A indústria da moda, mesmo antes da pandemia provocada pelo novo coronavírus, já se adaptava à Quarta Revolução Industrial. Conceitos impensáveis há três décadas, como conectividade, inteligência artificial, big data e machine learning, entre tantos outros, passaram a fazer parte do nosso dia a dia. Hoje, a indústria 4.0 transforma a maneira como as máquinas utilizam informações para otimizar o processo de produção, tornando-o mais econômico, ágil e autônomo. Paralelamente, players das indústrias, profissionais inseridos em toda a cadeia produtiva e consumidores têm a consciência de que hoje e amanhã são vitais as práticas de zero waste, sustentabilidade + consumo consciente e upcycling ressignificando uma nova produção. Os impactos socioambientais causados pela cadeia de fabricação e de consumo devem pautam todo o sistema moda no Brasil e no mundo. Consciente da necessidade de partir para um modelo de negócio mais justo e sustentável, o SENAI CETIQT se uniu à Laudes Foundation para lançar o Projeto Moda Circular.
O objetivo é fomentar ações de apoio à transformação de profissionais, empresas e consumidores, promovendo a transição para um modelo circular, focado em eliminar o desperdício e aumentar a vida útil dos materiais, além de oferecer dignidade, empatia e acolhimento aos trabalhadores envolvidos em todas as etapas do processo. “A indústria têxtil é a segunda maior consumidora e poluidora de recursos hídricos no mundo. Na fabricação de fibras têxteis, são nove bilhões de substâncias químicas contaminando solo, água, ar e a própria população. Não apenas o consumidor, mas também o trabalhador que está diretamente ligado aos processos produtivos, sofre com esse acúmulo de toxinas”, explica Angélica Coelho, consultora do Instituto SENAI de Tecnologia Têxtil e de Confecção (IST).
Na live promovida pelo SENAI CETIQT com o tema “Moda circular – O início de um novo ciclo para a indústria da moda”, que marcou o lançamento da seção “Economia circular” da plataforma Inova Moda Digital, Angélica conta como será a parceria com a Laudes Foundation, organização criada para dar continuidade ao trabalho desenvolvido pelo Instituto C&A. “O projeto vai começar na plataforma e a ideia é que, mais para a frente, aconteça de forma presencial. Vamos oferecer conteúdos que dão uma visão geral sobre a economia e a moda circular, mas também traremos cases e boas práticas, a fim de mostrar o que está sendo feito nessa transição para uma indústria mais saudável, sustentável e justa”, diz ela. “Em um segundo momento, na etapa presencial, daremos estímulo para que essa transformação também ocorra nos negócios no Brasil”, acrescenta.
Como conferimos na live com a consultora do Instituto SENAI de Tecnologia Têxtil e de Confecção (IST) Christina Rangel, responsável pelo desenvolvimento de conteúdo da plataforma IMD, do SENAI CETIQT, a importância nesse momento e nos anos que virão é seguirmos fortes. “São tempos difíceis e instáveis, mas a criatividade ainda é o coração do sistema”, pontua. E durante toda a sua conversa, ela reforça uma das frases mais significativas que você pode conferir lá no IMD. “O mainstream atual é sobre reinventar os processos, reconfigurar a forma como pensamos e comunicamos os produtos lançando mão de antídotos que conciliem, numa só dose, esperança, confiança e prazer para mitigar os riscos inimagináveis que se estabeleceram e de aprimorar as ferramentas que possam combater os efeitos dos antigos e dos novos “venenos” contemporâneos”.
Desde janeiro de 2020, a Laudes Foundation deu seu start a partir dos resultados das lições aprendidas com outras empreitadas, tanto do passado quanto do futuro e amplia o trabalho realizado pela C&A Foundation com o objetivo de transformar a indústria da moda em um setor mais justo e sustentável. Parte integrante dos negócios da família Brenninkmeijer, a Laudes é uma fundação independente que apoia iniciativas que inspiram e incentivem a indústria a utilizar o seu poder para o bem. Ao combinar o investimento social privado com a escala e o alcance dos negócios, a organização trabalha para influenciar o capital, promovendo novas formas de pensar a economia e transformar as indústrias, encarando os desafios mais urgentes, como chegar ao resíduo zero. A Laudes atua de maneira colaborativa, compartilhando conhecimento e caminhando ao lado de empreendimentos com o poder de transformar o sistema econômico global e a definição de valor.
