Karim Aïnouz fala da trilogia do premiado thriller erótico ‘Motel Destino’ e critica estereótipos no audiovisual


“Acho importante, como alguém que veio do Ceará, que tenhamos um retrato do Brasil, que é um retrato do que o país é. E, ao longo dos anos, construímos, especialmente através das novelas, um retrato do que o Brasil não é. Ele não é branco, não fala ‘carioquês’. O Brasil é muito mais colorido que tudo isso. Temos produzido um cinema de qualidade e podemos cada vez mais”, diz o diretor. Após grande repercussão em Cannes, o thriller erótico protagonizado por Fábio Assunção, Iago Xavier e Nataly Rocha, estreia dia 22 de agosto em circuito nacional. Aïnouz bate um papo com o site sobre sua motivação para continuar fazendo cinema hoje, e também a respeito da ideia de lançar mais dois filmes com a mesma pegada de ‘Motel Destino’, fechando uma trilogia de ode ao cinema genuinamente brasileiro, explorando o Nordeste

*Por Brunna Condini

O filme ‘Motel Destino‘, de Karim Aïnouz, que estreia no próximo dia 22, deixa uma sensação em nós após a sessão, que podemos chamar de ‘gol’ no cinema: encantamento puro. Daqueles que até esquecemos que acabamos de ver um filme. E é aí que a magia da Sétima Arte acontece. Conferimos o thriller erótico protagonizado por Fábio Assunção, Iago Xavier e Nataly Rocha, aclamado no Festival de Cannes deste ano e também no de Gramado, e conversamos com exclusividade com Karim. “Talvez esse tenha sido o filme que eu tenha tido mais prazer em fazer, foi lindo, um tesão”, diz. Inclusive, ‘tesão’, é uma palavra que não sai da boca de Aïnouz, ao falar do cinema e do longa que conta a história de uma mulher (Nataly) em um relacionamento abusivo com um ex-policial (Assunção), dono do motel do título, que vê a sua vida mudar após abrigar um jovem (Iago) que foge do bando criminoso do qual fazia parte.

“É sobre um romance de uma cearense com um menino afro indígena, personagens que vemos pouco no cinema brasileiro e trouxemos para um protagonismo, então foi um tesão. Lembro que quando eu era pequeno no Ceará (ele nasceu em Fortaleza), ficava olhando para muitos meninos e meninas parecidos com o Iago e me perguntava porque não estavam na novela das oito”, diz o diretor. “E sobre personagens como o do Fábio, convivemos muito neste país, mas colocamos pouco na tela desta forma. Esse macho decadente, meio ridículo, meio agressivo, mas vulnerável também. Colocamos esse sulista no Nordeste, em uma espécie de ‘vingança’ (risos)”.

Acho importante, como alguém que veio do Ceará, que tenhamos um retrato do Brasil, que é um retrato do que o país é. E, ao longo dos anos, construímos, especialmente através das novelas, um retrato do que o Brasil não é. Ele não é branco, não fala ‘carioquês’. O Brasil é muito mais colorido que tudo isso. Temos produzido um cinema de qualidade e podemos cada vez mais –  Karim Aïnouz

Karim Aïnouz fala da trilogia de ‘Motel Destino’, lançado no próximo dia 22, e reflete sobre sua motivação de continuar fazendo filmes (Foto: Bob Wolfenson)

Motel Destino’ é o primeiro longa de uma trilogia que Aïnouz pretende lançar. Ainda sem data de estreia, ele também trabalha nos filmes ‘Trevo de Quatro Navalhas’‘, um faroeste nordestino ambientado em um posto de gasolina, em que uma gangue de travestis comete crimes a fim de buscar financiamento para cirurgias de adequação sexual (personagens de ‘Motel’ aparecem neste segundo filme). Já ‘Lana Jaguaribe‘, que fecha a trilogia, aborda o universo dos matadores de aluguel, através uma pistoleira que parte em busca de vingança contra homens responsáveis por um trauma causado nela e em sua irmã. “Fico pensando muito no Almodóvar (Pedro Almodóvar, cineasta espanhol), que faz um cinema comercial, mas que cheira à Espanha. Então, é essa a missão que tenho com essa trilogia, mas filmando mais no Ceará, no Nordeste. Desde o ‘Céu de Suely’ (2006) que eu não voltava para gravar tanto no por lá. Filmei um pouco em ‘Praia do Futuro’ (2011). Então foi muito gostoso fazer este filme neste momento do Brasil. Fiquei com vontade de continuar”, divide.

