*Por Heloísa Tolipan
Na cidade histórica de Poços de Caldas, famosa por suas águas termais, no imponente Palace Hotel e o anexo do antigo cassino, que funcionou entre os anos 20 e 40 e está totalmente restaurado mantendo a imponência de um passado, 500 profissionais da área de saúde bucal de Norte a Sul do país e de países da América do Sul e de Portugal se reuniram sob o comando de Fábio Bibancos, presidente da ONG Turma do Bem, para a décima primeira edição do Sorriso do Bem, encontro da maior rede de voluntários do mundo no setor. Além de atender crianças em situação de risco, a Turma do Bem é a idealizadora do projeto “Apolônias”, que volta a dar o sorriso perfeito a mulheres vítimas de violência. O tema do encontro anual foi a busca pela empatia.
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A TdB todo o ano faz uma exposição com as fotos das “Apolônias”, nome dado em homenagem à santa dos dentistas “Santa Apolônio, e os outdoors foram montados na Praça São Bento do Sapucaí para que a população da cidade possa entrar nesse universo tão incrível de resgate de dignidade de tantas mulheres”.
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Os dentistas foram recepcionados por um casal de bailarinos proporcionando o clima de uma cidade repleta de glamour de um passado inspirado no clima europeu. Só um parênteses aqui, Fábio Bibancos acaba de ganhar o prêmio Visionaris por sua iniciativa e a Ashoka, organização mundial sem fins lucrativos, pioneira no campo da inovação social, trabalho e apoio aos empreendedores sociais, que teve uma grande participação na divulgação do trabalho da TdB. Bibancos é Fellows Ashoka e assim integra uma rede mundial de intercâmbio de informações, colaboração e disseminação de iniciativas inovadoras.
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Durante esta semana em Poços de Caldas, os voluntários da Turma do Bem contaram com uma série de palestras sem uma conotação de especificidade na área odontológica, mas, sim, em questões sociais como o excelente encontro com o médico Marco Antônio de Carvalho Filho, professor de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, que atua em seis pesquisas diferentes, entre elas a Metodologia Ativa para o ensino da empatia. O projeto, segundo ele, visa aproximar os alunos de medicina com a realidade dos pacientes, procurando uma aproximação maior e mais afetiva entre médico-paciente.
Em seguida, um fenômeno nas redes sociais, o gaúcho Leandro Karnal, professor e historiador formado pela Universidade Gaúcha do Vale dos Sinos, com doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo, deu prosseguimento ao tema falando para um auditório lotado no antigo cassino do Palace Hotel sobre “empatia, a ética do cotidiano”.
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Entre as dezenas de atividades, workshops, autógrafo de livros com Valter Hugo Mãe, Guilherme Fiúza, Thalita Rebouças e Vânia Ferrari, eu pude ser mediadora da palestra sobre Violência de Gênero entrevistando no palco as irmãs Maria Domitila Manssur e Gabriela Manssur, a primeira juíza e a segunda promotora, integrantes da Comissão de Combate ao Tráfico de Pessoas do Poder Judiciário do Estado de São Paulo e da Comesp, Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário do Estado de São Paulo. Abordamos questões sobre a violência exacerbada no Brasil, o impacto da Lei Maria da Penha na vida das mulheres, como reduzir essa questão da violência doméstica, como as duas irmãs enxergam o machismo em relação aos casos de violência doméstica e outros assuntos como a dificuldade de uma juíza mulher dentro do universo masculino.
Guilherme Fiúza, jornalista e escritor, que iniciou a carreira no Jornal do Brasil ao meu lado, autor de “Três mil dias no bunker”, “Meu nome não é Johnny”, atualmente está lançando o livro “A crise, o impeachment e o futuro” e foi justamente este o tema de seu encontro com os profissionais da saúde oral. Ele fez uma análise sobre as mudanças no país e falou ainda como enxerga a importância do terceiro setor no cenário político atual.
Um dos maiores escritores portugueses, Valter Hugo Mãe veio a Poços de Caldas para falar sobre a importância da afabilidade. Ele, que está lançando o sétimo livro de sua carreira este ano, batizado “Homens imprudentemente poéticos”, é um entusiasta da TdB e pôde ver os resultados de um projeto brasileiro que chegou a Portugal fazendo a verdadeira inclusão social.
