*Com Jeff Lessa
Os gestos são de uma lady, a voz é marcante e o talento… ah… o talento é excepcional. Nathalia Timberg. Nome forte. Verdadeira chancela nas artes brasileiras. Hoje, dia 5 de agosto, ao completar 90 anos, a grande dame nos faz pensar imediatamente em palavras como inteligência, sensibilidade, coragem, sabedoria, vigor, elegância, gentileza, entrega e beleza de aura. São magníficas seis décadas e meia de carreira. E Nathalia recebeu as homenagens antecipadas pela data no local mais significativo: o palco – onde reestreou, no Rio, a peça “Através da Iris”, de Cacau Hygino, com direção de Maria Maya. E a magistral atriz, que nos brinda ainda com sua atuação na novela “A dona do pedaço”, das 21h, na Globo, é tema do documentário que começou a ser rodado, no fim de semana, assinado por Marcus Montenegro, com direção de Maria Maya e produção da Cinegroup.
Uma trajetória profissional que já começou vitoriosa quando, com 22 anos, ganhou bolsa de estudos do governo da França, país onde frequentou cursos e aprimorou sua arte. Um de seus professores foi o ator Jean-Louis Barrault (1910-1994), considerado um dos grandes nomes da Comédie Française. Uma vida inteira Nathalia entregou-se de corpo e alma à arte de interpretar. E sempre plural. Entrou para a TV em 1956, na Tupi, onde participou do “Grande Teatro Tupi”. Trabalhou no Teatro Brasileiro de Comédia, o prestigioso TBC. Fez parte do elenco de novelas em diversas emissoras de TV e, mais recentemente, causou impacto ao viver um casal gay com Fernanda Montenegro, em “Babilônia”, de Gilberto Braga e Ricardo Linhares. Por tudo isso (e tanto, tanto mais), Nathalia tornou-se um ícone, embora faça ressalvas ao título: “Quem se autoconsidera ícone deveria procurar um médico!”, diz, divertida. A sua versatilidade é tamanha que nunca ficou atrelada a um tipo específico. “Já interpretei da imperatriz à mulher de pescador”, afirma, acrescentando, com mais seriedade na voz: “O ator se usa como instrumento. Você se apresenta ao ser humano para fora com o que é por dentro. Tem que incorporar a alma do ser que vai interpretar. Tem muitos atores que interpretam sempre o mesmo personagem, só mudam o figurino”.
Nathalia deu alma e voz a mulheres completamente distintas – que, juntas, formam uma espécie de painel do ser feminino entre a primeira metade do século 20 (sua primeira experiência como atriz se deu no cinema, quando tinha apenas seis anos, com uma participação especial no filme “O grito da Mocidade”, de 1937) ao século 21. As ‘Mulheres de Nathalia’ (podemos chamar assim à galeria extensa de vidas que atravessaram sua carreira), seja no palco, no cinema ou na TV, são vividas sempre com verdade e garra. E é exatamente por isso que se tornam eternas.
Uma dessas mulheres rendeu à atriz seu primeiro Prêmio Molière. Foi por sua atuação impressionante como a atriz britânica Beatrice Campbell na peça “Meu Querido Mentiroso”, de Jerome Kilty, em 1965, quando atuou ao lado de Sergio Britto. Curiosamente, o segundo Molière veio por conta do mesmo texto e da mesma personagem da vida real – dessa vez em 1988, repetindo a dobradinha com Sergio Britto e dirigida por Wolf Maya no Teatro dos 4. A peça fez enorme sucesso e ficou em cartaz por oito meses e meio, entre maio de 1988 e final de janeiro de 1989, algo que dificilmente se repetiria hoje.
Outro sucesso também foi inspirado por uma mulher fantástica da vida real. Quem a viu interpretando Simone de Beauvoir em “A Cerimônia do Adeus”, de Mauro Rasi, em 1987, não esquece. Não há mesmo como esquecer: além da semelhança física impressionante com a filósofa francesa, ela emprestava imensa empatia à personagem, que surgia, ao lado de Jean-Paul Sartre, nos “sonhos acordados” do alter-ego do autor. A peça ganhou elogios rasgados da crítica e valeu o Mambembe de atriz coadjuvante para a dama. Que, é óbvio, também interpreta as mais incríveis mulheres fictícias, como a senhora judia Daisy, de “Conduzindo Miss Daisy” em que atuou ao lado de Milton Gonçalves e foi dirigida em 2001 por outra grande dame, Bibi Ferreira (1922-2019). Mais uma mulher forte para a galeria da atriz.
Se juntarmos às mulheres vividas nas telas de cinema em filmes como “Viagem aos Seios de Duília” (1964), “Dedé Mamata” (1988) e o hilariante “Vendo ou Alugo”(2013), os tipos se multiplicam em escala geométrica.