A filosofia da Laudes Foundation parte da premissa que as pessoas são capazes de promover o bem. “A inteligência humana e a indústria tiraram milhões de pessoas da pobreza e trouxeram riqueza e crescimento incomparáveis. Mas chegamos a um impasse. Se seguirmos o caminho atual de produção e consumo, não apenas colocaremos em risco o meio ambiente, mas também inúmeras comunidades ao redor do mundo”. Portanto, “é preciso mudar o rumo – e temos os meios para fazê-lo. Podemos aplicar nossa inteligência e o poder do mercado para redefinir o significado de valor e ir além dos interesses individuais. Munidos de um novo entendimento e das ferramentas necessárias, podemos combater a desigualdade social e a crise climática”.
Para a fundação é hora de agir: “A Laudes Foundation está respondendo a uma demanda global urgente para acelerar a transição para uma economia justa e regenerativa. Temos uma visão ambiciosa: mercados globais que valorizem todas as pessoas e respeitem a natureza. Uma economia que traga benefício às pessoas e que preserve o meio ambiente. Apoiaremos ações para inspirar e desafiar a indústria a usar o seu poder para o bem”.
Na live, Angélica Coelho ressalta que o atual sistema de produção está chegando ao limite, pois a aceleração do consumo é um modelo no qual a obsolescência programada é um dos pilares. “A gente sempre tem uma renovação muito rápida, um fluxo de produção grande”. No entanto, o novo consumidor já está tendo consciência sobre o valor e todo o trabalho e materiais empregados nessa cadeia produtiva e como ela impacta no meio ambiente.
A consultora do Instituto SENAI de Tecnologia Têxtil e de Confecção lembra que, desde o ano 2000, vem acontecendo uma ruptura nesse processo de produção acelerada e consumo desenfreado, com o nascimento de marcas que trazem a sustentabilidade em seu DNA. Em 2013, uma tragédia acendeu o alerta de que já havia passado da hora de a indústria da moda rever seus processos: o desabamento do edifício Rana Plaza, em Bangladesh, no qual morreram 1.134 pessoas, sendo a maioria trabalhadores de confecções que forneciam para grandes marcas do varejo mundial. “A partir daí, surgem movimentos como o Fashion Revolution. Quando a gente fala de sustentabilidade, também fala de trabalho justo”, observa Angélica.
Angélica frisa que o período de pandemia e a pausa forçada pela Covid-19 não devem ser desperdiçados: é a hora de mudar a maneira como a moda é feita e usada. “Não é só o consumidor que precisa demandar produtos mais conscientes e transparência na produção, mas a empresa também tem que rever seu modelo de negócio, a fim de passar por um momento de ruptura com tranquilidade e flexibilidade, agindo de uma forma mais saudável”, alerta ela. “A oferta muito grande de produtos com uma vida curta, o constante aumento da demanda, sem entender quem é o comprador, e os processos de fornecimento com velocidade acelerada e baixa remuneração tornam o formato atual insustentável”, completa.
Outro problema é o sistema de produção linear, baseado em extrair, produzir e descartar, sendo que a maior parte dos resíduos termina em aterros ou sendo incinerada. “A maioria das indústrias não pensa o produto para uma pós-vida, o que vai acontecer após o primeiro ciclo de uso. Uma T-Shirt, por exemplo, tem uma vida útil de menos de um ano, porque ainda acredita que o consumidor entende que a peça não precisa de cuidado, já que foi barata, nem deve ser preservada, pois é fácil ter acesso a uma nova. O descarte é uma ação direta”, lamenta Angélica. “Toda peça que é descartada, incinerada ou entrou em liquidação é um erro de demanda. Ninguém pensa que todo o investimento de tempo, inteligência e recursos destinado a um produto ou uma coleção foi jogado fora, seja para manter o status da marca ou continuar produzindo e tendo espaço no parque fabril”, pontua.
