* Por Vítor Antunes
Em primeira mão, Edson Cordeiro conta ao site Heloísa Tolipan que virá ao Brasil celebrar os seus 35 anos de carreira. O fenômeno versátil considerado pela imprensa europeia como a “8ª maravilha do mundo”, mora em Lübeck, na Alemanha há anos. Previsto para agosto, o show comemorativo tem como intenção retomar o contato do músico com os seus fãs nacionais, algo que não acontece desde antes da pandemia: “Quando Bolsonaro entrou no poder ficou ainda mais difícil trabalhar no Brasil. Desde 2019, eu não vou ao país, em razão de nada estar acontecendo (no meio artístico). Projetos culturais que viabilizavam a minha ida ao Brasil deixaram de existir, tanto para mim como para toda a classe artística, de modo que os grandes festivais, os grandes projetos foram extintos”, argumenta. O cantor prossegue dizendo-se esperançoso: “Parece que agora as coisas vão melhorar”. O artista apresenta um outro motivo importante para validar seu retorno às terras brasileiras: “Preciso estar com minha família, que não vejo há quatro anos”.
Cordeiro iniciou sua carreira como ator, viajou o mundo fazendo parte da Companhia Ornitorrinco com Cacá Rosset, porém o aniversário de carreira se restringirá à sua fase cantor: “Achei melhor celebrar o momento em que o grande público começou a ter contato comigo”. A certeza é de que a intenção dos shows vai tocar fundo no coração do fã. O cantor antecipa que a setlist será montada com participação direta do público, a partir do Instagram: “Quero que os seguidores contem qual canção não pode faltar no show e qual a que marcou cada vida?”
As apresentações previstas para o Brasil ajudam a contar a sua trajetória não apenas pelo fato do simbolismo da comemoração, mas também por contar com uma equipe técnica que o acompanhou diante de uma vitoriosa carreira: “Vou ter a companhia de três músicos, incluídos aí o que tocou no meu primeiro show no extinto Mistura Fina, o percussionista Eduardo Contreiras, que esteve comigo em turnês pelas Europa, além do Antônio Vaz Lemes, pianista que compôs a banda no disco “Contratenor”, que me valeu o Grammy. Outro artista presente é o José Cândido que esteve em meu último trabalho inédito, o “Bem na foto”, onde ele esteve como compositor e álbum onde eu também estreei na função, inspirado por ele. Eu estou adorando compor e a gente tem feito muito material que eu quero mostrar para o público”, relata.
O cantor aponta que, embora os shows tenham um olhar para o passado, não se trata de um trabalho saudosista: “Vou mostrar para o público tudo o que estou fazendo. Cada um vai matar a saudade, sim, mas é um projeto que também aponta para o futuro”.
Ida para a Alemanha
São recorrentes as afirmações de que o cantor tem um talento tão diferente e raro que não “cabe” no Brasil. E elas o acompanham desde sempre: “Eu tenho 55 anos. Quando eu tinha cerca de 16 fui cantar na rua, na Barão de Itapetininga, em São Paulo. A rua veio como opção por que eu não conseguia me encaixar em nenhum lugar. Minha voz era estranha, o povo não me entendia, não me aceitava nas bandas, ou em razão de eu ser agudo demais ou pelo fato de eu ser gay demais. A rua me fez vez que as pessoas gostavam do que eu fazia e me pagavam para isto. Talvez lá na Barão de Itapetininga tenha sido a primeira vez onde eu ouvi a frase :“Você é bom demais pra estar no Brasil, vá embora daqui”.
E acrescenta: “Essa ideia de que não é possível triunfar no país é algo muito nosso, e eu ficava muito magoado com isso, em razão de eu não querer deixar a terra brasileira. Daí me dediquei a fazer o contrário da crença geral. Juntei meu orgulho, a minha raça e decidi fazer ‘com que o Brasil me merecesse’. Minha vontade era desmentir todos os ‘nãos’ e ouvir um grande ‘sim’ do Brasil. Consegui. Quando me dizem que o Brasil não me valoriza, eu reafirmo que tudo o que tenho devo ao meu país: Disco de Ouro, Grammy, uma carreira”.
