Com personagem sáfica e produtora de conteúdos eróticos, Olívia Torres fala sobre sexualização lésbica no audiovisual


Conhecida pelos papéis como “Priscila”, em “Desenrola”, e “Débora”, em “Totalmente Demais”, Olívia Torres conquistou o carinho da audiência jovem brasileira ao dar luz a temas como a virgindade, as inseguranças e a descoberta da sexualidade. Em 2020, a atriz surpreendeu a internet e saiu do armário. “Em um dado momento, a gente precisou informar de alguma forma ao público não LGBT, pessoas hétero e aquelas não ligadas a essa pauta sobre quais eram as nossas dificuldades e dores. Existem filmes extremamente difíceis sobre a impossibilidade de amar, que tratam de forma absolutamente radical sobre a pandemia sobre a pandemia do HIV, outros com suicídio e todas as tristezas possíveis. Agora, sinto que essa fase já passou”.

Olívia Torres fala sobre sexualização lésbica no audiovisual

*por Luísa Giraldo

Nenhum personagem poderia realizar tanto a atriz Olívia Torres quanto a sáfica Tuca — mulher que sente atração por outras mulheres, exclusivamente ou não —, na recém-lançada série pela GloboPlay “Rio Connection”. Inserido em um conturbado contexto do tráfico internacional de drogas, o papel desafiou a atriz de 29 anos a encarnar uma produtora de pornochanchada lésbica da década de 1970. O projeto permitiu que a artista colocasse a língua inglesa em prática ao lado de nomes como Marina Ruy Barbosa, Renata Sorrah, Julia Konrad e Rômulo Arantes Neto. Roteirista e homossexual, Olívia está envolvida com inúmeros projetos audiovisuais que circundam a temática da comunidade LGBTQIA+. Ao site, ela abre o coração sobre a sexualização das relações entre mulheres e da estigmatização de narrativas queer por parte do cinema.

 Olívia avalia que os relacionamentos afetivos e sexuais entre mulheres ainda são retratados de maneira estigmatizada e sexualizada por parte da mídia e da indústria cultural. Ao comparar os relacionamentos sáficos que teve ao longo da vida, a atriz confessou se sentir “desconectada” com a falta de adequação de lésbicas reais às telas dos cinemas. Pouco antes do início da pandemia da Covid-19, em janeiro de 2020, a atriz expôs a homosexualidade ao mundo. Sem pretensão de “sair do armário”, ela fez um vídeo expondo alguns textos poéticos de sua autoria e o publicou no perfil no Instagram. Atualmente, o reels de um minuto e 40 segundos tem 226 mil visualizações, quase o número de seguidores dela na rede, 256 mil.

 Embora tenha mencionado os estereótipos presentes na abordagem dos relacionamentos sáficos, a atriz acredita estar vivendo um momento único na história do mundo e do cinema, no qual há uma nova representação da comunidade Queer.

Em um dado momento, a gente precisou informar de alguma forma ao público não LGBT, pessoas hétero e aquelas não ligadas a essa pauta sobre as nossas dificuldades e dores. Existem filmes extremamente difíceis sobre a impossibilidade de amar, que tratam de forma absolutamente radical sobre a pandemia do HIV, outros com suicídio e todas as tristezas possíveis. Agora, sinto que essa fase já passou – Olívia Torres

 A pesquisadora em Cinema explica que os mercados audiovisual e artístico devem criar narrativas que potencializem a autoestima da comunidade de forma a desenvolver um caminho de felicidade e a conquista por direitos. Para ela, não é à toa que os filmes e séries têm a capacidade de servir como grandes espelhos da sociedade e da trajetória percorrida pelo grupo até os dias de hoje.

Intérprete de Tuca em "Rio Connection", a artista Olívia Torres reflete sobre a sexualização de relacionamentos sáficos pelo audiovisual (Foto: Liz Dórea)

Intérprete de Tuca em “Rio Connection”, a artista Olívia Torres reflete sobre a sexualização de relacionamentos sáficos pelo audiovisual (Foto: Liz Dórea)

Olívia indica inúmeras possibilidades a serem exploradas ao invés das narrativas de sofrimento atreladas à sexualidade e orientação sexual.

