“A moda, com toda a certeza, significa transformação. Carregada de códigos e significados, vestir-se é dialogar com os sentidos. E é isso que o estilista Lindebergue Fernandes propõe: a moda como agente social. No DFB Festival, evento que reverbera a vocação do Ceará como epicentro para a fomentação da moda, cultura, formação e valorização do turismo, o designer lançou o questionamento: as roupas envelhecem como vinho ou como leite? E foi sob esta diretriz que orientou a coleção “Prazo de Validade“, que inclusive estende o questionamento para outras esferas, como a da própria existência – “e eu, qual o meu lugar nesse tempo?. “A intenção é fazer as pessoas se perguntarem sobre o que teria mais valor hoje. Se o mais importante é durar para sempre ou obedecer ao andar do tempo e perecer”, analisa o mestre da moda autoral do Ceará.
Ainda segundo ele, a coleção optou por fazer uso de tecidos de alto luxo da Galpão 661, além de fios de ouro, rendas, sarjas diferenciadas, paletizadas e artigos nobres, justamente para brincar com a ideia da riqueza, mas sem abrir mão da lógica da sustentabilidade. Um material que usou, por exemplo, foi o resíduo de etiquetas da Haco que iriam para descarte – o fio de lurex que as compunha e que iria para o lixo. Além disso, o estilista quer usar da moda uma plataforma para gerar discussões, razão pela qual ele opta por ser provocador. “Eu não tenho “cliente”, vamos começar por aqui. Pode parecer estranho – já que sou um estilista a serviço da indústria -, mas o que me motiva, no caso do DFB Festival, mais do que vestir pessoas, é usar esse holofote como plataforma para lançar ideias e provocações. É onde a arte se apodera e toma conta dos processos. E isso nos leva à sua pergunta inicial, sobre contextos sociais”. No desfile, além do forte discurso crítico, havia “tricô de papel reciclado. Nuvens de tramas que mentem ao olhar quando confrontadas com o toque. Tecidos de luxo. Casacos de alfaiataria, títulos, honras…. utilitarismos que, mais dia menos dia, não farão mesmo qualquer diferença. Franjas de lurex de ouro – na verdade, sobras de etiquetas de jacquard. A mais pura verdade que se esconde atrás de cada mentira, rendas, sarjas diferenciadas, paletizadas e artigos nobres, fios de lurex reciclados e flores naturais.
Eu sempre serei o pobre menino gay afeminado do interior que veio para a cidade grande. Está impresso na minha cara, no meu DNA, no tamanho da minha cabeça. Mas o DFB consegue sempre enxergar além da nossa própria capacidade. – Lindebergue Fernandes
PASSARELA
É o próprio Lindebergue quem apresenta a ideia conceitual do seu desfile: “Abrimos a apresentação com a frase clássica dos Titãs, que diz: “as flores de plástico não morrem”. Uma grande ironia, já que era todo pontuado por flores reais, adicionadas aos cabelos dos modelos e até às roupas. “Leite de Rosas; Seiva de Alfazema… qual seria mesmo o perfume do tempo que não volta mais?”, indaga. A pintura que serviu de boca de cena é uma natureza morta, de Caravaggio. Então, essa era a brincadeira: as roupas, como as pessoas, mais cedo ou mais tarde, partirão. Mas a emoção de um desfile, de vestir algo que te desperta certo tipo de sensação, isso sim transcende o tempo de cada um e, de certa forma, atinge a imortalidade e ultrapassa o tal “prazo de validade””, explica.
Cada desfile que elaboramos tem como missão causar alguma inquietação em quem assiste; seja tocar uma ferida, revisitar uma emoção esquecida, uma saudade, talvez. Por isso, a cada coleção, o que está em foco nem é tanto a roupa, mas o espetáculo, a busca pela catarse” – Lindebergue Fernandes
Artista nato, famoso por criar peças que transitam entre as memórias afetivas, as coleções vanguardistas, a revolução, a emoção e um discurso conceitual muito presente, ele desfilou pela primeira vez no DFB, no Concurso dos Novos Talentos, em 2002, razão pela qual é muito grato ao festival. “O DFB mostra que, quando há talento e trabalho, sempre haverá oportunidade. Sem ele, eu talvez ainda fosse um assistente. Hoje, eu tenho nome, história, virei verbete no Dicionário da Moda Autoral. E tudo isso por causa do Concurso dos Novos”, relembra.