Com um evento tão rico e cheio de atividades que combinam motivação e tratamento humanizado aos mais de 400 dentistas participantes, conversei com Fábio Bibancos, responsável por tudo isso, para entender dos bastidores da odontologia brasileira. Em um papo verdadeiro e direto, o dentista e presidente da Turma do Bem contou sobre a escolha de Poços de Caldas como sede do Sorriso do Bem, a situação da saúde bucal da população e sobre o projeto “Apolônias”.
Heloísa Tolipan: Por que a escolha por Poços de Caldas para sediar o evento?
Fábio Bibancos: A escolha pelo local mistura um pouco com a minha própria história, porque eu vinha aqui quando pequeno com o meu avô e meus pais passaram a lua de mel em Poços também. Depois, lendo mais sobre a cidade, eu vi sobre o conceito de saúde do local. No Palace Hotel, onde está ocorrendo o evento, as pessoas tratavam das questões respiratórias e emocionais das 9h às 15h e, depois deste horário, os pacientes eram obrigados a se divertir. Elas tinham que ir para o cassino e para o baile como uma forma de tratamento mesmo. E isso me comoveu muito porque é um pouco como eu toco a Turma do Bem. As pessoas vêm porque sabem que vão trabalhar em algo que lhes dá muito prazer, que é um tratamento para a alma, e depois vão se divertir muito. Eu acho que isso deixa todo mundo com uma sensação leve e gostosa. E é por isso que as pessoas fazem durante um ano inteiro um trabalho voluntário gigantesco porque, no final, sabem que são recompensadas com esse abraço e emoção.
HT: Quantas pessoas estão participando este ano aqui em Poços de Caldas e o que você preparou para elas?
FB: São 480 participantes do Brasil, da América Latina e de Portugal. Durante esses dias, eles passam por um ciclo de palestras, fóruns e seminários. Nesses encontros, nós não tratamos de nada sobre odontologia. Todo o nosso discurso é humanista com a presença de pensadores como Leandro Karnal, Valter Hugo Mãe, juízas da Vara da Violência Contra a Mulher, Thalita Rebouças, Vânia Ferrari e Guilherme Fiuza. São vários palestrantes que vão trabalhar a questão da saúde que envolve também o sorriso e mostrar como se conquista isso. Durante o dia, as pessoas participam desses encontros e à noite, ocorrem festas no palácio. No último dia, nós teremos a cerimônia que irá premiar os melhores trabalhos de 2015.
HT: O que precisa para um profissional ganhar o Oscar de Melhor Dentista do Mundo?
FB: Tem alguns pré-requisitos importantes, mas, principalmente, o município que este médico atende precisa estar equilibrado. Fora que o número de dentistas voluntários que ele conseguiu para agregar à rede dele, o número de procedimentos realizados e a captação de recursos para os atendimentos precisam ter resultados positivos. Neste ano, temos 50 cases que são de chocar de tão incríveis. Um desses exemplos é um dentista de Medellín, na Colômbia, que está vindo pela segunda vez e em um ano conseguiu agregar um time enorme de colaboradores. Outro destaque é um profissional de Salvador que espalhou outdoor por toda a cidade incentivando e divulgando o trabalho. Mas todos esses resultados tiveram um incentivo anterior que foi fundamental para a popularização e a divulgação da Turma do Bem: os jornalistas. Se não fossem eles, com suas características desconfiadas e que investigam a fundo uma história, nós não estaríamos nestas condições de hoje. Por isso que o nome da ONG é Turma do Bem. Não são só dentistas, eu tenho uma rede de colaboradores que participam da montagem deste evento, por exemplo.
HT: Fábio Bibancos é um dos homens mais solicitados no país inteiro. Como você se sente e o que você faz para chamar tanta atenção das pessoas para esse pedido de socorro? Como você vê a questão da saúde bucal no Brasil?
FB: Através da Turma do Bem, as pessoas constatam o quanto esse cuidado odontológico é importante para a população e o quanto é ignorado. Então, os pacientes recorrem à ONG pedindo socorro porque acreditam que este seja um canal para solucionar. Porém, eu tenho um recorte de jovens de 11 a 17 anos e de mulheres vitimas de violência. Mas eu recebo pedidos do país inteiro. Só pela minha rede social, é possível ver e entender aquilo que o país não dá no serviço público. Quem precisa não tem onde recorrer para colocar uma dentadura sequer.
HT: Como você se sente com esta situação?