Podemos falar sobre os sucessos possíveis, a maternidade dupla, a compreensão da sexualidade durante a juventude, mas não de uma forma a abordar o bullying. Mas a potência de se descobrir LGBT ainda jovem, as possibilidades para a construção de futuros que sejam vibrantes e nos desconectem do lugar da marginalidade – Olívia Torres

 Com humor, a atriz comentou que o audiovisual também deve abraçar “relações de safadeza” entre as mulheres. Afinal, não é toda lésbica que deseja se casar e construir uma família com outra mulher. Para Olívia, a mensagem a ser passada nas narrativas é clara.

Nenhuma pessoa precisa de um parceiro ou de uma parceira para pertencer à comunidade queer. Por si só, a pessoa já é parte deste grupo – Olívia Torres

Em contraponto, a roteirista entende que os produtores e diretores de projetos audiovisuais têm se interessado em ter pessoas LGBTQIA+ para tratar de personagens da comunidade. Para ela, a “capacidade de compreensão e entendimento das minúcias”, advindas da vivência queer, é essencial nos estúdios. Atraída por personagens que a permitam explorar a temática sáfica, Olívia confessou ter escolhido um “monólogo inglês sapatão” para o teste de “Rio Connection”. Convergentemente, a atriz avalia que esse foi um dos principais fatores pelos quais ela foi escolhida para dar vida a uma personagem lésbica na série. 

Envolvimento com projetos do audiovisual relacionados à temática da comunidade LGBTQIA+

 Olívia está participando do desenvolvimento do roteiro da adaptação da obra literária “Amora”, de Natalia Borges Polesso. A escritora reúne histórias que giram em torno de relacionamentos homoafetivos entre mulheres. Em 2016, o livro conquistou o Prêmio Jabuti na categoria “Contos”, e o Prêmio Açorianos, na mesma categoria. O projeto está em consonância com a orientação sexual da atriz, que é uma mulher lésbica. 

 Além disso, a aspirante a roteirista também está comercializando o podcast que produziu sobre a história da comunidade LGBTQIA+ no Brasil. O produto percorre a trajetória seguida pelo grupo no país desde o início da década de 1950. Envolvida com o tema, Olívia avalia que está em um momento inaugural de experimentações no audiovisual, em que está se permitindo fazer o que ela mais aprecia na profissão.

 A artista disse estar montando um curso sobre “Sexualidade e Gênero no Cinema”. A ideia nasceu a partir dos cursos que ela já ministra sobre o tópico dos filmes e da atuação. Outro conteúdo que deve chegar em breve às plataformas de um podcast sobre o cinema Queer, desenvolvido ao lado da escritora trans e não binária Dri Azevedo

Papéis no audiovisual sobre o início da vida sexual

O longa-metragem “Desenrola”, lançado em meados da década de 2010, alçou Olívia ao primeiro papel como protagonista. Aos 15 anos, a moça encarnou a virgem Priscila em um filme cujo principal tema era as primeiras relações sexuais femininas.

Ainda nova durante as filmagens, Olívia admite não ter refletido sobre o teor da trama. “Eu tinha a hétero atividade compulsório naquele período e, de fato, não enxerguei outras possibilidades durante muito tempo. Em “Desenrola” principalmente, foi uma fase na qual eu ainda tentava fugir muito disso. Eu me assustava muito com a possibilidade de ser sapatão ou de ser bissexual”, disse ela, que atualmente namora a atriz Sofia Tomic.

Desde a pré-adolescência, a atriz e cineasta Olívia Torres assumiu papéis que abordavam o termo do início da vida sexual

Desde a pré-adolescência, a atriz e cineasta Olívia Torres assumiu papéis que abordavam o termo do início da vida sexual (Foto: Liz Dórea)

Por outro lado, a atriz recorda do papel da jovem Débora Matoso na telenovela “Totalmente Demais”, produzida e transmitida pela TV Globo nos anos de 2015 a 2016. Na narrativa protagonizada por Marina Ruy Barbosa, a participação da personagem de Olívia foi pequena, mas colocou em evidência uma faceta tímida, insegura e recatada da jovem mulher brasileira.

