*por Luísa Giraldo
À luz da voz e do corpo de Laila Garin, a cantora Elis Regina (1945-1982) é homenageada no espetáculo “Elis, A Musical“. Após dez anos, a atriz baiana retorna aos palcos para comemorar a primeira efeméride do trabalho que alavancou a carreira dela à esfera nacional. Após o papel de destaque, Laila se projetou aos olhos da crítica audiovisual brasileira com as intrigantes personagens “Macabéa”, do espetáculo “A Hora da Estrela ou O Canto da Macabéa”, e Norma, da série “Fim“. Ao lado de nomes como Fábio Assunção, Débora Falabella e Emílio Dantas, Laila participa da adaptação do livro “O Fim”, baseado na obra homônima da atriz Fernanda Torres. Os primeiros episódios da série foram disponibilizados, no final do mês passado, no Globoplay. Em uma história que remonta a vida de quatro casais a partir dos anos 60, ela interpreta a complexa personagem Norma. Laila, que nasceu na Bahia, aproveita a oportunidade para refletir sobre as narrativas míticas e estereótipos sobre o imaginário do seu Nordeste e a potência de papéis com mulheres fortes.
A artista revelou ter se sentido pressionada a neutralizar o sotaque nordestino para conseguir oportunidades em trabalhos audiovisuais. Ela entende que este movimento de neutralização é negativo, ao forçar uma “padronização” da fala entre os atores e atrizes.
Sou atriz para poder ser outras coisas que não eu mesma, mas quando saí da Bahia comecei a me ver muito mais nordestina. Eu me reconheci quando conheci o diferente. Fiz um trabalho com uma personagem nordestina na peça “A Hora da Estrela ou O Canto da Macabéa”‘, deixando claro que o Nordeste não é todo igual. Nós somos muitos e muito diferentes, mas que tem a beira do Rio São Francisco em comum. Eu constatei a existência de um Nordeste diferente – Laila Garin
O espetáculo remonta a trajetória de Elis Regina, ao recriar os principais momentos de sua vida profissional e pessoal. Laila apresenta mais de 50 sucessos da cantora, como as canções “Como Nossos Pais”, “O Bêbado e a Equilibrista” e “Atrás da Porta”. Com o tempo de espetáculo reduzido e mesma essência da dramaturgia original, a direção de “Elis, A Musical” tem a assinatura de Dennis Carvalho e o texto de Nelson Motta e Patrícia Andrade.
Laila relaciona o sucesso de “Elis, A Musical” à oportunidade e à autonomia de investir no projeto autoral “Gota D’Água [A Seco]”. “Ele partiu de mim e da Sarau, que é uma produtora Andreia Alves. Eu sonhava em fazê-lo desde os 18 anos, e participei dele como co-produtora. Conseguir fazer ‘Gota D’Água [A Seco]’ a partir de parcerias foi um privilégio e uma conquista. Acho bonito que esta mulher gaúcha, [Elis Regina] que dizia não poder perder tempo querendo ser gaúcha enquanto eu quero, foi quem me deu a liberdade de ser mais baiana e nordestina”, identifica.
Quando me pergunto o porquê de Elis ter voltado para a minha vida 10 anos depois, penso que ela continua uma personagem autêntica, franca e muito provocadora em tempos tão hipócritas e superficiais. Eu mesma não achei que me envolveria tanto com esta comemoração. Não desacreditei em nenhum momento da força de Elis, mas esqueci do que era senti-la na pele – Laila Garin
Durante a primeira versão, Laila ganhou os prêmios Shell, Referência, Bibi Ferreira, Cesgranrio de Teatro e Botequim Cultural de Teatro, além de ter conquistado o Troféu da Associação Paulista de Críticos de Arte. Apesar do sucesso, a baiana não acreditou que o público estaria tão animado para reencontrá-la 10 anos depois no papel de Elis.
“A peça marcou a vida de muitos espectadores ao longo destes 10 anos. Sempre ouvi as pessoas falando disso, o que eu acho que é raro. A gente já estava querendo voltar [com o espetáculo], mas aí veio a pandemia. Agora, quando vimos que ele ia fazer 10 anos, achamos que era um bom motivo para comemorar. Particularmente, eu quis voltar porque este papel foi um presente que eu ganhei na minha vida”, declara.
