*Por Brunna Condini
No meio de tantas perdas e desesperança causadas pela pandemia da Covid-19, a arte tem salvado. E representado. Tanto levantando temas, quanto histórias que não devem ser esquecidas, até para não se repetirem. A atriz Lorena Comparato também ‘representa’, já que só integra projetos em que acredita, como no longa-metragem de animação ‘Meu Tio José’, de Ducca Rios. Na produção baiana, a atriz empresta sua voz assim como Wagner Moura e Tonico Pereira. A animação vai competir no Festival Internacional de Cinema de Animação de Annecy, na França – o evento é o maior e mais importante do mundo no segmento e será realizado entre os dias 14 e 19 – com a história contada do ponto de vista de uma criança de 10 anos, a mesma idade que Ducca tinha na época que seu tio, um ex-guerrilheiro, foi assassinado na ditadura. ” Na minha vida, eu já ouvi que eu sou a mulher perfeita, só tinha um defeito: ser politizada demais. Já me senti super mal com esse tipo de comentário, mas hoje vejo: ninguém é perfeito, nem quero ser, e pessoas que dizem isso são ignorantes, desinformadas e horripilantemente neutras”.
Lorena conta que o encontro com o diretor se deu através do seu pai, o escritor e roteirista Doc Comparato, e que a personagem é uma espécie de reverência aos educadores que ensinam e acolhem Brasil afora. “Interpreto a voz da professora Adriana, que foi realmente uma grande homenagem que o Ducca fez aos mestres de sua vida. E lembro também de ter tentado canalizar todas as minhas maravilhosas mestras e mestres para dar vida a essa imagem acolhedora e incentivadora do conhecimento. E minha mãe, Leila Mendes, também foi referência”.
“Ela é uma excelente fonoaudióloga, mãe e professora. Eu sempre fui nerd, queria ser aluna exemplar, de sentar na primeira fila. Sempre admirei demais todas as minhas professoras e hoje estou cursando mestrado na Escola de Artes Célia Helena para, em breve, ser professora também. Já dei aulas de teatro e acompanhei algumas professoras como assistente, mas meu sonho de dividir conhecimento com as outras pessoas ainda é muito amplo e espero poder exercê-lo em breve. Agradeço imensamente por todas as pessoas que me influenciaram a sempre estudar muito, ser perseverante, não desistir e fazer tudo com amor e doçura”.
Baseado em fatos reais, ‘Meu Tio José’, é um filme ‘resposta’ para uma realidade dura, que deixou cicatrizes na família do diretor. Historicamente, José, tio de Ducca Rios, permaneceu exilado durante 10 anos, antes de retornar ao Brasil, onde foi morto em um crime com evidências fortes de motivação político-ideológica e que permanece sem solução. No longa, o conflito se dá a partir de uma redação que uma criança tem que escrever na escola, mesmo dia em que seu tio sofre o atentado. Daí em diante, o menino tem que lidar com a tristeza de sua família e com a angústia de ter que cumprir a tarefa pedida pela professora. Ao falar do filme, Ducca também aborda sequelas para a família de um crime sem solução: “São as que ficam quando um ente querido é brutalmente sacado do convívio familiar. Minha avó ficou anos chorando a morte do filho e eu nunca me conformei com a não existência de um desenlace para essa história. Hoje, com 48 anos, transformo a experiência pessoal em filme como uma resposta à falta de respostas”.
Até hoje vivenciamos situações de crimes brutais, que não foram solucionados em nossa sociedade, como recentemente, o caso Marielle Franco. Para Lorena, viver em uma sociedade que pressupõe a impunidade é sensação de ‘vergonha’ pelo coletivo. “Eu realmente não tenho palavras para dizer o quão revoltada fico com todas essas situações. Seja uma reparação histórica, que nunca chegou ou uma falta de cultura e conhecimento de pessoas que cismam em permanecer cegas. É claro, que estudando o mínimo de história, dá para perceber que o que acontece é uma horripilante luta pelo poder e uma falta de empatia grotesca dos mais gananciosos, passando por cima dos mais vulneráveis. Mas a que custo? A que preço? A verdade é que muitos desses casos já foram solucionados sim, o problema é que os bandidos poderosos tem costas quentes e no Brasil, infelizmente, isso ainda quer dizer muito”.
“Mulher perfeita, mas política demais”
E quando fala da pandemia também sobra indignação à atriz de 31 anos, que não compreende a falta de empatia de quem pode, mas não mantém o máximo de distanciamento social. “Tento permanecer tão isolada quanto posso desde o início da pandemia, mas fiz algumas viagens pontuais a trabalho. Viajo toda paramentada, com muitas máscaras, face shield e álcool sempre, e quando chego no lugar, encontro o mínimo de pessoas e com todo cuidado. Acho que nós temos que praticar as medidas de saúde até o nosso limite. Mas não tem como falar para alguém que precisa trabalhar para poder comer, que ela precisa se isolar. Deveriam haver medidas para ajudar as pessoas com mais necessidade. Tenho medo de contrair a Covid-19, medo das reações e consequências. Ninguém sabe ao certo do que esse vírus é capaz. O que me faz sair de casa é a necessidade básica – mercado e médico – e trabalho”.
Chegou a perder alguém para o vírus? “Muitas pessoas à minha volta pegaram Covid-19 e cada uma teve uma reação diferente. Isso é medonho. Tem gente que pegou há muito tempo e tem consequências até hoje, como falta de ar, perda de paladar, dor no coração e perda de memória. Perdi pessoas próximas, queridas, da minha família, e fico extremamente revoltada quando dizem que o vírus não existe. Fico indignada quando me deparo com pessoas negacionistas, mas tento manter a calma e a paciência pois acredito no poder da palavra e da comunicação”.
O que acha de posturas como a do discurso de Juliana Paes estes dias, que defendeu o direito à neutralidade de posicionamento de lados políticos, diante do que está acontecendo em nosso país? “Eu amaria se na vida existisse o certo e o errado claros, mas acho que é muito difícil ter um veredito fixo, tudo depende do contexto. Porém, no mundo desequilibrado e desigual em que vivemos, com todas as circunstâncias e contextos, acho vergonhoso ser neutro. Estou revoltada com o momento político mundial que estamos vivendo. Há circunstâncias em que pode parecer impossível escolher um lado, mas a eleição de 2018 não foi isso. As opções eram muito claras e eu teria vergonha se tivesse votado nulo”.
E completa: “Acho que passamos muito tempo nos abstendo da política e dando desculpas de “eu não estudei o bastante”, “eu não sei”, “eu não sou especialista no assunto”. Eu falei isso boa parte da minha vida e tenho vergonha. Resolvi me informar, ler, perguntar para pessoas que confio e que são especialistas, o que elas acham. Se política e educação sexual – como se proteger de assédio e gravidez indesejada, por exemplo – fossem matérias obrigatórias nas escolas, o mundo seria totalmente diferente. Eu sempre digo: na vida tudo é política. O que você come, gosta, usa, pensa. Agora, eu tomei as rédeas do meu conhecimento e sei que não sou especialista, mas tenho opinião, sim. Acho que muitas vezes não temos coragem de nos posicionarmos e achamos extremos quem se posiciona, mas a verdade é que se deixarmos só quem se coloca escolher o nosso futuro”.
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