*Por Brunna Condini
Julia Lemmertz fez 40 anos de carreira ano passado. Contabilizou, mas não celebrou. A conjuntura no Brasil não a empolgou para comemorar nada. “No meio disso tudo que estamos vivendo, me dei conta que o primeiro espetáculo que fiz foi em 1981. Até fiquei pensando se deveria ter feito algo, mas como celebrar em um ano tão terrível? Pessoalmente, estou bem, mas vivo em uma comunidade. E não posso estar completamente bem, se a minha comunidade não está, se o mundo não está bem. Claro que internamente comemoro minha trajetória, são quatro décadas fazendo muitas atividades. E ainda tem o porvir, que é só um desejo. Mas o presente é o que temos”, reflete Julia, em entrevista por vídeo ao site.
A grande festa da atriz acontece mesmo é em cena. Ela está em cena em ‘Tudo‘, de Rafael Spregelburd, com direção de Guilherme Weber, ao lado de Dani Barros, Vladimir Brichta, Claudio Mendes e Márcio Vito, no Teatro Firjan SESI, Centro do Rio de Janeiro. “Representa muito estar no teatro neste momento. Durante muito tempo, na pandemia, nos questionamos sobre o que aconteceria como o teatro, se ele acabaria, por exemplo. Imagina! Ele nunca vai morrer, nós todos vamos antes. O teatro sempre vai permanecer, como o céu, o universo, as estrelas. E vai se renovando. Porque é uma forma única de comunicação presencial, viva. Desde os primórdios, as pessoas sentam para ouvir histórias, para se reconhecerem, para discordarem. Teatro é tudo. Teatro é um ato político, para além de partidos”.
Ela não abre mão de se posicionar sobre temas relevantes em sociedade. Recém-saída da telinha em ‘Quanto mais vida, melhor‘, Julia lida com a incerteza dos dias pensando em arte, e em meios de vida mais justos. “É fundamental refletirmos a nossa existência presente. Isso é ouro. Precisamos elaborar esses tempos, nos entender, e o teatro é uma ferramenta de ajuda ao outro e de autoajuda para quem faz”, diz.
“A ideia é fazer a peça até dezembro, queremos rodar o país. Com dificuldades, porque temos pouco patrocínio e alguns apoios. Estamos fazendo muito na guerrilha. Acabei uma novela, e ainda tenho contrato com a Globo por mais um tempinho. Têm trabalhos de streaming rolando, mas, enquanto eu estiver contratada da emissora, não posso fazer. Então, fico um pouco amarrada neste lugar, mas querendo muito experiências diferentes. Da minha idade, do meu fôlego, da minha condição. É ótimo fazer novela, divertido, mas acho também que, às vezes, somos mal aproveitados. E não tenho mais tempo para ser subaproveitada. Mas é isso, estamos em campo, em jogo”. E anuncia: “Também quero muito fazer um trabalho com a minha filha, a Luiza Lemmertz, que é uma baita atriz linda. Estamos lendo, pesquisando, escrevendo, e em algum momento faremos algo para o teatro”.
Espelhando a sociedade e lidando com a perplexidade
No palco, três fábulas morais investigam o indivíduo em confronto com o poder a partir de três perguntas. A primeira (“Por que todo Estado vira burocracia?”), apresenta um grupo de funcionários em uma repartição pública, que questiona valores impostos. A segunda (“Por que toda arte vira negócio?”), mostra os convidados de um jantar de Natal que dão início à ceia somente após uma contundente discussão sobre valores absolutos. E a terceira (“Por que toda religião vira superstição?”), traz um casal e seu bebê que fica doente em uma noite de tempestade.
“As cenas se apresentam como perguntas sobre a transformação ideológica que qualquer sociedade passa. Ao tentar construir respostas, os personagens e os espectadores se deparam com temas como o absurdo das regras que definem um determinado grupo social, a dissolução das palavras e seus significados, a ausência de Deus e a inexorável presença da morte. Não é um espetáculo previsível, linear. Ele coloca um assunto, e observa por todos os lados a loucura que é esse nosso mundo. A que ponto chegamos? O que é arte? Quem diz que algo pode ser ou não ser? Quem delimita essas fronteiras? Acho sempre muito interessante, quando através da ironia e do humor, podemos falar de temas sérios. Você acaba relaxando mais, e se permitindo ser mais livre, até para criticar. O humor aproxima”, aponta a artista.
