Autora da sinopse de “Lua de Cristal”, Patricya Travassos aborda ausência das novelas, humor na TV e feminismo


Depois de quase fazer uma novela por ano, Patricya Travassos direciona seu talento para os palcos. Atriz poderá ser vista até o fim de Outubro com a peça Duetos, que co-estrela com Eduardo Moscovis. O último folhetim do qual a atriz participou foi “Espelho da Vida”, de Elisabeth Jhin, de 2018. Ainda que goste do gênero, Patricya diz não sentir saudade do formato e prefere se sentir livre para transitar por outras trajetórias artísticas. Patricya relembra como surgiu o argumento de “Lua de Cristal”, seu maior sucesso no cinema que foi estrelado por Xuxa em 1990. Ainda no campo das memórias, revisita a sua história no TV Pirata e a parceria com Miguel Falabella e Vicente Pereira (1949-1993). O falecido dramaturgo era padrinho de seu filho, Nicolau. Letrista de um dos maiores sucessos da banda Sempre Livre, de 1984, Patricya define o conjunto como “mais feminino que feminista” e que a ideia de uma banda de rock composta por mulheres atendia mais a um interesse comercial, ainda que tenha sido importante numa época de forte machismo

*por Vítor Antunes

Ainda que tenha fundamental importância na história do teatro, pois que é uma das integrantes do grupo de vanguarda Asdrúbal Trouxe o Trombone, Patricya Travassos tem passagens expressivas nos palcos. Depois de fazer uma participação especial em “Armação Ilimitada” engatou uma série de trabalhos na TV, como a imortal Mary Matoso de “Vamp” (1991). Depois de “Vitória”, na Record, em 2014, sua presença nas novelas passou a ser mais episódica. Foi apenas uma, “Espelho da Vida” (2018, Globo), que veio a ser a sua mais recente participação no gênero. Perguntada sobre sua relação com a teledramaturgia, disse gostar mas não sente falta delas: “Novela é legal mas elas são muito longas e fica-se muito tempo presa a elas (…). Não sinto saudade de fazê-las, mas de estar em bons trabalhos. Eu gosto de fazer bons trabalhos na televisão”, disse, deixando registrado que um desses venturosos projetos foi o seu último, exibido pela Globo.

Autora da sinopse de um dos mais importantes filmes nacionais dos Anos 1990, “Lua de Cristal“, Patricya Travassos conta como surgiu o convite para participar do infantil. E destaca também o fato de ela ser a única mulher a estar entre na equipe de redatores do TV Pirata, igualmente icônico programa de humor dos Anos 1980. Sobre a ausência de shows cômicos na TV apontou que “O humor é uma coisa muito difícil de escrever (…) Ele mudou de lugar. Talvez porque o humor da televisão não ficou tão engraçado ou antigo”.

Diante de um mundo em que as relações são cada vez mais fragmentadas – ou líquidas, como diz o sociólogo Bauman – Patricya faz coro à fala do pensador polonês. “Creio que hoje as relações estão muito superficiais. As pessoas dizem ter sessenta mil amigos nas redes sociais quando na verdade são seguidores. (…) Eu não nasci nessa geração em que os melhores amigos estão na internet, eu tenho amigos de infância. Não que esteja debatendo o que é certo ou errado, não há um modelo de comportamento. As coisas acompanham as épocas, mas a necessidade é  a mesma: relacionar-se”. É sobre esse mote que se orienta “Duetos” montagem estrelada por ela e por Eduardo Moscovis, escrita por Peter Quilter e que volta ao cartaz em São Paulo, onde fica teatro FAAP até o fim de outubro.

Patricya Travassos. Atriz relata não sentir falta das novelas, ainda que goste do gênero e estreia peça em São Paulo (Foto: Divulgação/TV Globo)

 

SEMPRE LIVRE

Somos apenas 10% de uma população brasileira que descobriu o amor livre. E há a mulher do interior, do Nordeste e do subúrbio que vai chegar virgem ao casamento“. Esta fala de 1987 poderia ser dita atualmente por Patricya Travassos ou qualquer mulher engajada dentro da pauta do feminismo. A liberdade sempre foi um norte na vida da atriz, que transitou também na função de roteirista e na música. Depois de emendar várias novelas e praticamente uma por ano, resolveu tomar a si a frase título da canção do grupo musical Sempre Livre: Eu sou free. “Novela é legal mas elas são muito longas e você fica muito tempo presa no sentido de que com ela não é possível ter rotina. Você nunca sabe vai estar gravando numa quarta, numa sexta, numa segunda-feira, se todos os dias, a que horas… Então a vida fica muito alterada,  não é possível marcar um dentista sem a autorização da produção e isso cansa muito”, porém, a artista não é resistente ao formato, a contrário. “Gosto de fazer uma boa novela, eu, inclusive adorei fazer “Espelho da Vida” foi divertidíssima, o elenco era maravilhoso. Então eu tenho boas boas memórias dessa novela”.