Karim Aïnouz no set de 'motel Destino' com Fábio Assunção (Divulgação)

Karim Aïnouz no set de ‘motel Destino’ com Fábio Assunção (Divulgação)

“Foi tão bom ter voltado para o Ceará para filmar, trabalhar com o elenco de lá. ‘Motel Destino‘ é feito em película, então tem uma cara, e é um filme de gênero. Fiquei com vontade de fazer também um western no Ceará, um filme de vingança. Porque eu acho que seria tão bom que o cinema brasileiro, fosse um cinema com a marca autoral, mas fosse um cinema de público, dá o desejo da trilogia também. Quero continuar fazendo cinema também porque acho que tem muitas histórias que deveriam ser contadas e não foram…então acho que isso é mesmo uma espécie de missão. Me dei muito conta disso na época do ‘A Vida Invisível’ (2019). Como nunca haviam contado a história daquelas mulheres? Elas são sobreviventes de guerra…o que elas viveram no machismo é algo muito sério. O que me dá tesão de fazer cinema é isso, encontrar essas histórias, esses personagens que nunca falamos, e nunca foram celebrados, e celebrá-los”. E completa:

Continuo contando histórias, também porque o cinema é capaz de fazer certas reparações históricas. E faz isso com muita graça – Karim Aïnouz

De onde tudo nasce

O diretor revela como surgiu a ideia de fazer ‘Motel Destino‘, uma história tão original, que conta com a colaboração do roteirista cearense Wislan Esmeraldo para o desenvolvimento. “Este filme dialoga com um monte de outros que fiz, mas é algo novo. E pop. Eu me inspirei bastante na pornochanchada e no cinema policial. Posso resumir ‘Motel Destino’ como um thriller erótico, mas ele é, antes de tudo, uma história de amor. É um filme muito livre e fruto de um momento que estamos vivendo no Brasil, que é uma retomada da vida. Acho que depois de tudo o que passamos nos anos da pandemia, com aquele governo horroroso, é um filme com vigor, com fome de viver”, traduz.

No set de 'motel Destino': "É um filme livre, cheio de vigor. E pop" (Divulgação)

No set de ‘motel Destino’: “É um filme livre, cheio de vigor. E pop” (Divulgação)

“Lembro que toda vez que eu assistia um filme policial na televisão, não dormia, então sempre quis fazer um filme tenso, onde eu tivesse o espectador nas mãos…também sempre fui muito fã do cinema americano de década de 40, 50, o cinema noir, onde o crime está ali, não para falar de violência, mas de um estado de coisas do mundo. Além de falar de personagens com moral duvidosa, meio ‘fraturados’, que são muito humanos, que a gente conhece, mas que vê pouco no cinema. Quis fazer um suspense, um policial, mas também que tivesse uma trama clara, onde pudesse abordar temas maiores. É uma história improvável entre uma mulher mais velha, em uma relação abusiva, e um menino em fuga. Pensei nessa narrativa com dois personagens que teriam poucas chances de se encontrar, mas quando se encontram, acontece algo muito forte entre eles, que torna tudo ainda mais potente”.

É um filme tesudo e colorido, acho tão importante retomar essa energia que às vezes temos a sensação que o cinema perde. E tem uma coisa também de cinema no Brasil ser muito condenado a falar do real, queria muito fazer um filme em que ficássemos falando do filme. E que converse com o cinema americano, mas que é nosso. Queria um filme para falar da história e não das pautas – Karim Aïnouz

"Queria um filme para falar da história e não das pautas" (Foto: Bob Wolfenson)

“Queria um filme para falar da história e não das pautas” (Foto: Bob Wolfenson)

Curiosidades: contém spoiler!

O diretor compartilhou conosco algumas curiosidades por trás das câmeras. “Fizemos um plano de filmagens, que a primeira cena que filmamos foi aquela do Elias com o Heraldo na praia. Onde Elias o confronta, dá um beijo nele e tal. Foi uma das cenas mais difíceis dramaturgicamente, de interpretação, na beira daquela falésia. Bom, essa foi a primeira cena que fizemos, e a primeira cena que o Iago fez no cinema, ele nunca tinha feito um filme antes. E estava em um set com o Fabio Assunção, fazendo talvez a cena mais difícil do filme, que geralmente se filma mais para o final, depois do ator ter passado por todo o processo. Então foi muito interessante entender tanto a potência de um ator, quanto de outro”, revela.

"É um cinema de gênero, para acabar com essa ideia que o nosso gênero é o cinema brasileiro" (Divulgação)

“É um cinema de gênero, para acabar com essa ideia que o nosso gênero é o cinema brasileiro” (Divulgação)

Karim Aïnouz também observa: “Tem uma coisa de bastidores, muito maravilhosa, que acho que seria o pesadelo da extrema direita. Você chegava no set e basicamente eram mulheres, pessoas não-binárias, pessoas jovens. Havia um frescor de forma geral na equipe, que se alguém da extrema direita entrasse ali provavelmente teria um ataque cardíaco…e existia uma alegria nas relações da equipe com o elenco e vice-versa, era bonito de ver”.

E exalta o processo: “O Fábio foi de um mergulho incrível. Apesar da cidade ser de beira de praia, ele ficou em uma casa cercada de muros e nunca foi à praia nos dias de preparação. Ficou imerso no processo. Era um pouco o paralelo do motel, era como se ele estivesse vivendo nesse motel”.

“Continuo contando histórias, também porque o cinema é capaz de fazer certas reparações históricas. E faz isso com muita graça” (Foto: Bob Wolfenson)

“Continuo contando histórias, também porque o cinema é capaz de fazer certas reparações históricas. E faz isso com muita graça” (Foto: Bob Wolfenson)