*Por Jeff Lessa
De um lado, a paulista de Taubaté Hebe Maria Monteiro de Camargo Ravagnani, ou, simplesmente, Hebe Camargo, nascida em 8 de março de 1929, considerada a maior apresentadora da TV nacional, e morta aos 83 anos em 2012 coberta de glórias. Do outro, a atriz Valentina Herszage, carioca de 21 anos, que estreou em TV na novela “Pega Pega”, da TV Globo, em 2017, no papel de Bebeth Ribeiro, que a tornou conhecida. O que essas duas mulheres brasileiras tão diferentes e tão distantes no tempo e no espaço têm em comum? O fato de ambas serem Hebe Camargo. A primeira, claro, a original, que marcou presença nos lares brasileiros por 60 anos, idolatrada por gerações de fãs. Valentina por interpretar a diva dos 14 aos 28 anos na minissérie em dez capítulos “Hebe”, da Globoplay, na qual pôde mostrar que está à altura da interpretação da consagrada Andrea Beltrão, que vive a Hebe adulta.
Pelo que se viu na telinha, Valentina cumpre seu papel como a Hebe jovem e pobre na São Paulo da preconceituosa década de 1940 com força arrebatadora. Em um capítulos, a filha mais velha, que dorme no chão em um único cômodo com pais e irmãos, é expulsa de uma sapataria chique, demitida de um emprego na casa de uma parenta rica (com pequenos requintes de humilhação), olhada com desprezo por passageiros de um bonde por conta de suas roupas e seus cabelos de “caipira”, numa São Paulo que começa a se modernizar e internacionalizar em plena Segunda Guerra Mundial. A beleza da interpretação de Valentina é que, apesar de sua personagem ser humilhantemente “posta em seu lugar”, ela mantém um ar de esperança natural no rosto e nos olhos que cativa o espectador e permite antever a trajetória grandiosa que está por vir.
Do lado de cá das câmeras, isso se traduz em trabalho dobrado pois, diferentemente do que costuma acontecer, o filme não foi feito a partir de um vasto material filmado para minissérie: o longa-metragem veio antes. Ou seja, não foi necessário apenas editar e aproveitar as partes sobre a história mais recente da vida da apresentadora, e sim fazer todo um trabalho de construção do passado de Hebe para criar a personagem jovem e seu universo. Uma coisa, porém, já estava pronta: “Minhas sobrancelhas são grossas como eram as dela no começo da carreira, não foi preciso mexer em nada”, brinca a atriz. “Quando ela começou a pintar os cabelos de louro, manteve as sobrancelhas grossas e escuras, acredita? Já os cabelos da primeira fase se devem a muito aplique e muita peruca. Os meus são curtos e lisos demais, nada pega”.
Valentina continua: “O único vídeo que sobrou dela morena é de ‘Noite de Luar’, com o Ivon Cury’. Não tínhamos outras referências morenas, só as louras. Precisamos de quatro meses de preparação de corpo e a Andrea (Beltrão) me acompanhou nisso. Como o longa foi filmado antes, era importante que eu soubesse como fazer os trejeitos, o sotaque, os gestos que ela fazia como a Hebe madura. Exercitei muito o sotaque. E, como soube que ela era intérprete das canções de Carmen Miranda, ouvi muito a cantora”.
Para compor a Hebe jovem com perfeição, as duas atrizes trabalharam juntas com entrega e generosidade. Valentina e Andrea criaram listas de ações físicas e gestos que deveriam fazer exatamente iguais, para que as Hebes mantivessem a coerência. “Hebe usava muita maquiagem. Então, quando chorava, tinha uma maneira bem característica de limpar os olhos com o lenço para não borrar a maquiagem. Treinamos até ficar igual ao que Andrea faz no longa. Também tem o jeito como ela segura o volante, com as mãos um pouco mais para cima, a forma de falar, as mãos meio duras, sem movimentos fluidos quando gesticula, a forma de passar o batom, a maneira como segura o bebê, a mão no rosto do pai… Foi ideia nossa com a Marina Salomon, que fez a preparação de corpo – conta Valentina. – “A coisa mais difícil para mim foi a gargalhada. Eu não sou expansiva e tinha de gargalhar como a Hebe, tapando a boca. E sem gargalhada não existe a Hebe, né?”
