Aläia, Versace, Gucci, Fendi, Carolina Herrera, Thierry Mugler… são algumas das labels internacionais que incluíram uma releitura contemporânea do corset em suas coleções nas semanas de moda que agitaram o Hemisfério Norte. Se pensarmos bem, ao longo de mais de 400 anos (!), o corset teve suas idas e vindas, contabilizando muito mais vindas neste processo. Fazendo um paralelo com o início do período pandêmico, entendemos que o corpo precisava de proteção e a moda abraçou a todos com roupas bem comfy. Agora, com a flexibilização seguindo os protocolos sanitários, o corpo é potência máxima e protagonista de novos comportamentos. E o corset (espartilho) ganhou uma ressignificação e foi alçado à peça-chave democrática na diversidade de corpos.
O SENAI CETIQT convidou a estilista mineira e fundadora da marca especializada em corsets (sob medida) Jerônima Baco para para lançar luz sobre a peça durante uma live, que você pode conferir no Youtube. Durante cerca de uma hora ela conversou com a analista do SENAI CETIQT Raquel Gomes sobre a história da peça, de suas origens no século 16 aos dias atuais, recheada de curiosidades. Jerônima falou, também, sobre sua paixão pela longeva peça de roupa, que já teve diversas interpretações ao longo do tempo. E, agora, em pleno século 21 high tech, ressurge tal qual uma Fênix.
Graduada em Design de Moda e pós-graduada em Ambiente de Processos Produtivos do Vestuário, Jerônima criou a grife há mais de 10 anos. “Sempre que alguém me pergunta por que trabalho com corset, eu respondo remetendo a uma frase de Valerie Steele no livro “The corset: A cultural history’: O corset é provavelmente a roupa mais controversa de toda a história da moda. Usada por mulheres no Ocidente desde o Renascimento até o século 21, é um elemento ícone no vestuário. Se estudarmos essa história peça por peça que já existiu – e que ainda existe – ele é uma das que mais passou por ressignificações”, frisa Jerônima.
A design nos convida a uma viagem cronologicamente na História. “O que chamaram de ‘primeiros corsets’ eram, na realidade, estruturas de aço usadas para questões ortopédicas e de correção de postura. Mas, minha pesquisa é voltada para o corset como vestuário e parte integrante da História da Moda”, afirma.
Nos séculos 16, 17 e 18, o corset ganhou três nomes: Bodies (ou Body), a Pair of Stays e Stay: O formato também era muito diferente do que conhecemos hoje, quando é voltado para um visual que pode ser clássico, moderno, esportivo, noturno, sexy… como você assim o desejar. E mais: feitos com tecidos confortáveis e que valorizam o contorno do busto. “Nos séculos em questão era mais cônico e servia para deixar a postura ereta. Uma roupa de baixo que proporcionava a ênfase no formato ao corpo e sustentação para os vestidos. Primeiro vestia-se uma chemise e, em seguida, o corset com suas mil amarrações. Dependendo do período histórico, ainda elas usadas as anáguas por cima e tudo contribuía para estruturar o vestido por cima de tudo”, conta Jerônima.
O EMBLEMÁTICO SÉCULO 19
Logo após essa breve passagem pelos três séculos, Jerônima fala sobre o período histórico do qual é super amante: o século 19. “Foi o boom do corset, com a Revolução Industrial. O grande momento dessas peças. Durante três séculos não houve grandes inovações, mas, com o começo da industrialização, pôde-se fazer dezenas, centenas de corsets, graças à diversidade de material. As primeiras fábricas de corsets surgiram no século 19, junto com muitas inovações”, pontua, acrescentando: “Praticamente toda a evolução dos corsets aconteceu por conta da tecnologia e da criatividade ensejadas pelo surgimento da máquina de costura. Até quase a metade do século 19, não havia máquina no formato que conhecemos hoje. Os espartilhos eram feitos à mão. Com ‘novidade’ dava para fabricar muito mais e, claro, a produção aumentou bastante”.
Até o século 18, o corset tinha um formato mais chapado, incluindo a parte superior para os seios. E dava a impressão de que a cintura era mais fina porque era cônico e a saia, rodada e cheia. Ele era produzido num formato cônico, não como estamos acostumados a ver hoje. No século 19, isso mudou em termos de modelagem. Houve uma grande cisão quando o formato ampulheta surgiu, mudando o foco para a redução da cintura. Esse modelo valoriza o contorno dos seios, reduz a cintura e dá uma sensação de quadril maior.
Também foi quando surgiram as barbatanas de metal. Até então os espartilhos eram estruturados com barbatanas de baleia ou hastes de madeira. Uma curiosidade: quando falamos de barbatana de baleia, a maioria acredita que esse ossinho é tirado da nadadeira ou da cauda da baleia. Na verdade, ele vem da boca. No século retrasado foi possível fabricar as barbatanas de metal. A quantidade (diversidade) de matéria-prima para confeccionar corset também aumentou muito naquele período.