Além da celebração, a cantora vibrou ao perceber que a oportunidade a permitiria contar um pouco da trajetória de Elis Regina para as gerações mais jovens. À medida em que relaciona a cultura à trajetória sócio-política do país, a atriz e cantora deseja passar um pouco da história da música brasileira às novas gerações.
A essência nordestina no trabalho de Laila
Segundo Laila, a sensação de pertencimento à cultura nordestina se alastrou quando ela foi embora da Bahia. Ela só se deu conta do sentimento anos mais tarde. Atualmente, a atriz de 45 anos se sente muito mais baiana.
Especializada em canto lírico, Laila relacionou a trajetória da protagonista imigrante da peça como reflexo da mulher brasileira invisibilizada e da trajetória de nordestinos. A atriz entende que os profissionais buscam grandes centros, como o Rio de Janeiro e São Paulo, em busca de melhores oportunidades de emprego e de vida. Ela observa um aumento desta tendência em profissionais do campo cultural e busca abordar o assunto a partir do show “Falso Brilhante“, realizado por Elis Regina e que aborda a trajetória de um artista que saiu de casa em busca de um lugar no mundo.
Eu quero ser muitas. Quero ser brasileira. O Nordeste foi muito invisibilizado, etiquetado e estereotipado. Acho importante a gente estar em um momento de reparação histórica com olhos mais abertos para a diversidade dentro da própria diversidade. A gente vê que existem muitos Nordestes e muitos nordestinos. E eu sou baiana, mas posso ser outras coisas também – Laila Garin
Em contrapartida, a atriz avalia Macabéa como uma personagem difícil de definir. Laila entende que a escritora naturalizada brasileira construiu uma protagonista em uma situação de sofrimento extremo, na qual “ela não sabe que é infeliz, não cobiça ou ambiciona nada” por achar que não tem direito a uma vida melhor. Para a intérprete de Macabéa, o sentimento de inferioridade configura o “maior tipo de opressão possível”.
A nossa sociedade é construída em cima da ideia de acharmos que nós somos inferiores aos outros. Muitas mulheres, pessoas, classes, etnias e povos se sentem assim. É, sobretudo, uma condição da mulher nordestina, mas é a condição de várias outras pessoas que também são invisibilizadas na sociedade. Não é à toa que ‘A Hora da Estrela‘ seja uma obra universal e atemporal – Laila Garin
Papel em “O Fim”
Ao lado de nomes como Fábio Assunção, Débora Falabella e Emílio Dantas, Laila participa da adaptação do livro “O Fim”, baseado na obra homônima da atriz Fernanda Torres, que estreou no Globoplay, em outubro.
“A história se passa em 1968 até 2012 e a gente trabalha o espaço reduzido que era estabelecido para a mulher. A minha personagem acaba se separando em um período que o divórcio ainda era algo muito recente e as mulheres não tinham o direito de casar de novo. Norma é bem pé no chão, cuida de tudo e de todos e é casada com um marido infernal e completamente amoral. Ela vem do interior de São Paulo, se divorcia e trabalha para sustentar os filhos dela e os da prima. Não sei como consegue ter tempo para tudo”, desabafa, acrescentando que, logo depois de Macabéa, a personagem Norma é a mais complexa que já encarnou.
Mímica Corporal
Francesa por parte de pai, Laila estudou o método de “Mímica Corporal Dramática”, desenvolvido pelo parisiense Etienne Decroux. Aos 15 anos, ela participou da experiência com uma professora baiana que havia acabado de voltar da França. Explica que a mímica e a interpretação no teatro conversam intimamente. “Uso muito do que aprendi no curso na minha presença de palco, no trabalho corporal mesmo e, por exemplo, na maneira como eu vou fazer personagens que já existiram. Com a mímica, eu aprendi a dividir o espaço e denominar a minha gramática corporal quando interpreto os personagens. Para a Regina, faço as mãos, a cabeça e os gestos a partir destes aprendizados”, diz.
A oportunidade de trabalhar com o diretor Dennis Carvalho trouxe a ela uma nova perspectiva da expressão da emoção e da própria comunicação com o público. A partir do curso mímico, ela acredita ter adotado um ponto de vista “muito radical”. “É meio piegas falar isso, mas acho que, no mundo que a gente está, só a arte faz sentido. Estar todo mundo junto presenciando um show depois da Pandemia está sendo muito importante. As pessoas estão com esta sede. E, com o meu trabalho, eu quero cada vez ter mais liberdade e ser cada vez mais desobediente. Também quero ter sempre a permissão para existir”.
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