Não tenho saudade de fazer novela. Tenho saudade de fazer bons trabalhos. E eu gosto de fazer bons trabalhos na televisão – Patricya Travassos

Patricya Travassos em “Espelho da Vida”: “Divertidíssima” (Foto: Divulgação/TV Globo)

A citação à banda Sempre Livre não foi acidental. Patricya é a autora do maior hit do grupo, a canção “Eu Sou Free“. Na época, a proposta era a de dar protagonismo às artistas mulheres, de modo que todas as integrantes do conjunto de rock eram do sexo feminino. As únicas naquele cenário. “A minha relação com a música era mais como letrista e esta nasceu meio que por acaso. Naquela época eu estava namorando o Evandro Mesquita e fazia música para a Blitz. O Mariozinho Rocha, diretor musical, produziu a Blitz e começou a me encomendar letras para alguns grupos e ele surgiu com essa história do Sempre Livre, que era um grupo só de mulheres”. Ao ver da artista não era um grupo feminista, mas feminino. Ela explica: “Não tratava-se de um grupo feminista, mas feminino, era uma coisa bem comercial, jogada de gravadora. Como o rock era todo masculino, botar um grupo de mulheres chamava atenção. Era mais um contraponto”. Aliás, importante ressaltar que “Sempre Livre” é o nome de uma famosa marca de absorventes íntimos, lançada em 1974 e ainda em circulação.

Ainda sobre o grupo, Patricya louva o fato de que, mesmo numa época marcada pelo machismo, um conjunto composto por meninas foi respeitado. “Vi um clipe recentemente e me chamou a atenção que a câmera do vídeo não explora o corpo das garotas, o que seria normal no dia de hoje. Exploram mais a parte musical delas. Creio que se fosse atualmente, uma banda de rock composta por mulheres teria componentes mais sensuais”. Para a atriz, esta época foi uma de suas mais prolíficas. “Eu estava dentro do estúdio o tempo todo, andava com um caderninho anotando frases, ideias.. Escrevia a “Armação Ilimitada“, e foi um programa que eu adorei fazer e no qual fiquei quatro anos. Eu estava num momento meio que imersa nesse mundo, então as coisas foram muito orgânicas, foram acontecendo, caindo no meu colo”.

 

Dulce Quental era a cantora da banda Sempre Livre (Foto: Reprodução/YouTube)

Patricya foi uma das mulheres que não escapou das manchetes maldosas. Recentemente, escreveram uma chamada escandalosa falando sobre seu traje na praia e forma física, algo que é muito recorrente a elas. Fala-nos “Ainda bem que eu não vi essa manchete. Eu acho que são os ossos do ofício, a figura pública passa por isso. É um saco quando você está num momento super seu, super reservado, por vezes conversando com um feirante, e comendo uma manga na feira ou então saindo de uma onda na praia com sutiã meio torto e fotografam… Enfim, é um saco! Há uma exigência de que pra gente ser ator precisamos estar lindos, esculturais. Com o tempo vamos aprendendo a nem prestar atenção nisso, porque piorou muito. Da época que eram só os paparazzi pra agora que qualquer pessoa tem um celular à mão e e nos fotografa quando nos reconhece, há aqueles que postam fotos ruins pra, intencionalmente, derrubar. Eu não me detenho muito nisso não, até porque é raro que essas coisas aconteçam comigo”.

Patricya Travassos passou pela arte em várias plataformas durante sua carreira (Foto: Divulgação/TV Globo)

Numa época em que muito se fala sobre a Xuxa e sua carreira, importante destacar que Patricya Travassos é a autora do argumento de um dos produtos mais bem sucedidos da carreira da apresentadora: O filme “Lua de Cristal“. Ela conta que “na época em que o longa foi pensado eu trabalhava muito com o Diler Trindade, produtor dos filmes da Xuxa. Inicialmente eu faria o roteiro, mas eu estava grávida e não me sentia apta a escrevê-lo. Daí, DIler me pediu um argumento (…).  Fui dormir de tarde e acordei com uma história na cabeça. Foi assim que aconteceu. O dia em que foi aprovado o argumento foi aquele em que fui pra maternidade ter o meu filho”, relembra.

TORA! TORA! TORA!