A criação do ilhós também incrementou a produção. Até então, os corsets rasgavam muito, não duravam. Os buraquinhos por onde passava a amarração não tinham ilhoses. Por isso não temos muitas peças do século 17 nos museus. O busk, fecho específico para corset, separou-se. No século 18, quando surgiu, era apenas uma haste de madeira que ficava na frente, bem no centro da peça, para estruturar. No século 19 separou-se e virou duas partes que se conectam fechando na frente e no centro. O busk separável tornou muito mais fácil para a mulher vestir a peça sozinha. Elas passaram a não depender mais da ajuda de outra pessoa para vestir o corset.
Jerônima lembra que a mão-de-obra especializada aumentou muito no século 19, tanto que surgiram as fábricas especializadas em confecção de corset. E com a diversidade de materiais veio a oportunidade de testar, por exemplo, até o couro usado na produção. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento do comércio estava a todo vapor, o que levou à popularização da peça. O final do século 19 foi excelente para a venda de espartilhos. E foi um boom de muitos modelos, cores, funções e tecidos variados. Havia corset, inclusive, para gestantes com amarrações laterais e botões junto aos seios para a mulher poder amamentar. Outro confeccionado de couro colorido; aquele criado para a mulher andar de bicicleta. Ainda assim, porém, era uma peça para ser usada por baixo da roupa; era considerada underwear.
SÉCULO 20: OS ‘HIGHLIGHTS’
No início do século 20, uma grande polêmica envolveu os corsets, que haviam se popularizado muito com a compra facilitada, porque a produção aumentou em função de maquinários, tecnologia, linha de produção, fábricas, mão-de-obra especializada, mais costureiras, mulheres no mercado de trabalho, e peças novas, tudo isso trazido pela Revolução Industrial.
“Jornais e revistas estavam atentos a supostos males causados pelo corset, que cada vez mais tinham cinturas extremamente finas e eram mais alongados. Os médicos começaram a falar que as mulheres tinham determinados problemas de saúde por conta do usá-los muito apertados. Isso foi muito marcante e acabou tornando o espartilho um poderoso símbolo de opressão feminina daquela época”, lembra a palestrante.
Dos quatro momentos importantes do século 20, o primeiro foi esse ataque à imagem e ao uso do espartilho. Depois vieram a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, que interferiram drasticamente na produção das peças porque, graças à escassez de material, não havia o que discutir: simplesmente não existiam suplementos disponíveis para se confeccionar quaisquer tipos de roupas. “As mulheres tiveram que ir para a frente de trabalho substituindo seus maridos e filhos; no lugar dos homens, enfim. Mas, no final da década de 1940, o New Look, de Dior, retomou as formas em ampulheta”, relembra Jerônima.
O quarto e realmente grande momento do corset no século 20, porém, aconteceu quando foi colocado para fora da roupa por Vivienne Westwood, no final da década de 1980. Ela criou uma coleção em que o espartilho era usado por cima da roupa, não mais como lingerie: havia deixado de ser underwear.
As pessoas estavam vendo os corsets pela primeira vez à mostra. “Trabalho com essas peças e foi quase um pecado tê-las deixado escondidas por baixo daquelas roupas todas durante 400 anos. A gama de modelos que foram criados, costurados, modelados, pensados com todos aqueles tecidos coloridos incríveis, aquelas combinações de aviamentos e cores… e pensar que eram roupas de baixo e brilharam a partir da década de 1980…”, exulta Jerônima, acrescentando: “Finalmente, agora ele é mais usado à mostra do que como roupa de baixo. Noventa por cento das vendas do meu ateliê são para serem usados à mostra; só dez por cento são sob a roupa. Na década de 1990, o corset seguiu sendo usado assim. Os três nomes de destaque, os estilistas que o usaram como peça central em suas criações foram Vivienne Westwood; Jean-Paul Gaultier, com o figurino da Madonna e o sutiã-cone; e Christian Lacroix”.
E HOJE, COMO ESTAMOS?
Há uma gama imensa de opções. Existem corsets para lingerie, para estruturar vestidos de noiva e de festa, peças de fetiche, os específicos para modificação corporal, os de uso fashion (para usar com uma calça jeans e passear com as amigas, por exemplo). Há modelos para fazer cosplay, fantasia, figurino. “Hoje, a peça criada no século 16 por uma questão de postura, passeia por todas as áreas da moda”, frisa Jerônima.
“Os estilos de vida da mulher de 2022 e o da mulher do começo do século 20 são completamente diferentes. Então não tem por que eu pensar sobre o corset de 2022 como uma peça do século 19. Ele durou tanto tempo e vai continuar duradouro porque foi uma das poucas peças na história do vestuário que foi se modificando e se adaptando à vida da mulher conforme a história foi passando”, aposta Jerônima Baco.
A série inglesa “Bridgerton”, drama de época da Netflix ambientado entre 1813 e 1827, inspirou uma coleção criada e lançada por Jerônima no final de 2020. Continua sendo a mais vendida do ateliê. Trata-se de um exemplo de como se pode usar a História como referência de estética, cores e modelagem, trabalhar em cima disso e criar algo atual para as clientes: “É possível criar uma coleção comercial bacana, que faça você se destacar no mercado mas não fique caricato como se fosse um figurino; pelo contrário, que fique atual e, ao mesmo tempo, com o estilo da personagem com a qual a pessoa se identifica. Porque apesar de ser histórica, a série tem uma pegada tão atual que dá vontade de usar os corsets mostrados lá”, diz Jerônima.
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