A Maia: “O dia que pararem de segregar pessoas por gênero, etnia e classe, podemos falar em transformação”


A atriz e cantora acaba de lançar o hit ‘Deu Match’ e falou sobre a produção do single, sobre as lutas dos artistas LGBTQIA+, além do convite para interpretar a personagem Morte, na obra de Mauro Wilson, ‘Quanto mais vida melhor’, a próxima novela das 19h, da TV Globo. “Não cheguei aonde estou porque sou trans, ninguém me deu nada por ser trans, muito pelo contrário. Foi com trabalho”, afirma

“Minha música é a minha verdade. A inspiração vem a partir de histórias da minha vida”, conta A Maia

*Por Rafael Moura

‘Quando os ventos de mudança sopram, umas pessoas levantam barreiras, outras constroem moinhos de vento’, disse o escritor Érico Veríssimo (1905-1975). Essa frase traduz muito bem a carreira da atriz, modelo e cantora A Maia. Depois de enfrentar uma barra pesada com crises de ansiedade e depressão, ela conseguiu girar a chave e viu muitas portas se abrirem em sua carreira. Primeiro com o contrato mundial com a distribuidora Altafonte, uma mudança para Portugal, e o boom da sua carreira musical, com dois singles e dois videoclipes arrebatadores. No finalzinho de 2020, se abriu uma grande janela, que foi o convite do diretor Allan Fiterman para estrelar o elenco da próxima novela das 19h, da TV Globo, ‘Quanto mais vida melhor’.

Para cortar a fita de 2021, a estrela veio com o single ‘Deu Match’, uma faixa foi gravada no famoso estúdio da RedMojo, em Lisboa, Portugal, com a assinatura do produtor português Stego,  um profissional indicado ao Grammy Latino, com mais de dez discos de ouro e cinco de platina, especializado em produzir artistas do mundo pop. Nascida nos anos 90, A Maia se inspirou também no universo de super-heróis, quadrinhos e jogos de videogame, além de idealização de vida em outros planetas e uma abordagem de liberdade em seus relacionamentos como referências que podem ser vista na capa do single, que traz a cantora em uma versão ‘avatar’, uma criação do artista português Carlos Viseu.

A capa do single ‘Deu Match’, de A Maia ilustrada pelo artista português Carlos Viseu

“Minha música é a minha verdade. A inspiração vem a partir de histórias da minha vida. O novo single é uma resposta a todxs os crushes insistentes que não entendem quando não queremos romance. Quis fazer uma música chiclete, dançante e envolvente e o resultado dessa busca é ‘Deu Mactch’. Quero que as pessoas dancem muito e se permitam!”, frisa a artista. A Maia nos conta que ficou noiva quatro vezes, se casou uma e sempre estava dando um match com alguma alma verdadeira. “Por mais clichê que isso pareça, não sei me relacionar. A experiência mais recente me fez acender o alerta: não quero relacionamento tão cedo (risos). A fila vai aumentando pelo mundo, aqui ainda nada, sinto que não tem homem para mim no Brasil. Triste, mas confesso que nunca deixei de sonhar com minha metade e ela pode me procurar lá em Marte”, desabafa.

A Maia revela estar ansiosa por conta das gravações de ‘Quanto Mais Vida Melhor’, a novela das 19h, da TV Globo que irá substituir ‘Salve-se quem puder’, na qual interpretará a Morte. A trama de Mauro Wilson traz Giovanna Antonelli, que dará vida a uma empresária do ramo dos cosméticos, Vladimir Brichta, na pele de um jogador de futebol, Valentina Herszage, uma dançarina e Mateus Solano, um cirurgião. Sofrerão um acidente aéreo fatal, mas ganharão uma nova chance de viver ao chegar ao céu. “Eu tinha acabando de me mudar para Lisboa e assinado contrato com Altafonte, estava a todo vapor produzindo e fazendo música lá fora. Então o Allan Fiterman me ligou com o convite para interpretar a Morte na obra do Mauro Wilson. A personagem caiu nas minhas mãos como uma luva. Sabe aquela coisa que do personagem te escolher? Foi bem isso. E o convite veio em um momento que eu estava bem desencanada, bem em Lisboa… confesso que foi uma grande surpresa”, comemora.