Recentemente, a atriz Susana Vieira lembrou de um episódio ocorrido durante as gravações da novela “A Sucessora”, exibida pela Globo em 1978, em que ela era a mocinha, casada com o viúvo vivido por Rubens de Falco (1931-2008), e Nathalia era a vilã, a governanta que fazia tudo para impedir o casal de ser feliz. Susana contou que Nathalia deveria apertar um buquê de rosas com força, num momento de ódio pela patroa. “Ela recusou truques. Pediu que as flores viessem com espinhos. As mãos sangraram mesmo, é sangue real o que se vê na cena”, disse Susana. Talento, coragem, rigor, entrega…
O que espantou Susana é algo que Nathalia encara com naturalidade: “Não entendo barreiras em arte”, observa. Para viver a personagem real da designer de interiores nova-iorquina Iris Apfel, famosa por ser um monumento fashion aos 97 anos (ela também nasceu em agosto e completa 98 neste mês), Nathalia mergulhou fundo na vida da designer, como é de seu feitio. “Eu só a conhecia como qualquer pessoa bem-informada conhece. Quando o Cacau Hygino me entregou o texto de ‘Através da Iris’, eu achei a figura muito interessante”, conta. “No momento em que me debrucei sobre ela, depois de ler a biografia, percebi a imensa liberdade dessa mulher. Basta ver o que ela veste. Ela mistura tudo, Jacques Fath, Dior… Não se importa com o que os outros vão pensar”.
No palco, Iris/Nathalia dá uma entrevista e comenta diversos assuntos sem papas na língua. As falas se misturam a imagens de Iris projetadas sobre o cenário, que vai se desmontando aos poucos, até percebermos que se trata de um estúdio de gravação. Uma característica da personagem que Nathalia trouxe para sua vida foi, sem dúvida, a capacidade de ver beleza em meio ao caos, de extrair elegância de onde menos se espera: “Ela é capaz de chegar num marché-aux-puces (mercado de pulgas) e enxergar peças que vão harmonizar divinamente umas com as outras. Eu não tenho essa capacidade de fuçar, tudo se embaralha (risos). Foi isso que fez dela um ícone da moda sem jamais ter sido estilista. É muito difícil acontecer”.
Na intimidade, a atriz costuma ser mais despojada. No quesito moda, por exemplo, se diz livre. “Não gosto de ser escrava. Qualquer ser humano que não ande pelado pelas ruas vai, de alguma forma, absorver alguma tendência, não é?”, diverte-se. A gente fala sobre os óculos enormes que costuma usar, tão fashion quanto os de Iris, e a resposta é uma joia de bom humor: “Esses óculos são tão antigos que já estão completamente craquelês por dentro. Fiz cirurgia para enxergar melhor e só uso para corrigir pequenas falhas. São apenas úteis”.
Nathalia também mostra sua personalidade contrária a todas as formas de preconceitos e opressões ao comentar sua personagem na novela das 21h da Globo, “A Dona do Pedaço”. Ela vê em Gladys uma mulher do passado, com o modo de pensar e viver de uma certa “aristocracia” brasileira. “A Gladys tem características de um determinado estrato social. A visão dela é centrada em castas, e isso ainda é comum por aqui”, lamenta. E Nathalia, acredita que haja famílias que ainda criem filhas para agirem e pensarem como Gladys em pleno 2019? “Acredito sim. Infelizmente é mais comum do que se pensa”, frisa.
O tal sistema de castas à brasileira talvez seja responsável por uma decepção recente. Amiga por décadas da atriz Ruth de Souza, que morreu dia 28 de julho aos 98 anos, no Rio, Nathalia gostaria de ter encontrado mais pessoas interessadas em prestar homenagem. “Não compreendo barreiras étnicas, não entendo esse obscurantismo. E a Ruth passou por muita coisa. Ela foi uma das primeiras atrizes a lutar para o ator negro poder realizar sua obra”, rememora.
Admiradora de quem não se conforma com “tudo isso que está aí”, Nathalia manda um recado – uma tecla na qual vem batendo há tempos, especialmente quando aconselha aos jovens que procurem aprender a falar a língua portuguesa corretamente e se aprofundarem nos estudos. “Enquanto não tivermos a consciência de que a educação é decorrência da cultura, e não o contrário, enquanto não levarmos isso a sério, vamos sofrer sérias consequências. A formação do brasileiro se fez sucata. Isso resume. Quando engrossarmos essa falange, talvez consigamos mudar esse estado de coisas. Isso começa cedo”, dispara.
Os 90 anos encontram dame Nathalia Timberg em grande forma. Bela, serena, sempre franca. Em uma entrevista recente ao jornalista Pedro Bial, ao lado da pianista Clara Sverner (com que esteve no palco no espetáculo “Chopin ou o Tormento do Ideal”, consagrado a Frédéric Chopin (1810-1849), associando música e poesia, interpretada pela atriz), ela disse, categórica: “Eu detesto algo que está muito em voga: ‘da melhor idade’ (…) Em todo caso, o que acontece é que as pessoas de mais idade ficavam guardadas em casa. Elas abdicavam da vida antes dela terminar. Se a máquina começa a falhar, é feito um carro. Tem que fazer uma boa manutenção”.
Nathalia parece levar a vida com extrema sabedoria. Não aceita injustiças e mantém suas posições com firmeza. Também não teme um mundo cada vez mais digitalizado e impessoal. Aprecia o que há de bom, mas encara este universo de forma crítica: “Já se disse que o homem sofre da maldição de inventar coisas incríveis para serem mal-usadas, não é? Quem pensou na divisão do átomo não estava visando à bomba atômica. Qualquer veículo que se proponha a lidar com comunicação, e a internet é um deles, precisa ser usado com o máximo de responsabilidade. Seria preciso atuar com inteligência…”.
Nossos parabéns, Nathalia Timberg.
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