Tora! Tora! Tora!” é um filme de 1970 que retrata o ponto de vista japonês para o ataque a Pearl Harbor. Aparentemente, não dialoga em nada com o tema desta matéria. Todavia, era pelas três palavras repetidas que se autoapelidaram Patricya Travassos, Miguel Falabella e Vicente Pereira (1949-1993), redatores do TV Pirata. Os dois rapazes, inclusive, foram um dos expoentes do Teatro Besteirol que, por sua vez, lançava mão de referências cinematográficas para compor suas piadas. A amizade entre os “Tora” era tanta que Vicente era o padrinho de Nicolau, filho de Patrcya Travassos. “Eu, Vicente e Miguel, ficávamos juntos, já que a gente já era amigo. Foi uma coisa assim meio natural e foi maravilhoso fazer parte desse grupo, desse momento do humor, ainda que a direção geral filtrasse muitos textos nossos e ficássemos meio indignados. Havia coisas que iam pro ar e a gente nem reconhecia. A gente ia pra casa do Miguel, passava o dia inteiro rindo, contando caso, história e ele falando da peça que ia escrever – e que viria a ser “A Partilha“. Essa é a maior memória que eu tenho do TV Pirata, exatamente as reuniões na casa do Miguel e o Vicente”.

Era um grupo gigantesco, acho que tinha uns trinta autores quase. Todas as pessoas de humor estavam lá. Eu era a única mulher – Patricya Travassos

Patricya e Nicolau, com dois anos e meio (Foto: Reprodução/Revista Manchete)

Por haver participado desta fase importante do humor na TV, Patrícia opina sobre a falta de programas humorísticos na TV: “Eu não sei a razão de não terem mais tantos. Acho que há uma dificuldade de fazer humor na televisão, mas na Internet temos vários grupos, como o Porta dos Fundos, o Embrulha pra Viagem e entre outros. Tem muita gente na internet. Hoje em dia há uma profusão de stand-ups, de pessoas fazendo humor e seus próprios espetáculos. Eu acho que o humor continua. Ele só mudou de lugar. Talvez a televisão não tenha interesse, ou o humor da televisão não ficou tão engraçado, ou envelheceu, caso da “Praça [é Nossa], que é legal, e cria milhões de humoristas, mas é uma coisa que existe há quase quarenta anos”.

Humor é uma coisa muito difícil de escrever. Ou você tem um grupo que já tem um tom, já tem um uma pegada, um caminho, ou precisa fazer como na televisão, que depende da contratação de  pessoas diferentes – Patricya Travassos

Eduardo Moscovis e Patricya Travassos em “Duetos”. Peça está em cartaz em São Paulo (Foto: Barbarah Queiroz)

Depois de uma temporada vitoriosa no Rio, “Duetos” está em cartaz em São Paulo, do dia 04/08 ao dia 29/10 no Teatro FAAP, em Higienópolis. Segundo Patricya, trata-se de “um texto famoso, montado em mais de vinte países. E que é um sucesso em todo lugar”. Dentre alguns dos temas presentes no roteiro estão os relacionamentos e suas formas. E não são relações entre casais, ou entre amigos, ainda que haja. São quatro cenas independentes que revelam situações interrelacionais distintas. Para Patricya, “relacionar-se com alguém é um eterno aprendizado, um eterno conflito, uma eterna dificuldade e ao mesmo tempo uma necessidade humana”. Atualmente, muito se diz que as pessoas estão se tratando de forma cada vez mais superficial e menos contundente. Ainda segundo a atriz, “em cada época a relação interpessoal vai se desenhar de uma forma. Isso não quer dizer que facilite, piore ou melhore. Eu acho que é sempre muito difícil. Talvez agora esteja muito  superficial. Quando se falava em século passado, a sociedade era tão truncada, tão cheia de preconceitos e regras que os relacionamentos eram formais, então eu acho que tem hoje mais informalidade, mas, ainda assim há uma busca. A busca pela alma gêmea ou pelo melhor amigo ou por seja o que for. É é nos relacionamentos que é possível se conhecer, aprender a lidar com o outro e a aceitá-lo. Então é sempre um aprendizado.”

Hoje as pessoas dizem ter sessenta mil amigos. Tem seguidores, não amigos. Eu não nasci nessa geração em que os melhores amigos estão na internet. Eu tenho amigos de infância, outros com os quais posso contar numa hora em que eu precise ou algo assim – Patricya Travassos

Com “Duetos”, a equipe pretende voltar para o Rio após a temporada paulistana, fazer turnê internacional, ainda que a atriz queira “aliar outros projetos para fazê-los junto com a peça”. Diante de uma carreira longeva e multiplataforma, Patricya tira o seguinte saldo: “Eu adoro ser atriz de teatro. Nós, atores, temos uma vida igual a todo mundo durante a semana, enquanto no fim de semana a gente trabalha. É muito legal isso. Eu gosto muito de ter a minha vida assim, fazer minhas aulas, comer em casa, sair com amigos, viajar. Eu gosto de fazer as coisas normais que todo mundo gosta”, finaliza.