Com efeito, não se pode questionar que Edson Cordeiro contribuiu na popularização da música erudita no Brasil. Conseguiu, em 1992, a incrível façanha de misturar Mozart e Rolling Stones num feat entre ele e a saudosa Cássia Eller (1962-2001).
Recentemente, o cantor teve que vir à público reiterar esta fala, pela qual viralizou. Morando há alguns anos na Europa, Edson Cordeiro também desmente a crença que a Europa é o eldorado para os artistas como ele: “Os brasileiros quando me veem aqui fazendo show dizem ser bom que eu esteja aqui por, finalmente, eu haver encontrado um espaço onde me valorizam. Porém, essa história de que só fui reconhecido por aqui é mentira. Sobretudo, em razão de aqui não ser o sonho que as pessoas acham que é. Eu não estou na Alemanha, porque ‘exilei-me para trabalhar’. De modo algum! As pessoas querem ouvir de mim um lamento e elas não vão ouvir, porque eu não tenho o que lamentar”, dispara.
Uma comunidade LGBTQIA para todos, todes, todxs
Sempre afirmativo nas pautas LGBTQIA+, desde quando a legenda ainda era GLS, Edson Cordeiro vê muitos avanços, mas também algum retrocesso: “Há uma grande movimentação da comunidade acontecendo em momentos difíceis. A gente preferia que tudo fosse mais suave, mais tranquilo, mas não é. Junto ao governo vigente, legitimou-se a violência e a homofobia. A comunidade LGBTQIA+ vive momentos que são frutos tanto da minha geração como da anterior a mim, que é o fato de quebrar o tabu e falar de assuntos que as pessoas não querem falar. Gente como a Kaká di Poli deve ser reverenciada. A gente tem que olhar para ela e agradecer o fato de ela haver se deitado no chão da Avenida Paulista e parado os carros para a gente poder passar”.
Atribui-se à drag queen Kaká di Poli um importante momento da Parada do Orgulho LGBTQIA+ que foi o fato de ela haver deitado no chão, fingindo desmaio em plena Avenida Paulista, como forma de fazer os carros pararem e o cortejo da comunidade seguir pela via, no primeiro ano da Parada, em 1996. Edson prossegue dizendo que “essa geração tem sempre que levar o nome dessas pioneiras que vieram para abalar. Mas, não resta dúvida de que a gente vive um momento importante, uma exposição que nunca houve no mundo. O Brasil está colhendo, reconheço que com algum esforço, os frutos de um posicionamento da comunidade”.
O músico reconhece, também, que o fato de ser artista e reconhecido o coloca num lugar privilegiado: “A nós que somos artistas há uma bolha de privilégio e tolerância à nossa volta, mas eu sei que isso não se reflete a todas as outras pessoas, que estão na rua, que pegam ônibus e trem para ir trabalhar. Eu sei que há travestis que são apedrejadas e assassinadas apenas por existirem, então a gente tem que representar essas pessoas e colocar o foco sobre elas”.
Ainda sob esta ótica inclusiva, o cantor aprova o uso da linguagem neutra: “A língua tem que estar a serviço do tempo e se ajustar a ele. O uso da palavra ‘presidenta’, por exemplo, causava estranheza em razão de nunca havermos tido uma mulher neste cargo e nunca havermos pensado em como ajustar isso (gramaticalmente). Às vezes, eu mesmo me esqueço de aplicar o gênero neutro, mas eu mesmo sou uma bandeira. As letras todas da LGBTQIA sempre existiram há milênios mas, agora, chegou a hora de elas aparecerem e se mostrarem e estarem onde quiserem. Eu sou a favor das mudanças”.