No início da minha juventude, assumi muitas vezes o papel do ‘patinho feio’. Eu era muito chamada para fazê-lo. Em “Desenrola”, “Totalmente Demais”, “Confissões de Adolescente” e, até mesmo, em “Tempo de Amar”, eram narrativas da menina menos ajeitada ou nerd, que encontrava sempre com um príncipe. Constantemente, era algo do tipo – Olívia Torres

A atriz carioca acredita que a tentativa de enquadrar os atores e atrizes em um perfil é um processo natural no audiovisual. Olívia afirma nunca ter se incomodado com o fato. Ainda assim, ela ressalta estar farta de encarnar esses tipos de personagem e não pretender voltar a assumir papéis semelhantes tão cedo.

“Eu acreditava que os papéis tinham muito a ver com o meu perfil no sentido de ser uma pessoa um pouco mais retraída e mais CDF, apesar de eu parecer tão ‘para fora’ nas redes sociais. Desde muito jovem, sempre fui assim. Durante os meus projetos, eu estava lendo, estudando ou falando palavras esquisitas. Sempre gostei de elaborar ideias como uma pequena intelectual”, brinca.

Quando Olívia saiu do armário

A roteirista Olívia Torres disse se sentir realizada de finalmente interpretar uma personagem lésbica

A roteirista Olívia Torres disse se sentir realizada de finalmente interpretar uma personagem lésbica (Foto: Liz Dórea)

Em convergência, a atriz relembrou das dificuldades no processo de auto aceitação como uma pessoa da comunidade LGBTQIA+. “Foi um processo horrível. Não é tranquilo ser LGBT, é muito difícil. Mas foi em um período da minha vida que eu já havia mastigado muito e estava colhendo os louros da minha felicidade. Sinto que tive uma segunda adolescência quando me entendi sapatão. Porque existe uma nova rede de descoberta das possibilidades do corpo e do prazer. E isso tem muito a ver com o momento inaugural da adolescência”.

Ao refletir sobre a vida amorosa e profissional, a pesquisadora queer concluiu estar “muito mais em contato com as paixões, muito mais encontrada e muito mais sensível com no tato com o trabalho” como atriz.

Relação com a cultura

O contato de Olívia com o mundo do audiovisual se deu desde muito nova por influência dos pais. A atriz Sofia Torres, mãe dela, e o produtor Lucas Mansor, pai de Olívia, incentivaram que ela crescesse acompanhando o cenário cultural em que eles estavam inseridos. Aos seis anos, a pequena se ambientou com os teatros de forma a enxergá-los como uma extensão de sua própria casa.

Pouco antes da pandemia, a Olívia Torres saiu do armário através das redes e confessa ter amado fazer isso

Pouco antes da pandemia, a Olívia Torres saiu do armário através das redes e confessa ter amado fazer isso

“Hoje, eu trabalho no audiovisual por conta deles [da mãe e do pai], mas consegui traçar os meus caminhos dentro da arte, que são diferentes dos deles. Não foi uma escolha independente minha, até porque comecei a trabalhar com 14 anos. [Ser atriz] era uma profissão dos sonhos para mim. Eu tinha uma relação meio de brincadeira e, ao mesmo tempo, de conforto e intimidade”, relembra ela.

Apesar das memórias afetivas com os palcos, a artista diz estar mais conectada com o cinema e as telas. Diferentemente dos familiares, ela se sente mais inclinada ao campo da pesquisa de projetos para o audiovisual. Embora reconheça que desenvolveu paixões em direções contrárias, Olívia entende que os pais assumiram um papel fundamental como “portas de entrada” para o mundo cultural.

Inspirada pelo interesse nas pesquisas cinematográficas, a atriz busca mudar suas atuações no meio. “Aos 23 anos, comecei a entender que a minha paixão pelo audiovisual abarcava coisas nas quais eu não estava conectado. Porque elas têm mais a ver com o campo teórico do que com a atuação em si. Por isso, o meu curso é sobre atuação e não de atuação. Trata-se de um curso que pensa a teoria do cinema junto com a atuação e as formas de incorporar reflexões de vários pensadores”.

O amplo reconhecimento por parte do público dos papéis “Priscila”, em “Desenrola”, e , “Débora”, na novela “Totalmente Demais” não impediu Olívia de sonhar em alçar um voo ainda mais alto. Atualmente, ela está envolvida com o desenvolvimento de seu primeiro longa-metragem como escritora em parceria com o diretor Davi Preto.