O português é a quinta língua mais falada no mundo — são aproximadamente 280 milhões de pessoas — e, nesta segunda semana de novembro, dos dias 10 a 14, todos esses sotaques vão se encontrar no Rio de Janeiro, para a 14ª edição do FestLip, o Festival Internacional das Artes da Língua Portuguesa. Totalmente gratuito, o evento, que retorna ao formato presencial após duas edições remotas, reúne nove países que falam a nossa língua: Brasil, Angola, Moçambique, Portugal, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Guiné Equatorial e Timor Leste. Com uma programação extensa, esta edição elenca teatro, cinema, música, gastronomia e debates, e se espalha por diversos espaços da cidade como o Teatro Firjan SESI Rio, o Real Gabinete Português de Leitura e o restaurante Rancho Português.
No ano em que comemoramos o bicentenário da Independência do Brasil, o FestLip volta a expandir os horizontes da nossa língua numa interseção que soma quatro continentes. Essa grande festa da nossa cultura vai homenagear um homem que é a verdadeira personificação do festival: o multiartista Ruy Guerra. Nascido em Moçambique e radicado no Brasil há mais de 60 anos, o cineasta de 91 anos dispensa apresentações. Mas como não exaltar sua brilhante carreira aqui? Dramaturgo, poeta e professor, Ruy tem mais de 100 letras compostas para gigantes da MPB como Milton Nascimento, Chico Buarque, Edu Lobo, Carlos Lyra e Francis Hime. Na música e no cinema, ele é referência para diversas gerações. Um dos expoentes do Cinema Novo, ele deixou sua marca imortalizada em clássicos como “Os Cafajestes” (1962) e “Os Fuzis” (1963) — filme vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim. “Eu me sinto feliz e emocionado que o festival tenha me julgado merecedor de uma homenagem como essa. Sempre fui um apaixonado pela língua portuguesa”, afirma Ruy.
Sua genialidade transborda e é analisada na oficina “Diário de Montagem: Na ilha de edição com Ruy Guerra”, comandada pelo cineasta Daniel Garcia, que também é montador dos filmes do homenageado. Ele contará com a participação ao vivo de estudantes do audiovisual da Universidade ISARC (Instituto Superior de Artes e Cultura) de Moçambique e da Universidade Metropolitana de Angola e exibirá vídeos de pesquisas acerca do tema.
Ruy ainda participará dia 13 do FestLipEncontros, que debaterá o seguinte tema: “A Crioulização da Cultura da Língua Portuguesa”. Esse bate-papo conta ainda com Horácio Guiamba, ator de cinema e teatro em Moçambique e Cristina Luz, Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ e Coordenadora da Linha Editorial do PPGMC Programa de Pós-graduação em Mídias Criativas ECO/ UFRJ, com mediação do historiador de cinema Hernani Heffner, que é curador e gerente da Cinemateca do MAM, e a participação de Daniel Garcia.
No palco do Teatro Firjan Sesi Centro, o público poderá assistir em primeira mão a uma montagem inédita produzida pelo festival para “O Cortiço”, de Aluísio Azevedo, rebatizada aqui de “(des)Cortiço”. Em cena, a Trupe FESTLIP, formada por atores dos nove países participantes do evento – Carvarino Carvalho (Timor Leste), Mirella Aracil (Guiné Equatorial), Naty Martins (Cabo Verde), Horácio Guiamba (Moçambique), Leonardo Miranda (Brasil), Rossana Prazeres (São Tomé e Príncipe), Suelma Mario (Angola), Susana Vitorino (Portugal) e William Ntchalá (Guiné-Bissau) — leva a direção do carioca Felipe Vidal. A obra, inspirada no clássico da literatura brasileira, propõe um olhar sobre a descolonização do pensamento. A trilha sonora ao vivo será executada pelo violonista brasileiro Artur Vidal. “Essa troca com atores dos nove países é de uma riqueza muito grande. Digo que aqui eles são co-criadores dessa dramaturgia, porque trazem também histórias pessoais e vivências de cada um para contextualizarmos essa obra do século XIX, que aqui chamamos de ‘(des)Cortiço’. O espetáculo é, na verdade, uma desmontagem do livro, já que refletimos sobre a obra e os resquícios das questões sociais que ele aborda. Tentamos descolonizar o pensamento”, explica o diretor Felipe Vidal.