FB: Eu me sinto frustrado por não conseguir fazer mais e por não ter patrocinadores suficientes para ir além. Mas, a primeira sensação é de raiva do governo.
HT: Como você define e enxerga a questão da saúde bucal do povo brasileiro?
FB: Uma desgraça. Uma pessoa que não estampa um sorriso saudável vai acabar sendo mutilada e não vai ter onde trabalhar porque terá um subemprego. Eu acho que não ter esse atendimento no serviço público é uma loucura. A saúde bucal faz as pessoas trabalharem, serem felizes, terem relacionamentos, não serem agressivas… Nós temos pacientes na Turma do Bem que contam que eram fechados e não se relacionavam por vergonha do sorriso. Um desdentado não vai ser simpático, nem combina. Até existem algumas pessoas que riem mesmo sem dente, mas elas precisam ser muito seguras para se sustentar.
HT: Qual o paralelo entre a saúde bucal do brasileiro e a do mundo?
FB: Não é muito diferente, isso não é uma exclusividade dos brasileiros. A odontologia ficou reservada para as elites. Quando vemos alguma pessoa sem dente, logo afirmamos que é pobre. Assim como uma com sorriso bonito, é tachada como rica ou da classe média. Isso acontece no Brasil, na América Latina, na Europa e nos Estados Unidos. Isso é esteriotipado porque não existe acesso à saúde bucal de qualidade em nenhum lugar do mundo. É claro que em alguns lugares essa situação é melhor, mas não ótima.
HT: Por que ter um sorriso perfeito custa tão caro no Brasil?
FB: Tudo é caro. Desde o profissional ao material, passando pela estrutura e pelos impostos que são pagos para manter aquele consultório que é uma empresa, aumentam o custo dos tratamentos. É difícil segurar o preço final. Existem algumas soluções como os convênios, mas ainda são ineficientes. Prova disso é que não existem planos que a classe média utilize.
HT: Em todos esses seus anos de profissão, o que te fez caminhar para esse lado social tão forte e emblemático?
FB: Quando eu era mais jovem, eu tinha aquele sonho de classe média de me formar, trabalhar, montar a minha clínica e fazer dela um estabelecimento bem sucedido. No entanto, isso tudo aconteceu muito rápido comigo. Eu era muito jovem e já atendia gente importante e tinha uma clínica reconhecida que é onde eu ganho dinheiro. Em um certo momento, eu me tornei o dentista das celebridades. E esse rótulo, ao invés de me fazer bem, me fazia muito mal e me dava um constrangimento. Eu reconhecia que era legal, mas não sabia o que eu poderia fazer com ele. Eu peguei esse poder que me foi dado pela imprensa e joguei para uma atividade na qual eu entendo ser importante e necessária. Quando eu fiz isso, eu também não tinha noção que viraria esse projeto enorme com uma responsabilidade gigantesca e números absurdos, como os 68 mil jovens que a Turma do Bem já atendeu. E isso é muita gente. Mas, ao mesmo tempo, eu também sei que não é nada. Quando eu vejo que tem muito mais gente para atender e ajudar, a minha sensação é de raiva do governo. Não tem um plano governamental que se preocupe com a saúde bucal da população. Eu acho, inclusive, que a própria população tem uma dificuldade de entender que isso é um direito.
HT: E em relação ao lado oposto. O que há de mais satisfatório e gratificante neste exercício?
FB: Hoje, o que me deixa mais feliz é ver que a Turma do Bem consegue reunir dentistas voluntariados com pensamentos completamente diferentes, uns de extrema direita, outros de extrema esquerda, em um mesmo projeto em prol de uma única causa. Ou seja, mesmo com um país polarizado, é possível unir pessoas de raciocínios diferentes em um objetivo comum. Todos eles concordam que é uma obrigação e um direito as pessoas terem um sorriso digno no rosto. Não ter isso é desumano. Então, quando eu vejo esses profissionais aqui em Poços de Caldas ouvindo filósofos e palestrantes falar dessa questão humanista e indo para um lugar comum é o que me deixa mais feliz. Eu vejo que dá para ser um mediador e tradutor de ações boas que todos desejam.
HT: Como é a sensação de ser pai de 68 mil jovens?
FB: Eu nem gosto de pensar nisso. Eu prefiro focar nos outros milhares que eu ainda não consegui atender. Para isso, eu tento achar uma manobra para conseguir multiplicar esses procedimentos que acabam virando uma obsessão.