Aos 59 anos, atriz e cidadã de seu tempo, Julia fala abertamente sobre sua visão de tudo que acontece politicamente e socialmente em nosso país, com indignação e potência, mas não sem cansaço. “O mais difícil de elaborar é a burrice, a irresponsabilidade. A falta de humanidade, de conexão com a vida, que existe em muitos no Brasil neste momento. Acho muito difícil aceitar que, com tantas evidências, tantas provas, com tantos acontecimentos nefastos, cruéis, ainda tem gente que acredita neste governo. Não dá para justificar o que estamos passando. São 33 milhões de pessoas com fome! Um país deste tamanho, que produz tanta comida. Fora o número de desempregados e a questão da Amazônia. Não tem um setor do país inteiro que está ok”, lamenta.
“Agora é a hora de nos posicionarmos, e nem falo de lado político, de esquerda e direita, já enchi o saco disso. Está todo mundo ferrado. Precisamos de um projeto para o país com quem entrar, e que seja o Lula. Mas vai ser difícil, porque temos um Congresso cheio de gente retrógrada, com pensamentos destrutivos. Só que se nós, população, colocamos essa gente lá, temos que tirar. Pagamos o salário. Não sei como o atual governo consegue dormir com a realidade do país. Não têm filhos? Netos? Não pensam no futuro, no que vai acontecer? Como conseguem ficar me paz mantendo esse projeto de poder?”, questiona.
E frisa: “Me posiciono primeiro como cidadã, depois como artista. E tem a quantidade de porrada que você leva por se posicionar nas redes sociais, mas sabemos que ali tem aquele gado, e alguns robôs, né? Que ficam ali para te achincalhar, achando que isso serve de algo, mas, na verdade, só para passarem vergonha. Se eu não tivesse convicção, como em alguns momentos já não tive, não me exporia falando. Porque é uma exposição. Já teve uma época que não existiam redes sociais e as pessoas iam para as ruas se expressar. Agora, existe um canal e você pode falar o que quiser, inclusive muita bobagem. Então, se puder usar esses mecanismos para falar pautas que importem para você, as pessoas concordando ou não, ok, é isso. Estamos em uma democracia?”.
Em nome da cultura
Em audiência no início deste mês da Comissão de Cultura da Câmara, no Congresso Nacional, vários artistas fizeram apelos aos deputados para que derrubem os vetos do presidente da República às leis Aldir Blanc 2 (PL 1.518) e Paulo Gustavo (PLC 73), de apoio ao setor de cultura. Julia Lemmertz também estava lá. A audiência para votação da derrubada dos vetos às leis foi adiada para o dia 5 de julho. “Estarei lá. É bom que derrubem, pela bem da consciência dos envolvidos, que já haviam votado a favor. Majoritariamente. Então, eles têm a obrigação, por ombridade. Mas só Deus sabe. Estive lá com a APTR, com toda a força do Eduardo Barata, para defender essas leis, uma emergencial, e uma que pode ser a primeira ‘cabecinha pra fora da cultura’, com uma lei que seja para o Brasil todo, abarque os pequenos, médios e grandes produtores. Uma lei de incentivo à Cultura que não temos, porque a que existia, parou de funcionar. Estamos pedindo uma migalha, perto de outros orçamentos, e todo mundo consome cultura, até esses caras, sejam de que partido forem. Ouvem música, assistem filmes, novela, séries, enfim. Mas o país não incentiva a arte e a cultura, e somos demonizados. Não tem como não se indignar. Somos trabalhadores”.
Pela vida
Ela também comenta sobre outro tema que considera urgente. “A pauta primordial é a Amazônia. O estado do que acontece nunca esteve como agora. Se desmatou a Amazônia há quatro anos? Sim. Era difícil antes? Sim. Mas existia a Funai forte ainda, existiam os mecanismos de proteção, bem ou mal. Ninguém está dizendo que isso começou agora, mas piorou exponencialmente. De um jeito, que é tipo: abriu a ‘porteira’, uma tragédia anunciada pelo atual governo”, expõe Julia.
“As mortes do jornalista Dom Philips, e do indigenista Bruno Pereira, porque devem ter morrido mesmo, têm culpados. Todos que foram responsáveis por esse desmonte de tudo que poderia proteger a Amazônia, todos que foram coniventes com a grilagem, o desmatamento. Eles desapareceram em um lugar onde estão a maior parte de comunidades indígenas isoladas, que não querem contato com o mundo, porque sabem a roubada que é isso. E estão sendo cada vez mais cerceadas, e vão desaparecer. A Amazônia vai desaparecer. E se acabarmos com ela, vamos acabar com a água, com o ar, com muito que é ouro nosso. Não podemos perder de vista quem somos. Não sou otimista, mas tenho esperança. Nosso país é extraordinário, imenso, lindo, fértil. Acho que o ser humano é resiliente. Nos acostumamos a tudo na vida, mas precisamos lembrar, nós, povo brasileiro, que somos melhores que isso. Já fomos melhores que isso. Temos que tomar, cada um de nós, a responsabilidade por este momento. Precisamos parar de votar errado, tentar acertar o passo para sobreviver”.
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