O encenador português José Pompeu, do Trigo Limpo Teatro Acert, a dramaturga Márcia Zanelatto, o diretor Paulo Verlings e Mario Feijó, doutor em Letras e professor da Escola de Comunicação da UFRJ, participam do FestLipEncontros e vão conversar sobre a sonoridade do texto “Ela”. A obra de Zanelatto teve diferentes montagens no Brasil e em Portugal, com adaptações distintas acerca da língua para cada país. A mediadora da mesa será a curadora e diretora do FestLip, Tânia Pires. O teatro também estará presente direto de Portugal com o espetáculo “Provavelmente Saramago”, com transmissão online para o Brasil e debate com o ator Vinícius Piedade e com o diretor Paulo Campos dos Reis. A exibição da obra faz parte também das comemorações oficiais do Centenário do Nascimento de José Saramago, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1998, promovidas pela Fundação Saramago.
Ruy Guerra e Saramago vão ser temas de debates de alunos da rede estadual de ensino que participam do FestLipinho, outro braço do evento. A 3ª Coordenadoria Regional de Educação, instância representativa de um território que atende 137 escolas da rede municipal de ensino público do Rio de Janeiro, estabelece uma feliz parceria com o FestLip 2022, que possibilitará momentos de aprendizagem significativa da inserção da língua portuguesa na arte e na cultura dos povos lusófonos, discutindo e refletindo sobre as suas ancestralidades, poéticas e diferentes formas de (r)existência. Eles promoverão oficinas criativas e trabalhos durante o ano, com o desafio de preparar uma exposição artística para os 15 anos do evento em 2023.
A banda brasileira UFRJazz Ensemble fará um show com a participação especial da cantora Natty, que vem despontando como uma das grandes vozes de Cabo Verde. “Música em Bom Português” promete uma mistura perfeita entre a sonoridade da música brasileira e a influência da música cabo-verdiana. A direção musical será de Júlio Merlino. No repertório, obras autorais da cantora de Cabo Verde e clássicos da nossa Música Popular Brasileira.
Grande influenciadora da gastronomia brasileira, a comida portuguesa é mais uma das delícias da programação deste ano. Para isso, o FestLip convidou o premiado restaurante Rancho Português, para criar um cardápio inspirado nos temperos típicos dos países que falam a nossa língua. O menu “Paladar da Língua” (R$ 152,00), do FestLipGourmet se inspira nos 200 Anos de Independência do Brasil e atravessa mares, misturando sabores com que o chef Evangelista Rodrigues Alves vai nos brindar. A entrada é uma Tigelinha de Açorda com Frutos do Mar (pão amolecido no caldo com camarão, lula e polvo, temperado com bastante coentro, azeite e alho). Para o prato principal, Moqueca de Bacalhau típica (lombo de bacalhau ensopado no azeite de dendê, leite de coco, tomate, coentro, cebola e caldo de peixe, com toque de leite de coco e iguarias africanas). Já a sobremesa se chama Baba de Camelo, um irresistível doce português, espécie de mousse de doce de leite.
“Após dois anos realizando o FestLip online, já que fomos afastados presencialmente devido a pandemia, é uma sensação de estreia e de reencontro. Um sabor inédito de compreendermos, através da arte, que sobrevivemos e estamos de volta! Somos todos crioulos e Ruy Guerra personifica a essência do festival. Como curadora, trazer à luz o Cortiço, de Aluísio Azevedo, foi a inspiração para comungarmos sobre a equidade de nossas nações. Estamos todos lá, habitando cada cômodo desse casarão que é o nosso ‘(des)Cortiço'”, diz Tânia Pires, curadora e diretora do FestLip.
Artigos relacionados