Segundo Angélica, o princípio da produção circular é um pensamento sistêmico: manter cada fibra, tecido, recurso ou produto dentro da cadeia produtiva pelo maior tempo possível. Quando esse ativo chegar ao fim de um ciclo e não puder mais ser um valor dentro dessa cadeia, deve retornar ao ecossistema de maneira segura. “A produção circular se refere a dois ciclos. Um técnico, de produtos e serviços, e um biológico, de produtos de consumo”, esclarece. “No ciclo técnico pensamos em como o produto se reinsere na indústria. Já no biológico tratamos de produtos que irão voltar como nutrientes, sendo reabsorvidos pelo ecossistema sem agredir a água ou o solo”, descreve.
A moda circular requer mudança de mentalidade, buscando alternativas que diminuam a total dependência dos recursos naturais e reduzam a pressão sobre as pessoas. “Não é só pensar que economia e moda circular têm a ver com reuso e reciclagem. Elas estão muito ligadas a todos os elos da cadeia. Para projetar um produto que possa ser reciclado lá na frente, você tem que estar em contato direto com seus fornecedores, saber como aquela fibra se regenera e se as pessoas que trabalham nas diferentes fases do processo estão sendo valorizadas”, ensina Angélica.
O design também tem papel fundamental na moda circular. “Não podemos reinventar o sistema todo, mas precisamos começar de algum ponto. É preciso pensar na longevidade, criando produtos duradouros. Não quer dizer deixar de trabalhar com tendências e cores de estação, mas sim fazer com que a peça seja usada por mais tempo”, fala Angélica. No caso do design de serviço, é transformar o consumidor em usuário, criar vínculos com ele e assegurar que a experiência com o produto se torne maior. Já design para remanufatura quer dizer permitir customização e upcycling, de forma que o produto seja facilmente consertado, desmontado, reutilizado ou revendido. E design para recuperação de materiais envolve reciclagem, projetar a peça de maneira que cada um dos elementos possa ser aproveitado.
Angélica destaca a importância de repensar como a moda funciona, de forma a redefinir valor e gerar mudanças e impactos positivos e duradouros. “Nesse momento de pandemia, o comércio está parado, então partimos para o e-commerce, digitalizar um modelo de negócio que funcionava de maneira física”, exemplifica. “Quem entrar na plataforma Inova Moda Digital vai encontrar, além de um glossário de termos sobre circularidade, exemplos de negócios para servirem de inspiração”, pontua.
O caminho é o seguinte: na plataforma Inova Moda Digital, do SENAI CETIQT, foi criada a seção Novas Economias, que refletem visões sobre práticas econômicas alternativas mais inclusivas e sustentáveis. Dividido em três partes, o conteúdo se inicia no Ponto de Partida, difundindo uma visão geral da economia circular, da moda circular, glossário de terminologias sustentáveis e uma avaliação de negócios focada na circularidade para apresentar um índice geral de práticas circulares. Seguido da página Inspire-se, destinado ao compartilhamento de boas práticas, iniciativas e soluções de cases de negócios do Brasil e do mundo. Por último, um convite para colocar a mão na massa, a seção Gire a Moda composta por metodologias e ferramentas identificadas ou desenvolvidas pela equipe do SENAI CETIQT, com base em pesquisas de práticas junto às Redes Circulares. “Há um cadastro para as redes circulares, cuja ideia é formar uma grande comunidade de aprendizado aberta a todos que fazem parte da indústria da moda, com o propósito de gerar ações sistêmicas que engajem cada elo da cadeia, aumentando a competitividade e otimizando e inovando os processos”, diz Angélica.
A iniciativa de Redes Circulares, prevê ações presenciais direcionadas ao aumento da conscientização e conhecimento sobre economia circular entre empresas de diferentes portes e modelos de negócio, permitindo a criação de iniciativas de transição para o setor. Composta por três perfis diferentes, os Nativos circulares que são os modelos de negócios, com base nos princípios da circularidade, o RE-Design que compreende modelos de negócios lineares que buscam melhorar seus processos, otimizar recursos e gerar novos negócios, estimulando a transição para o modelo circular e os Disruptivos que se reunirão para resolver problemas de escalabilidade e promover a implementação do processo de transição do modelo linear para o circular.
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