“É preciso entender que o artístico vem antes do meu gênero, que é algo tão pessoal”, enfatiza A Maia

Para A Maia esse papel é ruptura porque seu gênero ou sua sexualidade não são questionadas, o que mostra um processo evolutivo. “Quando eu era criança não tinha esse tipo de representatividade na televisão”, comenta. Entre os trabalhos como atriz estão uma participação no filme hollywoodiano ‘Mulher Maravilha’, no musical ‘Roda Viva’, de Chico Buarque, dirigido por Zé Celso Martinez, e na série ‘Todx Nós’, de Daniel Ribeiro e Vera Egito, da HBO. “Uma das barreiras que precisamos quebrar diariamente é a palavra “trans” não prevalecer como pré-nome de alguém. Isso já será um grande sonho. É preciso entender que o artístico vem antes do meu gênero, que é algo tão pessoal. Não cheguei aonde estou porque sou trans, ninguém nunca me deu nada por ser trans, muito pelo contrário. Cheguei aqui por competência e trabalho. Só queremos respeito, que normalizem nossos corpos. Cansamos do olhar de indiferença. Isso machuca e seria mais fácil se entendessem que nossos corpos não são públicos”, enfatiza.

Midiaticamente parece que estamos vivendo uma revolução e valores e conceitos, principalmente para os LGBTQIA+, afinal programas de TV como RuPaul’s Drag Race estão se espalhando pelo mundo e com picos de audiência. Sem falar da força dos nossos artistas ativistas tendo grande destaque como Pabllo, Gloria Groove, Assucena Assucena e Raquel Virginia, indicadas duas vezes seguidas ao Grammy Latino e a Liniker, uma. “Ainda é uma parcela mínima. O dia que pararem de segregar pessoas por gênero, etnia e classe social, e pessoas LBTQIA+ tiverem a mesma oportunidade de interpretar várias histórias, podemos falar de transformação verdadeira. Enquanto esse dia não chega, seguimos resistindo”, frisa.

“Não cheguei aonde estou porque sou trans, ninguém me deu nada por ser trans, muito pelo contrário”, diz A Maia

Para A Maia, esse  ‘aparente boom transformador’ pode ser definido como retratação. “Quando falamos de corpos que foram silenciados por toda uma vida, devemos ter muito cuidado, pois os índices não mentem, e os números de violências ainda são alarmantes. Acredito numa revolução estratégica e no diálogo, no amor, e em políticas de inclusão e segurança. Precisamos proteger crianças trans no Brasil. Essa é a forma que tento me colocar, mas nem sempre existe abertura de diálogo em um país onde a ignorância sobressai”.

Segundo o IBGE, o setor público destinou para a área de cultura R$ 9,1 bilhões em 2018, o equivalente a 0,21% do total de despesas consolidadas da administração pública. “Temos carência de investimento na educação, na cultura. A informação está em todos os lugares, mas existe uma onda política e estrutural que precisamos quebrar, lutar, reeducar todos os valores equivocados que fizeram a gente chegar nesse caos que é o cenário atual, onde vemos muito grito e muito ódio”, ressalta.

No fim desta conversa altamente enriquecedora, A Maia contou que durante o período de isolamento social, ela teve muitos altos e baixos. “Eu estou sempre em movimento, não consigo desligar e se desligo fico doente, vem a deprê, é uma luta diária. Aconteceram uma série de coisas na pandemia: eu compus músicas novas, produzi e dirigi dois videoclipes, lambi o chão no combate às minhas crises de pânico e ansiedade. Foi um período de muitas mudanças. Mas a chavinha virou e aqui estou de volta ao Brasil, onde minha arte me leva e me move. Sigo tentando e isso é um exercício diário. Acho que o que eu levo disso tudo é o fato de estar viva, o que já é uma benção tendo em vista que o Brasil é o país que mais mata a comunidade LGBTQIA+”.