*Por Flávio Di Cola
“Odeio os turistas destruidores de sonhos, canibais ávidos, devoradores de imagens e vampiros de almas” escreveu Brigitte Bardot em seu livro de memórias*. Não, ela não se referia – ainda – a Búzios, mas à ilha de Capri, onde ela rodava o filme de Jean-Luc Godard “O desprezo” (Le mépris, 1963), um ano antes de desembarcar no Brasil. Se Bardot, já no início dos anos 1960, execrava o impacto devastador do turismo de massa sobre a mítica ilha do Mediterrâneo, teria que admitir – 30 anos depois e com muito desgosto – que seria ela mesma a responsável pela notoriedade internacional do outrora paradisíaco balneário fluminense e que hoje corre o risco de implodir exatamente pelo imaginário impregnado no local pela maior estrela do cinema europeu da época. BB não apenas está ciente disso como se culpa pelo estrago: “Depois da minha passagem, aquele lugar transformou-se na Saint-Tropez brasileira. Dá para acreditar que eu carrego em mim uma forma de destruição sistemática”.
Mas a história de Bardot com Búzios começou exatamente como imaginamos que deva ser o encontro de uma super estrela do cinema esgotada e desiludida com o Éden que vai lhe proporcionar a cura pela calma, pela simplicidade e pela beleza agreste. Novamente, deixemos BB falar: “Foi talvez naquele universo tão primário, tão natural, tão verdadeiro que passei as melhores horas, os mais lindos dias da minha vida. Tenho vontade de rir quando chego a algum lugar, e todos se crêem obrigados a me receber com tapetes vermelhos e outras sofisticações ridículas que eu detesto.”
Pois foi precisamente essa parafernália que esperava Brigitte naquele 7 de janeiro de 1964, quando desembarcou no Galeão após 14 horas devastadoras de viagem entre Paris e Rio de Janeiro a bordo de um dos jatos Caravelle da Panair do Brasil. Brigitte detestava viajar de avião e faria para o Rio a sua primeira travessia transoceânica na vida. O próprio horário de seu desembarque já era cruel por si mesmo: 5h da manhã. Sabendo que não teria como escapar das engrenagens que movem uma celebridade e que seria recepcionada por um batalhão de fotógrafos, BB tomaria alguns cuidados a fim de chegar apresentável. Planejou até usar uma peruca castanha que cobriria os seus famosos cabelos compridos inconfundivelmente despenteados à la Bardot, mas que depois de tantas horas num avião poderiam simplesmente parecer desgrenhados. Seu esforço foi em vão: “Quando saí do avião no Rio, cansada, deslocada, desesperada, passei do ar-condicionado a uma chapa de chumbo derretida. Minha peruca servia de touca de peles, quase desmaiei de calor…”
Os 150 repórteres presentes e ensandecidos não esconderam a sua decepção: seria mesmo aquela moça magra, de pernas finas, abatida e morena a bête sauvage do cinema internacional, a despudorada Brigitte, o “fenômeno social” (como a chamou uma reportagem de Paris Match) que vinha alterando o padrão comportamental de milhões de mulheres desde o fim dos anos 1950 e que – aos olhos do mundo – representava a própria França? No meio do mais absoluto caos, Brigitte escapou do Galeão a bordo de um Fusca de um dos amigos do seu namorado marroquino-brasileiro Bob Zagury, deixando para trás suas malas e passaporte. Depois de cruzarem perigosamente um recém-inaugurado Aterro do Flamengo – perseguidos por uma caravana de fotógrafos numa cena que poderia antecipar em 33 anos o tipo de acidente fatal que envolveria Lady Di e um bando de paparazzi, em Paris -, Brigitte chegou ao modestíssimo apartamento de Bob em Copacabana onde ficou entrincheirada por quatro dias. Ela conta: “Estava à beira da depressão, longe de tudo, estranha a tudo, passava os meus dias a chorar e as noites a gritar com Bob, suplicando que me levasse de volta à França. (…) Não aguentava mais, odiava essas viagens de merda, esses jornalistas de merda e esse apartamento de merda. Era preciso criar uma estratégia para obter minha liberdade”. A “estratégia”, na verdade, seria bastante prosaica: curvar-se ao inevitável peso de sua fama descomunal e oferecer à mídia o alimento que a manteria saciada por algum tempo: foi assim que há precisamente 50 anos atrás Brigitte Bardot proporcionou a mais concorrida entrevista coletiva da história do Copacabana Palace e um dos maiores engarrafamentos na Av. Atlântica. No eterno templo das estrelas em passagem pelo Rio e tendo atrás de si um cartaz com a famosa logomarca de Aloísio Magalhães para o IV Centenário da cidade que seria comemorado dali a um ano, a imprensa carioca (ou seja, a brasileira) reencontrou a “verdadeira” Brigitte das telas e das reportagens ilustradas: sorridente, disponível e atrevida. “Estava cheia, muito cheia, mas não podia escapar daquela! Arrumada, maquiada, bem vestida, desesperada, tive de novo que me submeter às caretas, aos sorrisos, às perguntas estúpidas e vãs. Gostosa, sexy, patati, patatá…fiel à minha imagem loira e insolente ao máximo”, revela Brigitte.
Enquanto essa coletiva resultava num tsunami de matérias sobre a diva francesa e uma verdadeira “BBmania” varria o Brasil, o Fusca de Bob Zagury era mais uma vez discretamente acionado para transportar arroz, querosene para lamparinas, inseticida, farofa, livros, jornais, latas de conserva, água mineral e o indefectível violão de Bardot para o iate que os conduziriam até Armação de Búzios. O encantamento de Brigitte pelo local foi instantâneo: “Não havia nada em Búzios. Nem eletricidade, nem telefone, nem geladeira, nem água corrente, havia apenas o mar, o céu, uma casinha rústicas e doce, praias douradas a perder de vista (…) Ali, descobri o verdadeiro Brasil e a verdadeira paz”.
E também nascia a lenda que ajudaria a transformar uma aldeia tosca de pescadores no quinto destino turístico mais apreciado pelos estrangeiros em viagem pelo Brasil. As recordações de Brigitte dessa estada em Búzios vêm carregadas de uma poesia simplória, mas muito autêntica e com um característico toque francês: “…um pequeno paraíso onde eu corria descalça, acompanhada de um gato que eu chamava de Moumoume, maravilhada com os beija-flores, com os flamboyants, as buganvílias, a cor translúcida de um mar cheio de espuma e brilhante que parecia um champanha azul e com o qual eu me embriagava.” Em abril de 1964 sua passagem pelo paraíso brasileiro acabava, mas Brigitte partia para Paris prometendo que voltava. Cumpriu a sua palavra retornando em dezembro para passar o Natal em Búzios, numa segunda viagem muito mais tranquila e repousante que teve até visita a um terreiro de macumba. Mas isso é assunto para quando chegar o próximo Caravelle da Panair.
[Todas as declarações de Brigitte Bardot deste artigo estão contidas no livro Iniciais BB: memórias, publicado no Brasil pela Editora Scipione em 1997. Tradução de Carlos Wagner dos Santos, M. Celeste Marcondes e Renata Cordeiro. Título esgotado e só encontrável em sebos.]
* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Amante judiado e teimoso da Sétima Arte, suporta todos os contrangimentos na sua fidelidade às salas de cinema.