Edson está, junto ao seu esposo, realizando uma mostra de exibição do primeiro filme de temática gay do qual se tem notícia na cena contemporânea. Trata-se de “Diferente dos Outros” (Anders als die Andern), o longa de 1919 foi encontrado por acaso, na Ucrânia, pois que uma das poucas cópias da fita – foram 40. Quando Hitler governou a Alemanha, ordenou que todas as cópias fossem destruídas e o Instituto de Pesquisa Sexual, que o realizava, fosse fechado. De modo que a única restante é esta, que foi recuperada na Califórnia e a qual Edson exibiu em sua cidade, Lübeck: “Estamos tentando viabilizar junto ao Goethe Institut para que ele seja exibido no Brasil”.
Edson destaca a importância da película, não apenas para a historiografia do cinema, mas também para a comunidade LGBTQIA+: “Trata-se de um filme muito emocionante. E pioneiro em razão de trazer pela primeira vez o amor entre dois homens na História do Cinema da civilização ocidental. Ele é importante pelo fato de tratar o gay de forma séria, mostrando o quão difícil é ser o que se é. O cinema alemão demorou mais de 60 anos para tornar a abordar a temática homossexual de forma respeitosa”.
Ainda segundo ele, na Alemanha, havia, no Código Pena, o artigo 175 que previa punição aos gays. Quando houve a entrada de Hitler no poder este código, que até então estava esquecido, retornou com força, prevendo inclusive a castração aos homossexuais. Este parágrafo só saiu oficialmente do código alemão em 1994.
Outro projeto que motiva o cantar é um no qual resgata a brasilidade presente no famoso escritor alemão Thomas Mann (1875-1955), que era filho de uma brasileira, chamada Julia. Coincidentemente ou não, os biógrafos de Mann apontam que, embora casado com mulher o escritor fosse bissexual. Há quem diga que sua obra máxima, “Morte em Veneza”, cujo protagonista se apaixona por um rapaz e não é correspondido por ele, tem algo de autobiográfico.
Divinas Divas
Perguntamos a Edson Cordeiro se, de alguma forma, ele não se via semelhante à Bidu Sayão (1902-1999), cantora lírica brasileira que passou a maior parte da carreira como uma grande desconhecida do público nacional, fez carreira fora do país e, tal como ele, era uma soprano coloratura. Ele nega, embora reconheça a importância de Bidu e, especialmente, a redenção que tivera ao fim da vida: “Quanto à Bidu, a diferença está no fato de ela ser uma cantora lírica. Ela produzia uma música que não é tradicional no Brasil, que é a erudita, a ópera. Eu faço uma música popular. Naturalmente, a arte que produzo tem esse registro de erudição, mas eu nunca cantei numa ópera na minha vida. Eu canto árias de ópera, mas nunca fiz uma inteira. Eu não sou um cantor lírico, eu sou um cantor popular. É claro que seria melhor que Bidu tivesse tido reconhecimento e sido celebrada no Brasil”.
Costuma ser atribuído a Edson o canto coral que acompanhou o desfile da Beija-Flor de 1995, no qual Bidu foi o enredo. Ele nega, dizendo apenas haver desfilado como componente. Todavia, a amizade como carnavalesco Milton Cunha o permitiu conhecer a “piccola brasiliana”. A biografia da musicista aponta que a mágoa com o Brasil só foi dirimida depois da homenagem feita pela escola de samba de Nilópolis. Outra diva presente na vida de Edson é Bibi Ferreira (1922-2019) a quem, por muito pouco, não viveu no cinema. A partir de uma imitação cômica realizada na montagem da peça “Terça Insana”, Tina Ferreira, filha de Bibi, chegou a convidá-lo a viver a atriz em sua fase madura, dizendo “Edson, você é a mamãe”.
O menino de Santo André
Edson tem 55 anos. Quando olha no retrovisor, vê o menino de Santo André, filho de um mecânico e de uma costureira e que ousou ser o que é: “Eu sou a prova de que aquele menino periférico, que tinha um grande “não” à frente, lutou demais para ter o “sim”. O Brasil me disse “sim” e não vou deixar que neguem isso. (…) Quando digo que conquistei meu sonho não falo do sonho etéreo. Falo do trabalho. Eu mudei a minha vida assim. Enquanto se der o direito de uma criança sonhar o menino, mesmo adulto, continuará vivo”.
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