HT: Como é ser presidente de uma ONG no Brasil?
FB: É uma responsabilidade absurda, principalmente nas contas, que fazem parte dos meus pesadelos. Tudo no nosso país tem picaretagem. Então, para construir uma organização social, ter as contas abertas na internet, fazer um evento sem tirar recursos dos tratamentos das crianças é um exercício intenso. Eu perco mais tempo me justificando do que, efetivamente, fazendo. O país é tão corrupto e as relações de confiança estão tão distorcidas que mesmo eu fazendo tudo certo eu ainda tenho medo do que as pessoas podem falar. Então, o mais difícil de presidir uma organização social é ter a resposta exata das questões econômicas e financeiras. Hoje em dia, tudo é tão errado no Brasil que precisamos ter um exercício e um esforço diário para provarmos que está tudo certo.
HT: O que você tem de feedback do poder público sobre suas ações?
FB: Nenhum. Se eu recebo algum retorno são eles me mandando ficar quieto porque estou enchendo o saco. Quando a gente denuncia algo que não está funcionando em nosso país, nós não somos entendidos como um parceiro do governo. Eu acho que eu atendendo quase 70 mil crianças em uma ONG é um apoio que eu estou dando às autoridades, sejam elas de quem for. No entanto, eles a veem como uma oposição, como uma acusação deles estarem sendo omissos, por exemplo.
HT: E sobre o projeto Apolônias, que atende às mulheres vitimas de violência doméstica?
FB: O nome foi dado em homenagem à Santa dos dentistas, que foi torturada até a morte e teve os dentes arrancados. Quando estávamos discutindo o nome pelo qual batizaríamos o projeto para as mulheres vitimas de violência, nós falamos da Santa Apolônia, apesar de não haver nenhuma ligação com religião. Nós traçamos esse paralelo porque as mulheres que atendemos hoje na Turma do Bem também são de vitimas que perderam os dentes em torturas. Nós temos histórias terríveis de mulheres pobres e de classe média que sofrem violência física primeiro, depois têm seus bens surrupiados e, por fim, acaba perdendo a dignidade por completo. Quando conversamos com essas personagens, o primeiro pedido que elas nos fazem é para consertarmos os dentes delas para que elas possam voltar a usar batom.
HT: Como homem ligado às tendências da moda e de comportamento, você acompanhou que a ultima edição da SPFW trouxe um movimento transformador. Um dos destaques da semana de moda foi o desfile de Ronaldo Fraga, que teve um casting só com mulheres transexuais. E, no Apolônias, você também atende essas pessoas. Como você se identificou nesse momento da moda?
FB: Eu sou dentista e a denúncia que eu trago é um pouco diferente. Para mim, só me interessa a saúde global dela, que inclui problemas cardíacos e diabetes, por exemplo, e não como ela se apresenta ou como ela nasceu biologicamente. O nosso objetivo não é discutir a questão da sexualidade. Eu trato de mulheres que foram vitimas de violência domestica. Se essa pessoa está nessa condição e se apresenta como uma mulher, eu vejo como violência de gênero, seja trans ou cis. Não importa os motivos e nem a opção sexual, ela apanhou porque é mulher. Às vezes eu fico me perguntando que mundo é esse, sabe? Está tudo muito errado. Aonde culturalmente se permitiu chegar nesse lugar? Eu acho que esse paralelo com o que o Ronaldo faz na área dele é maravilhoso, mas é uma coincidência. Eu trabalho com essas mulheres desde o ano passado, agora eu só estou trazendo os resultados.
*Fábio Bibancos é cirurgião-dentista especialista em Odontopediatria, Ortodontia e Mestre em Saúde Coletiva, formado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Com consultório em São Paulo e no Rio de Janeiro, Fábio é autor de “Um sorriso feliz para seu filho” (CLA Editora), “A Guerra dos Mutans”, “Boca!” e “Sorrisos do Brasil”, além de já ter sido eleito Empreendedor Social 2006 pela Schwab Foundation (ligada ao Fórum Econômico Mundial de Davos) e integrante do Fellow Ashoka (uma rede de empreendedores sociais presente em 65 países). Além de assinar uma coluna semanal neste espaço, está à frente do projeto Turma do Bem, a maior rede de voluntariado especializado do mundo: o dentistas do bem.
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