Para Lindebergue, o segredo para sobreviver num mercado competitivo está, justamente, na personalidade. “Minha carreira é prova viva de que o autoral pode, sim, abrir portas para o mercado. Foi graças ao DFB que meu nome virou conhecido e acabou fortalecendo minha marca autoral no meio da indústria. Há mais de 15 anos, sou diretor de estilo da DLT, uma marca grande de menswear, e, apesar de ter um viés comercial, sempre existe espaço para experimentações que, em menor escala em relação aos desfiles no DFB, me permitem exercitar sempre o autoral. Então, eu vejo assim: os talentos autorais que surgem têm dois caminhos: ou usam essa vitrine que é o DFB para se tornarem conhecidos/desejados ou investem real no sonho da marca própria, autoral – e que, obviamente, terá que se render às demandas do mercado. É assim que a roda gira. O segredo é buscar o equilíbrio entre essas duas visões aparentemente opostas, mas que podem ser complementares”.
Ele continua dizendo que “o autoral serve para legitimar que existe a diversidade; seja de corpos, de desejos, de estilos. E os outros eventos de moda, Brasil afora viraram as atenções para os criadores autorais. A indústria continua aí, vestindo seus milhões de consumidores. Mas cada um deles, quando deseja se sentir único e especial, vai sempre sonhar com o autoral. E, se tiver oportunidade e grana para comprar uma peça de um nome fora da indústria, esse sonho se torna real, o que é maravilhoso”.
Lindebergue também está conectado com as questões socioambientais: “Ser um criador autoral e sem uma estrutura financeira por trás exige que a gente explore ao máximo os temas transversais da circularidade na moda. Meu trabalho, no decorrer dos anos, sempre evidenciou o upcycling; a economia circular de todos os envolvidos em cada coleção; o perfil das pessoas que admiram e vestem minhas criações.
Pode cravar: se você encontrar alguém vestindo Lindebergue, essa pessoa tem, no mínimo, um posicionamento claro sobre esses pontos que a gente compartilha. Me dói ver um insumo encostado, largado de canto. É uma atitude inteligente, e nobre, se esforçar para descobrir como ressignificar o que não tem mais valia. Esse é o desafio maior em tentar monetizar com a moda autoral – Lindebergue Fernandes
A moda do Nordeste, para o estilista, pode ser algo a impulsionar a economia do país. “Além de sermos um berçário de criadores absurdos, a gente sabe lidar muito bem com as adversidades. E a moda precisa, cada vez mais, de gente capaz de olhar para cima e captar o que o mercado deseja, ao mesmo tempo em que mantém os pés no chão, ciente dos desafios que irão surgir, e prontos para briga que aparecer. Eu acredito na força do trabalho e acho que a moda nordestina – para ser mais específico – tem essa garra. Sem contar que somos muitos Nordestes e cada um guarda em si um universo de visões, de oportunidades e de possibilidades”.
Diante de falas assertivas e inteligentes, relembramos uma outra dada por ele a mim aqui para o Site Heloisa Tolipan, na qual afirmava: “O Nordeste não é um ‘lugar’. Somos uma nação gigante e múltipla, com infinitos sotaques e formas de falar a língua da moda.” Hoje ele prossegue com essa firmeza e traz outra, frase, também de impacto: “O que me interessa é atingir o coração das pessoas. O que me inspira é despertar no outro o que emociona em mim mesmo. Não parece muito, eu sei. Mas é longe de ser pouco.”
Mais que palavras, arte de expressão, Lindebergue é uma voz firme e opinativa num mundo que cada vez mais escolhe ser superficial e mediano. Ao se questionar sobre o prazo de validade de tudo, nasceu no estilista o desejo de vestir o que subverte os códigos da elegância e da excelência ao florir da sua arte a poesia que nasce da memória das mulheres da sua vida, sua mãe e e sua tia, que solidificaram nele a vontade de ser o que ele é: autêntico.
“Minha mãe na varanda. Minhas irmãs de vestido ao vento na poeira do passado. Nossa Senhora, Roberto Carlos pedindo sua mão em nosso nome. “Essas recordações me matam”, cantava Roberto no rádio da cozinha, a porta aberta pro quintal, roupas secando no varal do interior das minhas saudades. Reuso das próprias referências. Volto ao ano passado: aparências, nada mais. Porque nada nunca é mesmo o que parece ser – e há uma beleza torta nisso tudo”, pontua.
O DFB Festival 2024 é apresentado pelo Governo do Estado do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura. Com apoio cultural da ENEL (enelbrasil), realização da Associação Artesanias do Ceará e Empório Lokar. Apoio institucional da Secretaria de Turismo do Estado do Ceará e Secretaria de Cultura do Estado do Ceará (Secult-CE) , nos termos da Lei 13.811, de 16 de agosto de 2006.
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