Outra curiosidade: as atrizes liam o texto juntas para ficar no mesmo ritmo e com as mesmas pronúncias. Além disso, criaram listas de palavras que deveriam ser pronunciadas com o “selo Hebe Camargo de qualidade”. “Uma das palavras mais emblemáticas era ‘maravilhoso’, que ela dizia mais ou menos assim: ‘maravilhôuso’. ‘Isso é maravilhôuso!!!’. Tinha também o ‘horrorôuso’. E, claro, ‘graciiinha!!!’”, diverte-se Valentina. “Essa atenção aos detalhes e a preparação de corpo trazem muita tranquilidade para uma atriz”.
Valentina Herszage estreou como atriz no papel da estudante Bia, no longa “Mate-me por Favor”, premiado nos festivais de Veneza e do Rio de Janeiro em 2015, que chegou aos cinemas brasileiros em setembro de 2016. Primeiro longa-metragem da cineasta Anita Rocha da Silveira, o filme retrata o cotidiano, os desejos e as aflições de um grupo de jovens da Barra da Tijuca, bairro de classe média alta do Rio. Atormentada por notícias sobre uma série de ataques de um assassino de mulheres, Bia, de 15 anos, passa a sentir um interesse mórbido pela morte. “Fui surpreendida com o prêmio de melhor interpretação da crítica independente do Bisatto D’Oro do Festival de Veneza, ganhei melhor atriz no Festival do Rio e menção especial de melhor atuação do júri oficial do Janela Internacional de Cinema do Recife”, revela Valentina.
Desde que interpretou Hebe, a atriz fez mais dois longas. Em “O Homem Onça”, ela interpreta a filha de Silvia Buarque e Chico Diaz, o protagonista, que tem vitiligo. Em “Raquel 1.1”, é a protagonista do longa, dirigido por Mariana Bastos, que trata de intolerância religiosa: “Interpreto uma menina evangélica que descobre passagens terrivelmente machistas da Bíblia”, adianta Valentina, lembrando que também faz uma participação no filme “The Seven Sorrows of Mary”, do português Pedro Varella, sobre jovens que foram sequestrados na Lapa e como a justiça foi rápida para eles. “’O Homem Onça’ estreia em 2020. Os outros ainda não sei quando chegam ao cinema”.
Jovem e já muito bem-sucedida, Valentina Herszage conta que suas personagens a afetam pessoalmente. Com Hebe foi assim: “Ela foi muito abusada pelos homens e isso mexeu muito comigo, serviu como uma espécie de lente para enxergar a vida. Ela demorou para se casar numa época em que as mulheres se casavam muito cedo. Ainda assim, conseguiu se construir, apesar de não ter sido muito bem-sucedida como cantora. Já era apresentadora, mas abria seu programa cantando. Um dia, ouviu pelo ponto eletrônico alguém dizendo algo como ‘Quando vai desistir dessa cantoria? É péssima’. Ficou muito magoada e nunca mais cantou”, revela a atriz. “O pai foi muito importante na vida dela, pois foi quem disse que seria o que quisesse na hora que quisesse. Também era um homem à frente de seu tempo”.
Valentina se preparou para ser o que quisesse – e está colhendo os frutos de seu trabalho intenso. Durante 13 anos, a jovem, que mora com a mãe no Humaitá, estudou sapateado, teatro, dança, canto e circo na Catsapá Escola de Musicais, instalada num casarão da Rua Frei Leandro, no Jardim Botânico. “Eu saía da Sá Pereira e, depois, da Escola Parque, e ia direto para lá. Só ia embora para casa às nove e meia da noite. Ficava por lá sem pretensão, porque gostava”, conta. Parece que a formação completa se pagou com o sucesso. Vamos esperar pelo que está por vir.
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