria, mas praticamente viu sua carreira declinar a parti de “Monstros”, dada a crueza com que retratou o ambiente das aberrações nas feiras de variedades, causando a rejeição do público. Este longa da MGM – de longe sua realização mais perversa – não foi retirado de exibição, mas , pelas cenas contundentes, foi rejeitado pela plateia, praticamente esquecido por muito tempo, até ser reabilitado como uma obra magna da Sétima Arte, apesar de sua enorme dose de terror grand guignol.
No enredo, a bela trapezista de um circo, Cleópatra (Olga Baclanova), é empurrada para o matrimônio com o líder das aberrações de um circo, mas a trupe descobre que ela se casou apenas para dar o golpe do baú e mutila a bonitinha interesseira, que passa o resto de seus dias como a mulher-galinha. A inspiração de “American Horror Story – Freak Show” nesse baluarte do horror é tão evidente, que falta apenas o refrão de “Você foi aceita/Uma de nós” (na chegada das siamesas ao circo) para quase caracterizar a cópia.
Outra inspiração que, apesar de flanar sobre o mesmo tema, se difere bastante do enredo de “Freaks” é “Carnival Of Souls” (Herk Harvey, 1962). Enquanto o primeiro serve como parãmetro para imprimir o tom de estranheza à temporada, este já arrasta a série para a pegada erótica e sexual que Ryan Murphy sempre acenou em “American Horror Story”, com uma cena difusa de orgia entre as atrações sendo apenas um aperitivo para aquilo que está por vir.
Cena da aceitação em “Freaks”, produção da MGM de 1932 (Reprodução)
Aliás, o erotismo não é a única marca que Murphy trouxe de seus trabalhos anteriores. Além do senso de comunidade, pertencimento e luta das minorias – aqui, representadas pelos deformados artistas circenses, que até os anos 1950 eram considerados párias da sociedade – os números musicais, que em “Glee” já podem ser vistos como enjoativos e repetitivos, dessa vez farão parte constante da série. Já neste primeiro episódio é possível conferir Jessica Lange cantando “Life On Mars”, de David Bowie, com visual andrógino digno de Marlene Dietrich. Sarah Paulson também aparece arriscando “Criminal”, de Fiona Apple, no teaser do segundo episódio e o próprio diretor anunciou no Twitter que Elsa encenará um número de Lana Del Rey (“queríamos escolher apenas uma música para tornar esse sonho realidade, mas é impossível”). Isso, portanto, só aumenta as chances do elenco mostrar sua versatilidade cênica, coisa que Lange andou confessando ter adorado, já que fez algo parecido no número “The Name Game”, presente na segunda temporada, “Asylum”. Antes que a turma do contra reclame dizendo que isso foge completamente ao propósito da série, é preciso considerar que showbizz é peça fundamental do enredo atual, e que o resultado em nada se parece com as irreais apresentações da turminha de Lea Michele e companhia.
Jessica Lange canta “The Name Game” em “American Horror Story: Asylum” (Reprodução)
Possessão demoníaca: Jessica Lange assume ares de Marlene Dietrich e canta “Life On Mars”, o hit de David Bowie – “American Horror Story: Freakshow” (Reprodução)
Com um orçamento maior e motivado pela despedida de Lange, esta nova fornada tem tudo para ser a melhor da série. Claro, a conferir por este primeiro episódio, falta ainda um pouco do terror de verdade, mas nada que treze episódios e um palhaço assassino não deem conta, sem falar na margem de experimentos cênicos que a política atual possibilita, dando espaço até para uma dose muito bem vinda de mutações no estilo “X-Men”. Se depender de números, “Freakshow” já venceu: “Monsters Among Us” (“Monstros Entre Nós”), o episódio de estreia, obteve a maior audiência da história do FX, engajando 10 milhões de pessoas e já garantindo uma 5ª temporada.
E ah, calma que tem mais: Ryan Murphy já anunciou que está desenvolvendo uma série intitulada “American Crime History” e que a primeira temporada se chamará “The People vs. O. J. Simpson”, baseada no famoso caso do ex-jogador de futebol americano e astro do cinema acusado de assassinar sua esposa em 1994. Gostando ou não, o diretor ainda deve continuar a dar sustos pela TV durante mais alguns anos.
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